a Sobre o tempo que passa: Reflexões heréticas em noites de olhar as estrelas com os pés nas pedras do caminho

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

5.11.07

Reflexões heréticas em noites de olhar as estrelas com os pés nas pedras do caminho


Todos os anos, sempre o mesmo ritmo dos sinais do tempo, especialmente quando o tempo que vivemos não são os prometidos amanhãs que cantam e que podemos retomar a eterna humildade dos velhos humanistas que nunca foram como aqueles vanguardistas que pensam deter as alavancas daquela inteligência que pretendeu assumir o controlo do processo histórico.


Porque a tal história não é, afinal, o produto das boas ou más intenções de certos homens, mas antes o resultado da acção de todos os homens. Porque não são os abstractos caixilhos teóricos de certa luta de classes na teoria que fazem a história, mas antes os anónimos homens concretos que a fazem e refazem, mesmo saberem que história vão fazendo.


Esta co-criação de homens livres raramente segue os manuais planeamentistas do pensamento único e dos livros únicos do politicamente correcto. O normal é haver anormais, isto é, paradigmas que convergem e divergem, para que o amanhã seja um acaso procurado que nos vai surpreender. Há muitas curvas no caminho, para quem prefere as peregrinações dos carreiros do pé descalço que desde sempre trilhamos.


Mais um dia, mais um regresso, mais um rendilhar no bilro dos conceitos, depois do dia de todos os santos, que é depois do dia das bruxas e antes do dos fiéis defuntos, nesta sequência de festividades e tradições que são católicas quando antes já foram pagãs, mas que os protestantes globalizaram, com jantares de perua ou louvor dos mortos, num sincretismo típico de loja de chinês num bairro alfacinjha. Não tarda que encontremos sinais maçónicos em vestimentas sacerdotais de ortodoxos russos do século XIX, ou louvores ao grande arquitecto do universo numa sacristia jesuíta pré-iluminista, agora que o rosto de Tutankamon foi revelado, neste sincrético que fez da senhora de fátima uma continuidade de velhos cultos mediterrânicos pré-cristãos, antes de os volvermos em iemanjá, numa complexidade crescente de uma eterna procura da religação ao afago do cosmos, contra a frieza e fealdade das eternas angústias do quotidiano.


Apenas concluo que o congreganismo jesuítico gerou a insurgência anticongreganista demoliberal que, por sua vez, provocou a ressurgência antilaicista, com o habitual ciclo de persigangas que não tem permitido que todos os homens de boa vontade possam ser homens livres. E poucos reparam que não é possível inventar o que já está inventado nem descobrir o que já está descoberto.


Por mim, que subscrevo Marco Aurélio, Erasmo, Montaigne e Kant, apenas devo concluir que, por isso mesmo, só sei que nada sei. Porque pensando, apenas continuo a procura do que nunca irei achar, nesta viagem para a raiz do mais além, onde, felizmente, nunca haverá o fim da história. Fica a esperança, porque os homens são seres que nunca se repetem, vivendo acontecimentos que também nunca se repetem.


Cada um de nossos eus, perdido nas suas circuntâncias, apenas pode ligar coisa com coisa, compreendendo o todo pela intuição imediata da essência. Logo, só por dentro das coisas, pela imanência, é que as coisas realmente são a situada transcendência que nos permite a cultura humanista.


Se calhar Deus é o mundo e o cosmos vai além daquilo que solitariamente pensamos, apesar de cada um continuar a ser o único sempre centro do mundo que sempre e para sempre podemos conhecer.