a Sobre o tempo que passa: Uma imagem vale mais do que mil palavras. Ou de como a moralidade deve superar a legalidade

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

12.9.08

Uma imagem vale mais do que mil palavras. Ou de como a moralidade deve superar a legalidade



Prestes a quase poder cumprir, entre os Jaus, o exemplo de vida de Luís Vaz de Camões, vou captando muitos sinais de um sistema em curto-circuito, onde algumas imagens valem mais do que imensos discursos analíticos. Felizmente, alguns magistrais jornalistas conseguem lançar, através das redes radiotelevisivas, paradigmas de uma geração que nos vai enredando em palavras que não reflectem as lições de um Pascoaes, de um Cortesão, de um Pessoa, ou de um Agostinho da Silva, das tais palavras de um discurso de justificada resignação que talvez não correspondam à pátria de Camões ou de Fernão Mendes Pinto. É por isso que um profundo impulso me manda procurar Portugal fora de Portugal.

Com efeito, as nossas magistraturas tiveram, ontem, depois do jantar, direito a mediáticas intervenções. Assisti integralmente a uma, a da quarta figura do Estado, depois de Aníbal, que não é Barca, e depois de Gama, que não é Vasco, e até apanhei a parte final de outra cimeira do Ministério Público, a que não é Cândida. Fiquei sumamente esclarecido e profundamente preocupado, principalmente depois de ler outros magistrais, mais presos ao chão dos processos. 



Um dizia que não falava em filosofia do direito porque preferia a ideologia da corrente filosófica pragmática e que só se preocupava com os factos, segundo a corrente filosófica de Comte, mas quando começou a enredar-se na especulação logo caiu na filosofice da conversa de viagens de quem foi a Paris, para, depois, dizer que os povos da Europa do Sul, da tal honra mediterrânica, donde vieram Platão, Aristóteles e Cícero, não enraizaram a autoridade,  autoridade vinda de auctoritas que eles inventaram e que nunca teve nada a ver com a Ordnung que as brumas do norte fizeram degenerar. Não deixou mesmo de acrescentar que tal se devia a não ter havido recepção do "imperativo categórico kantiano". Mário Crespo, tentando descodificar a imensidão abstracta, logo o interrogou sobre o que era isso. O interpelado reagiu com alguma irritação e disse que não estava a fazer um exame. Mas logo se recompôs e misturando a palavra ética com qualquer outra coisa, disse que isso tinha a ver com o respeito dos direitos dos outros, saiu da legalidade e tentou passar para a moralidade. 

Lembrei-me de defender a honra mediterrânica e de manter-me neokantiano, em nome de ibéricos como Ortega y Gasset, António Sérgio ou Cabral de Moncada. Sublinhei na memória os juristas da Roma clássica. Os juristas do imperador Justiniano. Os fundadores de Bolonha. De S. Tomás de Aquino, de Acúrsio, de Bártolo, dos glosadores e dos comentadores. E do nosso João das Regras. Cheguei mesmo a João Pinto Ribeiro e Francisco Velasco Gouveia. Mas parei em Manuel Fernandes Tomás que é o meu exemplo de magistrado, da tal honra misturada com a inteligência que prestigiou o partido dos becas. Pensei em Espinosa, no seu filho Rousseau, de cuja mistura nos veio o iluminismo de Kant, que assumo em razão prática, e, como "homme du midi", fiquei orgulhoso deste mar interior pleno de luz, onde sempre houve gente que dialogou, entre pagãos e cristãos, papistas e maçons. Apenas concluo que a poesia é mais verdadeira do que certa interpretação da história. Já houve um ministro, que ainda o é, que, quando era ministro das polícias, disse que elas não eram a sua polícia. Que não haja em Portugal autoridades que possam dizer que este não é o seu povo, o seu direito, a sua civilização! Uma geração que queira a utopia do sem lugar pode acabar sem tempo e resignar-se ao situacionismo de um estado em minúscula que é aquele a que chegámos e não o Estado-Razão que devia pretender derrubar a Razão de Estado! 



O que disse a quarta figura do Estado, a que chegámos, sem deixar de ser verdade, é pouca uva para tanta parra. É evidente que o supremo magistrado sabe que isso do imperativo categórico pode ter a ver com o exemplo. E, da televisiva  conduta dele, não se conseguiu extrair a máxima universal de que estávamos à espera. Por isso, fiquei aliviado com o fim da perlenga e passei para outro canal, onde perorava outra alta figura da magistratura, mas da tal outra. Fiquei, pelo menos, a saber que a ilustre senhora, juntamente com o marido e a filha, durante toda a vida, nem sequer viram cinco minutos de futebol, devido ao defeito do daltonismo, pelo que não sabem distinguir o azul do verde e o vermelho do preto e branco que dá xadrez. Apenas me foi dado confirmar que lá se foi mais uma oportunidade perdida para as magistraturas se aproximarem do povo.

Sonhei. Sonhei que o contrato social (Staatsvertrag) devia transformar-se na razão pura prática, como universal legisladora (rein rechtlich gesetzgebende Vernunft), em ideia pura com fins regulativos. Mas, para tanto, a própria vontade geral (allgemeiner Wille) tem de tornar-se a própria vontade racional de cada um dos membros da comunidade, considerados como personalidades autónomas no acto de estas obedecerem ao imperativo categórico e de se tornarem, como tais, legisladoras duma legislação universal

Porque, exacerbando todo o processo jusracionalista, Kant transformou assim o direito natural numa coisa que é imanente ao homem, em algo que  é por ele querido e criado, deixando de ser um transcendente, enquanto alguma coisa exterior que era imposta ao homem.

Porque o mundo do dever‑ser, da razão‑prática, é o domínio da faculdade activa, do agir, o mundo dos fins e do valioso, dado que, pela ética, é possível ultrapassar o mundo dos fenómenos e aceder ao absoluto, à zona das ideias inteligíveis, das leis morais, marcadas pela racionalidade e pela universalidade.


No sulíssimo e mediterrânico Hernâni Cidade, notei que, ao contrário de Descartes, que tomava o espírito como uma passiva placa fotográfica, em que a realidade se projectava sem deformação, é este agora, como activo aparelho de projecção, que povoa a névoa exterior, que veste o nómeno com as formas subjectivas que resultam da sua mesma constituição dele, espírito. Assim, na supremacia do racional se organiza o novo, copernicano sistema entre o “eu” e o “não‑eu”. Não é o objecto que projecta a sua “ideia” no diafragma espírito; é a “ideia” criada pela “actividade do espírito”, que projecta o “objecto” que cremos existir fora de nós. “In principio erat verbum et verbum caro factum est”: "no princípio era o verbo(ou a ideia nele representada) e o verbo tornou‑se facto” (ou a realidade que julgamos objectiva)

Porque em Kant, a forma, o a priori, aquele absolutamente necessário e universal, é o imperativo categórico, o age de tal maneira que a máxima da tua vontade possa valer sempre, ao mesmo tempo, como princípio de legislação universal. O dever formal de realizar sempre o fim. Um imperativo categórico, também dito moralidade, dado que a lei moral é um facto da razão-pura, um a priori, uma regra que é preciso respeitar porque é precisa, algo que se impõe ao homem categoricamente, uma lei que tanto vincula o Estado como os indivíduos, consistindo na realização dos direitos naturais no direito positivo.

Mais: o imperativo categórico, a moralidade, distingue-se da legalidade (Gesetmässigkeit) ou do imperativo hipotético, dizendo respeito às acções que são levadas a cabo por força de uma pressão exterior, de uma pena ou de um prazer.

Porque, os deveres que decorrem da legislação ética não podem ser senão deveres externos, porque esta legislação não exige a Ideia deste dever, que é interior. A legislação ética integra o móbil interno da acção (a Ideia do dever) na lei.

A política está assim submetida ao imperativo categórico da moral e toda a ordem política legítima só pode ter como fundamento os direitos inalienáveis dos homens, os chamados direitos naturais. Deste modo, o Estado de Direito e o governo republicano, aqueles que são marcados pelos princípios da separação de poderes e do sistema representativo, devem conduzir os homens para a moralidade universal, para a constituição de uma república universal ou de uma sociedade das nações.

Nestes termos, porque os homens são sujeitos morais e a moral é universal, eles são todos iguais em dignidade. Logo, o Estado de Direito, que consiste na submissão do direito à moral, tem vocação para tornar-se universal.

Aliás, o direito tem a ver com o domínio da legalidade, da concordância de um acto externo com a lei, sem se ter em conta o móbil, enquanto uma lei ética exige moralidade, isto é, o cumprimento do acto por dever.

Pelo contrário, neste domínio da razão‑prática ou do dever‑ser, o a posteriori, o elemento material, aquela percepção cuja validade se reduz ao campo da experiência, é constituído pelos conteúdos concretos e históricos das diversas interpretações do bem e do mal.

Desta maneira, todo o direito passa a ser uma pura forma que se expressa pela lei do dever e pelo princípio da liberdade: actua de tal maneira que a máxima da tua conduta possa servir de lei universal para todo o ser racional.

Compreende-se, assim, que Kant, em 1797, nos Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito, defina o direito como a totalidade das condições pelas quais o arbítrio de cada um pode concordar com o arbítrio de todos os outros, segundo uma lei universal da liberdade. De uma liberdade considerada como aquele único e originário direito que compete a todos os homens só por força da sua humanidade, dado que o homem é livre se não precisar de obedecer a ninguém, mas apenas às leis. Pelo que, se a minha acção, ou, em geral, o meu estado pode coexistir com uma lei geral, então, qualquer um que me impeça de realizar algo cometerá uma injustiça.

A obra em causa, constitui a primeira parte da Metafísica dos Costumes, com uma segunda parte referente aos Princípios Metafísicos da Doutrina da Virtude, onde se procuram as leis a priori pelas quais se determina a chamada vontade metafísica do direito, isto é, o sistema de leis jurídicas dimanadas da razão. 

Essas leis a priori constituem aquilo que Kant designa por direito racional (Vernunftrecht), sendo resultantes da actividade formalizada da razão.

A tal procura da imanência que substituiria transcendência impositiva do anterior direito natural, onde procurava extrair-se da natureza, enquanto algo que era anterior e exterior ao homem, uma ordem da conduta humana.

Neste sentido, chega mesmo a proclamar que a coacção equivale à liberdade: se certo uso da liberdade se converte num obstáculo à liberdade segundo leis universais (isto é, se é injustiça), a coacção que se opõe, enquanto impedimento de um obstáculo à liberdade, coincide com a liberdade segundo leis universais, ou seja, que é justa, pelo que direito e capacidade de constrangimento significam o mesmo

Por outras palavras, como assinala Cabral de Moncada, o direito deixou de se impor do exterior do homem, passando a impor-se-lhe do interior. Deixou de estar ancorado num ser transcendente ou numa natureza repleta de momentos empíricos, para ser considerado numa simples lei da razão

Uma razão que não é um conhecimento teorético já feito, nem tão pouco de normas de moral ou de estética já susceptíveis de aplicação imediata, mas simplesmente uma força capaz de se elevar até esse conhecimento e normas. Mostrou que ela era somente um complexo, não de respostas, mas de perguntas e de pontos de vista, com os quais avançamos para os dados empíricos.


Para que o pragmatismo dos indexadores consigam captar o que digo, deixo, como marcadores, as palavras Noronha do Nascimento e Maria José Morgado.