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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

10.9.08

Todas as viradeiras têm os seus intendentes, os seus pines e os seus manicas


Mais um dia, mais uma insuportável dor, sempre que tenho que aturar o quotidiano deste governo dos espertos, onde, em defesa dos altos hierarcas, nomeados por favor político ou por cunha do chefe, da facção, da seita e, sobretudo, da congregação, o que o príncipe diz é o que tem valor de lei ("quod princeps dixit legis habet vigorem"), e onde o príncipe está isento da própria lei que faz para os outros ("princeps a legibus solutus"). Mas onde há outros que são de primeira, os da sociedade de corte e os apoiantes da nossa lista vencedora, e outros que são de segunda, os derrotados, os que estão sujeitos à tolerância zero de um Livro V das Ordenações, onde continua a ser crime pôr os pés no chão. 

Porque as viradeiras têm sempre os seus intendentes que acumulam o cargo com a administração das alfândegas. Que às segundas, quartas e sextas são polícias do pensamento. E às terças, quintas e sábados, ilustres tecnocratas. Para, no domingo, agradecerem ao senhor, na ressaca da orgia da vépera. Todas as viradeiras têm os seus pines e os seus manicas, onde eu-pine, pombalista, e de esquerda, posso arrassar o povo da trafaria, porque, sendo da seita, não posso ser contra o povo, e onde eu-manica, todo marianista, recordado dos tempos da bentina semineira da ungitura e da tonsura, posso mandar o mafarrico do marquês para o desterro, porque o novo chefe me mandou refazer o pino e manicar noutro louvaminheirismo e sempre vai sendo tudo no outro e neste regiminho. 

Mais um dia de insuportável dor, especialmente quando ontem contava as verdades da persiganga a um ilustre hierarca deste regime, dado ao sincero pluralismo, autêntico defensor do Estado de Direito, e realmente pouco solidário com as espertezas da administração colonial otomana, mesmo quando assume a dimensão de vizir. Porque ele me dizia que tais realidades que lhe descrevia só poderiam fazer parte da ficção. Quando lhe mostrei as provas, preto no branco, facto sobre facto, comparando-as com a prática salazarenta, ele apenas confirmou: agora, de facto, é bem pior. Ao menos, a lei de antigamente dava cobertura à hipocrisia...