a Sobre o tempo que passa: Reagindo a conspiratas de neopides e neokapagêbês...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

15.11.07

Reagindo a conspiratas de neopides e neokapagêbês...


Espreito o jogo dos telejornais requentados, sobretudo a ressaca dos grupos de pressão que procuram localizar grandes aeroportos no centro dos repectivos interesses. Noto, curioso, como agora apenas aparecem consultores e grupos de estudo, todos com ilustres professores do ensino público, uns vestindo a farpela dos privados que os contrataram, outros, a dos públicos que os nomearam. E lá desfilam os argumentos, quase tão estúpidos como daquele professor também público, mas sócio de muitas coisas privadas, incluindo as que concorrem com os sectores públicos, dos quais ele agora se arma em defensor, contra os liberais que se revoltam face ao confusionismo das acumulações e dos suplementos de vencimento, dados aos amigalhaços dos escribas. Por isso, fecho a televisão.


Reparo que sofrido democrata é aquele que se assumiu como tal quando procurava a libertação por entre as cadeias dos sinais repressivos do autoritarismo. Aquele para quem a política será sempre desobediência e dissidência, força que vem de dentro e que procura o mais além no companheirismo do bem comum. Política nunca pode ser mera conquista e manutenção no poder, através de jogadas de soma zero, maquiavelismo de caserna, verso épico na guerra de facções ou ilusão mobilizadora do fanatismo, com muitos vapores de vinhedo entre facas longas de vingadores e denunciações de ouvida.


Política sempre foi sinónimo de democracia, entendida como norma (esquadro, na etimologia), regra (régua, na origem latina da palavra), paradigma (modelo), isto é, procura do melhor regime, pela imperfeita procura da perfeição. Nesse esforço que nos pode levar à conversão interior, assim de dentro para fora, crescendo por dentro a caminho do cosmos, daqui para o mais além, onde navegar é preciso, viver não é preciso. Onde o submeter-nos para sobrevivermos apenas é instrumento do termos que lutar para que seja possível a inteireza do vivermos.


Porque sem crenças, princípios e valores, sem essas íntimas convicções, seremos sempre multidão solitária que os manipuladores do descontentamento poderão transformar em carne para canhão, ou em "manifes" da revolução, batendo palmas a um qualquer "conducatore" que se assuma como condestável da nação, grande educador do proletariado, ou ditador, dito filósofo, nessas habituais personalizações do poder a que costumam levar as massificações multitudinárias, do quem não está pelo vencedor está contra o processo histórico e deve ser internado nos "gulagues" com que pretendem conter os dissidentes, condenados por actividades contra-revolucionárias.


É, portanto, natural que, com esta idade, veja comunistas e fascistas, disfarçados mas não arrependidos, de mãos dadas pelo mesmo manual dos inquisidores. Por isso, prefiro continuar a liberdade de ser do contra, esse homem só que faz do pensamento o centro do mundo, que faz de si mesmo uma imitação do cosmos e, do cosmos, uma espécie de homem em ponto grande, assim entre o micro-cosmos e o macro-antropos. Porque as essências só se realizam pela existência, a transcendência pela imanência e só por dentro das coisas é que as coisas realmente são.


Política sem humanismo não passa de macacada, mesmo que se pinte de império ou de teocracia. Porque no império não há autonomias pessoais, mas simples comunidades que perdem a vontade desse querer ser independente, como o ousam as libertações nacionais. Há apenas comunidades imperfeitas que se vão diluindo nas redes feudais do proteccionismo, quando preferem a escravatura doce da paz imperial e da sua bela ordem ao risco da libertação e ao imprevisível da aventura da liberdade institucionalizada.


Sem esses pedacinhos de acrescentamento humano não há projecto colectivo que possa gerar o civismo da unidade na diversidade, nessa possibilidade de podermos aceder ao universal pela pluralidade das diferenças. A liberdade nunca foi concessão do príncipe, dádiva que venha de cima para baixo, ou distribuição autoritária de valores a partir do vértice do aparelho de poder. Liberdade sempre foi conquista do homem só, esse que é capaz de espremer, gota a gota, os restos de escravo que, para sempre, hão-de permanecer dentro de cada um.