a Sobre o tempo que passa: dezembro 2009

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.12.09

Uma dúzia de breves princípios fundacionais para combate de concepções do mundo e da vida


1

Balanços do ano, balanços da década, profecias do que há-de vir e tudo ao ritmo dessa hiper-informação que não informa, com notícias históricas de hora a hora, semanários políticos de fim-de-semana e revistas cor-de-rosa, para colorirmos o que é cinzento...


2

De uma coisa tenho a certeza: tudo vai continuar como dantes, neste mais do mesmo de uma decadência que, entre nós, costuma durar décadas, quando apenas se vislumbram causas externas de crises financeiras e políticas, mas onde só existe aquilo que se pode medir em quantidades e gráficos, quando o problema é espiritual e metafísico, porque só por dentro das coisas é que as coisas realmente são.


3

Penúltimo dia do ano a que chegámos, com menos desdivinização e mais desencantamento, naquilo que alguns continuam a qualificar como choque de civilizações, só porque temem peregrinar pelas próprias origens. Chegariam à conclusão que não é a história, progressista ou reaccionária, que faz o homem, mas o homem que faz a história, mesmo sem saber que história vai fazendo...


4

O pensamento politicamente correcto deste último meio século sempre disse que caminhávamos para um fim da história, como muitos amanhãs cantando, em nome da revolução ou da contra-revolução. Os respectivos sucedâneos preferem o planeamentismo e dão-lhe hoje o novo nome de investimento público. Por mim, continuo a rejeitar o construtivismo...


5

A história é um ditadura de factos, de fenómenos resultantes da acção do homem concreto, gerando-se sucessivas ordens comandadas por uma espécie de mão invisível, onde o homem através de meios não desejados por ele, nem projectados por ninguém, é levado a promover resultados que, de maneira nenhuma, fazem parte das suas intenções.



6

Os detentores do poder são completamente indiferentes ao bem estar ou ao mal estar dos que não têm poder, excepto na medida em que os seus actos são condicionados pelo medo


7

Os princípios são o eixo da roda da mudança, pelo que, alterando-se a matéria, terão de variar as consequências que deles podem extrair-se.


8

Para um veículo avançar no caminho que o seu condutor determinou, tem que andar sobre rodas que monotonamente giram sempre em torno de tal eixo.


9

Não é por acaso que a roda é o símbolo antigo da corrente do devir, do círculo da geração. Tem um centro imóvel, um eixo, símbolo da estabilidade espiritual, mas movimenta-se, apesar de o eixo se manter íntegro, porque representa a permanência de certos valores.


10

O verdadeiro liberal é, por natureza, um reformador social, o paladino do humilde explorado e o adversário de todos os altos interesses dominantes e predatórios


11

Os capitalistas não são os únicos a terem privilégios egoístas e predatórios; o operariado bem organizado, abrangendo muitos milhões de trabalhadores, pode também ser predatório e perigoso ao bem-estar comum


12

Repetindo: o verdadeiro liberal nunca diz isto é verdade, apenas sendo levado a pensar que, nas circunstâncias actuais, este ponto de vista é provavelmente o melhor.


Os últimos oito parágrafos são mistura de citações: Tocqueville, Toynbee, Russell, Hill Green, Ferguson, Smith e Hayek. Já nem sei distingui-los de mim mesmo. Uma questão de fé na aventura da liberdade, contra os revolucionários frustrados que nos reaccionarizam, neste caminho para a servidão...


29.12.09

Deliberados reencontros. De Teresa Vieira


DELIBERADOS REENCONTROS

Olhei para a noite e repensei nas palavras do António Alçada naquele nosso almoço em Sintra. Pensei nelas, num sentido histórico, tal como as interpretei. Creio que na historicidade do Saber, há bem mais do que a esperança na mudança da vida que se vive.

Em rigor, acredito num aperfeiçoamento não interrompido, num formar-se uns aos outros dos sentires e nos entendimentos nucleares, o que torna possível estabelecer condições de exigência inegociáveis face ao que nos rodeia; mesmo que a inegociação só exista de nós para nós, já é um princípio de luta cerrada ao que nos desgosta os dias.

Um dia, chegado a Veneza, caiu um amigo comum, o Luís, numa profunda e negra melancolia. Realçámos, eu e o António Alçada, que o que o tinha salvado na estada, fora a ingenuidade que por lá não encontrou. Salvou-o que todas as gondoleiras fossem meretrizes. Salvou-o que a terra tenha sido originariamente um mar, ou o inverso. Salvaram-no as imprecisões lucidas, o eu vejo tudo e já não sou amante. Salvou-o a construção de um carrocel em forma de árvore numa das ilhas que visitou perto de Murano. Afinal, só assim e sem dono nem eira certa, soube cuidar da dinastia dos cantores de rua que por lá encontrou.

Lembrámo-nos, neste almoço, que uma das canções dos cantores de rua, deixara o Luís muito impressionado pois que o refrão dizia numa generosa tradução «Ó amados meus, perdoem-me de que sou culpado? Que mais quer a vossa vida de preço trivial para me condenar depois de atado?»

Olhei a noite de novo e sorrio à pseudo-obediência de que todos somos capazes sem análise de culpa. Recordo agora as palavras de Pascal: «o género humano deve ser considerado como um mesmo homem que subsiste sempre e aprende continuamente».

Nesta constatação, António, também está o sorriso de Deus, ou como dizias, Ele ri-se mas é daqueles que andam por aí a fazerem o mundo como está.

Teresa Vieira

29.12.09 – sec.XXI

28.12.09

Mestres-pensadores e engenheiros de conceitos, da cor do burro quando foge...


Há uma geração lusitana que se sente órfã, desde que acabaram os manuais de Organização Política e Administração Nacional (OPAN) dos dois últimos anos do ensino pré-universitário, dos tempos do livro único, e que geraram, por reacção, os mestres-pensadores das extremas, esquerdas e direitas, que agora vão escrevendo memórias...


Não faltam sequer os organizadores dos compêndios de doutrinas sociais e ideologias políticas, onde os plagiadores e filósofos da traição nos encarquilharam, para que os sobrinhos e afilhados os copiassem em argumentários pseudo-revolucionários, passados a "stencil", todos se irmanando na procura dos ontens que mandam, disfarçados de amanhãs que cantam...

Política sem metapolítica é um vazio de alma que qualquer engenheiro de conceitos consegue transformar em falso sistema fechado, e reduzir a um manual de planejamento estratégico, para que apareça um general de alcatifa, ou um catedrático de espiões, invocando o Ocidente, a luta contra o terrorismo, ou o Estado de Segurança Nacional...


Há uma legião carreirista de idiotas úteis que procuram o conforto do posto de vencimento nessas zonas putrefactas da subsidiologia estatista, da universidade acrítica e do negocismo corrupto... Eles adoram teorias da conspiração e já vislumbram nigerianos de turbante em cada banco do avião...


O que resta da presente república dos portugueses continua a ser arrastado por cadáveres adiados que um quarto de hora antes de morrerem continuam emitindo arrotos de música celestial. E ninguém os denuncia como sepulcrais calhaus pintados da cor do burro quando foge, isto é, do pensamento dominante, à Júlio Dantas, em épocas de decadência...

27.12.09

Cintilações. De Teresa Bracinha Vieira


CINTILAÇÕES

Um dia espreitei Alexandre o Grande. Ele sabia do seu posto de vigia que mundos eu espreitava e que ele unira como uma tribo que em comum afinal possuía a religiosidade.

Um dia espreitei Alexandre o Grande e senti o quanto ele se separou dos seres intermédios na busca do significado armilar dos mundos com vocação de abraço.

Um dia espreitei Alexandre o Grande e entendi um especial significado sagrado e simbólico de matar para entreabrir portas como quem oferece o beijo quente do êxtase inaugural de um conhecer.

Um dia espreitei Alexandre o Grande e toquei no início dos caminhos dos grandes sistemas que explicam o que se prescreve e se permite e o quanto a história nos fala também num tom piedoso e repreensivo como quem nos diz que afinal, um dia, não se pode evitar fazer de outra maneira e só na caça cumprimos os vestígios do nascimento do homem, sempre que o homem não mate apenas para obter a presa.

Um dia espreitei Alexandre o Grande e ciumei o seu perceptor Aristóteles e a sua Macedónia e o seu ímpeto de unir impérios e fundar Alexandria onde hoje procuro uma vez mais o Livro.

Um dia espreitei Alexandre o Grande aquele que expandiu o helenismo também rumo ao Oriente, aquele que erigiu Bucéfala no actual Paquistão, em memória do seu fidelíssimo cavalo que se assustava com a própria sombra e se deixou domar contra o Sol: cintilações.

Um dia espreitei e escutei Alexandre o Grande através do Somewhere in Time, disco da banda inglesa Iron Maiden e creio ter intuído o Helesponto, a actual Dardanelos, estreito na vida de cada um com o grande passo por dar.

Um dia, eu quero espreitar cada um a desembainhar a espada com a qual cortará o nó górdio que impede a revelação das múltiplas verdades, esse que impede a alma do ofício do entendimento, e sem nunca revelar o mistério completo, eu quero espreitar a grande nobreza a prometer-se de novo no Ano que chega, a despedir-se do ano que finda e a cumprir-se na notícia do tempo que todos os seres vivos têm para a mudança.

Um dia espreitei Alexandre o Grande e soube disso na caça de uma palavra evocativa do…Que sabias realmente?

Teresa Ribeiro Bracinha Vieira

27.12.09

25.12.09

Meia dúzia de notas heterodoxas, sem ateísmo nem agnosticismo, de acordo com o dia


Um novo Buda está a ser desenterrado no Afeganistão. A bomba dos talibãs tem nova resposta dos mistérios antigos. Não tardará que se confirme: afinal o Buda foi copiado do deus grego Apolo. Afinal, todas as civilizações universais são filosoficamente contemporâneas. Viva o fundador do abraço armilar: Alexandre o Grande!


Alexandre, Alexandria, Mediterrâneo, Persas que deram aos Árabes a Al-Kimiya e essa mistura de estoicismo e neoplatonismo que provocou Camões e o nosso Renascimento manuelino, contra o dualismo do corpo e do espírito, nessa arte que procura a eternidade contra os dualismos, em nome do "ora et labora", de que resultou Newton e a ciência inteira...


Os símbolos cristãos da natividade e da imaculada concepção, quando deixam a rotina da liturgia, assumem aquela dimensão poética de uma infância que pode dar além, mesmo para os que não são crentes do povo encabeçado pelo Santo Padre. Este estes e os ateus e os agnósticos, há um largo espaço de complexidade, insusceptível da tenaz de certo discurso maniqueísta. Mas todos podem ser homens de boa vontade!


Quando a Igreja de Roma optou por antedatar o dia tradicional de Natal, colocando-o por cima do solstício, não o fez por mero oportunismo. Seria também injusto monopolizá-lo com um banal fundamentalismo. Unir essa religião revelada com os mistérios antigos é convergir em universalismo!


Por mim, sou crente, isto é, não sou ateu nem agnóstico. Só que crenças sempre houve muitas, até as dos que acreditam que pode haver pluralismo entre a unicidade absoluta, que está lá em em cima, e a divergência da vida e da historicidade, que está cá em baixo, entre o macrocosmos e o microcosmos que o pretende imitar pela ascensão mística da conversão...


A metafísica não é monopólio de nenhuma religião revelada. Por isso vou reler esse magnífico livro de José Régio, "Confissões dum Homem Religioso"...

24.12.09

África, mulher - mãe de consistência. Um poema de Teresa Vieira


    África, mulher - mãe de consistência


    África

    Que o teu criador não te fez à semelhança de nada

    África

    Generoso enigma da razão solta

    Quando antes da partida já meu corpo se quedava

    África

    Meu ciclo de esperança

    Minha sedutora ladra que me roubaste de mim

    Para me levares às essências

    África

    Renovadora incessante do desejo

    Extensão sólida, miragem real

    Com que critério viver-te ?

    África

    Minha emergência de reconciliação

    Meu grande olhar iniciático

    Às tuas formas adiro e descalça

    Obedeço ao teu pulsar

    África

    Meu coração central

    Tua receita secreta

    Aventura de mim a ti a erguer-se do nada

    África

    Meu frágil dormir

    Quando teus sons próximos e longínquos

    Me dão a ilusão do silêncio

    Enquanto os bichos homens, bichos mulheres

    E bichos por superioridade

    Feitiçam tuas noites de fortes cheiros

    Ai! África mulher-mãe de consistência

    Tua lei, minha morte satisfeita

    África

    Sem intervalo

    Melodia lavrada à extensão de perder de vista

    Iluminura na bíblia dos meus dias

    E sempre novas maravilhas atiçam

    Danças de alquimia ao fogo

    OH! África

    Conclusão do meu destino

    Recorte do meu corpo

    Espírito exposto ao tempo próprio

    Começo sem limites onde já descanso meu cansaço

    África

    Das cores fortes com nome

    Ser tua amante sob as luas

    É saciar minha avidez chamada mundo

    OH! África

    Das trovoadas que rebentam em partos de vida

    Universidade inesgotável de saberes

    Deixa que enfim

    Por mim mesma

    Evoque o imperativo de me aceitares

    Um pouco

    tua.

    Teresa Vieira

22.12.09

E tudo o vento vai levando, neste cantinho de moinhos decepados


Partido onde não há votos, todos ralham e ninguém tem razão. Dizia-se do CDS freitista: "um grupo de amigos que cordiamente se odeiam". Repete agora Santana sobre o PSD é "uma federação de pessoas que se detestam". É tudo um problema de fome.


Foi, portanto, penoso ver, ontem, a Drª Manela, armada em Sancho Pança, num discurso para telejornal, não perceber o que ela própria tinha escrito, quando atingia o clímax comunicativo.


Foi, aliás, directamente proporcional ao discurso de Sócrates, no mesmo palácio dos jantares de Natal, numa caricatura de Quixote, elogiando Sérgio Sousa Pinto e Ricardo Rodrigues.


Todos eles são combativos. Pena que faltem moinhos, com tanto ventania...


Hoje foi Sócrates II, na casa da democracia, fazendo má propaganda. Porque a boa propaganda é aquela propaganda que não parece propaganda. Temo que, entre os situacionismos e as oposições, continuem a faltar lugares comuns e sem estes não pode haver diálogo. Temo que os adversários se transformem em inimigos...



21.12.09

Mais aventura e mais pragmatismo, para sonhadores activos


Não salvámos o mundo em Copenhaga, Obama não foi o anjo do Quinto Império, e Deus não fez milagre, como dizia o presidente Lula. A próxima cimeira será no México, onde o aquecimento poluidor é mais sentido. Se tivermos menos mania das grandezas e soubermos distinguir clima de poluição, poderemos evitar o estrondo de tratados com sabor a concertos do novo Maio 68. Grão a grão, a república universal pode vencer!



Continuam os restos comemorativos dos dez anos de passagem da bandeira em Macau. Noto as televisivas intervenções do macaense presidente do Instituto Internacional de Macau e do goês presidente do Instituto do Oriente. Tudo palavras do habitual sincrético do chamado luso-orientalismo, ressaltando-se o "time is money".

Prefiro reler Jorge Dias e Sérgio Buarque de Hollanda. O primeiro diz que o sonhador activo, que marca o carácter nacional é o exacto contrário do tal "time is money". O segundo diz que o nosso individualismo tem a ver com a aventura, pela visão de um Paraíso, misto de riqueza mundanal e beatitude celeste. Não costumamos rimar com comemorativismo e subsidiologia.


Sérgio Buarque (na imagem), o pai do Xico que queria desaguar no Tejo e dizia que a festa era linda, bem reconheceu o essencial da nossa permanecente crise: a grande dificuldade de adaptação às virtudes do cálculo que estão na base do espírito da globalização apátrida. Nunca funcionámos com planos colectivos, mas apenas com a procura do paraíso pelos homens concretos, com aventura e pragmatismo...

16.12.09

Do sebastianismo científico ao sebastianismo merceeiro, entre verbeteiros e amanuenses


Alcácer-Quibir ainda nos mata. Depois do "sebastianismo científico", o do esquerdismo marxiano ou fascitóide, e do sebastianismo merceeiro, o da ditadura das finanças, há muitos que anseiam por um qualquer invasor suave que nos traga "a bela ordem", sobretudo se ele chamar "libertação" à efectiva ocupação heterónoma das coisas e das mentes.

Sim! Tudo anda irascível, sempre à procura do adjectivo demoníaco que dê uma desculpa para ninguém dialogar com o adversário. Todos parecem carecer daquela ciência certa do ideologismo e daquele poder absoluto que adora pisar o opositor com um insulto. Será que o novo D. Sebastião não passa de um contabilista que se assuma como disciplinador externo? Mas foi na Irlanda que baixaram consensualmente os vencimentos. E foi na Grécia que Medina Carreira se vestiu de líder do governo socialista.

Aqui, o essencial no poder conquistado (o estadão a que se chegou) é o dito procurar manter-se, com muita música celestial disfarçando o "apartheid". Quem diz organização, diz necessariamente oligarquia, isto é, a degenerescência da aristocracia, e na véspera do cesarismo, como é típico de todas as ditaduras da incompetência, plenas de bonzos, endireitas e canhotos.

Cumprido o ofício de corpo presente, como amanuense da máquina decretina de avaliações e processualizações, reparo como continua aquele incomemorável da I República, quando o ministro da instrução nomeava um capitão para reitor de uma universidade pública. Especialmente quando o dito, ex-ministro, aliás, tentou ser o líder do próprio 28 de Maio.

Hoje não há nomeações, mas eleições. Só que, em muitos cargos electivos, o colégio eleitoral é mais do que censitário, dado ser uma colecção de elegíveis, definidos pelos restritos electivos que os previamente eleitos nomeiam, para que, de eleitos, passem a elites que nada têm a ver com o mérito.

Aqui e agora, todos os mensageiros têm que ser processualizados, encubados, enquadrados pelos sargentos verbeteiros e pelos falsos chefes de repartição. Calem-nos! Calem-nos! Só o nosso venerando chefe é que tem direito ao despacho, a colocar o nome de três ou quatro membros do grupelho no buraquinho da sagrada grelha que lhes dá tacho. Cala-te, senão, não, senão não comes nem vences. Nós somos a verba e, contra a verba, não há verbo que mantenha o pio. A malta corta-o e este crime costuma compensar. Amen! Amen!

15.12.09

Do poder nu aos anjos decaídos


Hoje, concluirei este habitual ciclo de intervenções públicas em actos de extensão universitária, desde arguição de dissertações e lançamento de livros a outros discursos que nunca divulgo, no "facebook" ou no blogue. Pelo menos, fico mais livre para outras intervenções, sobretudo para fazer a reportagem íntima de certas actividades daquele sacristão que perdeu o sentido dos gestos e a que chamamos regime.


Ainda por estes dias, em vários passos perdidos dos palácios da estadualidade, confirmava esta degenerescência íntima do regime, naquilo que qualifico como privatização clandestina de um antigo serviço público, pela sublimação da velha engenharia feudal da cunha, destruidora da meritocracia.


Os exemplos sagrados e profanos dos recentes episódios, de anjos que, depois da queda, se renomearam, metem ministeriais sumidades dos tempos crepusculares do antigo e do recente regime. O tempo está cinzento e gélido, com muitos cadáveres adiados que, mantendo a categoria do sacristão, se assumem como cardeais desta rede de micropoderes em que nos fragmentámos.

Bertrand Russell falava no mero poder nu, naquele que exprime uma forma de poder pré-político ou não político. Trata-se do poder que se exerce sem aquiescência dos submetidos, durante a conquista, por ocasião da colonização ou através do totalitarismo. Outros referem o poder totalitário, o que é marcado pela "Wille zur Macht", o poder pelo poder, uma vontade que se fecha sobre si mesma, quando o poder deixa de ter um fim que lhe seja superior, dado que o fim do poder deixa de lhe ser exterior.

Prefiro recorrer ao conceito de anjo decaído, desse que, anteriormente, era um anjo bom. Porque o pecado é uma queda, consiste na livre opção destes espíritos criados, que radical e irrevogavelmente recusaram o Reino. E como invocava São João Damasceno:
não há arrependimento para eles depois da queda. Continuo a preferir Albert Camus: o espírito revolucionário recusa o pecado original. E assim se atola nele. O espírito grego não pensa nisso. E deste modo lhe escapa.

14.12.09

O vazio de metafísica e a falta de bom senso, ou a democracia apoiada pelo défice democrático...


Leio a sondagem Aximage no Correio da Manhã: PS tem 32,5% e PSD 24,4%. CDS já vai nos 12% das intenções de voto. Cavaco volta a subir. Compreendo a propaganda do TGV. Entendo Almeida Santos quando reconhece a falta de bom senso de todos. Até do próprio reconhecedor do óbvio.


O sinal dado pelo bolinho de mel do jardim madeirense em São Bento, se é menos do que um queijo limiano, pode ameaçar a funcionalidade da confraria do azeite porteira. Até o PS já concluiu que a democracia pode funcionar com o apoio do que apodava como défice democrático. A velha raposa de Alberto João tornou-se lebre. Não tardará que todos tenham de engolir mais sapos vivos. Para o bem comum.


Se outro tivesse sido agredido como Berlusconi, o coro de solidariedade contra a violência seria uníssono, incluindo do nosso Bloco de Esquerda e dos habituais caça-fascistas da nossa praça. Desta feita, tudo se explica como uma espécie de vingança da mão divina através de um simples louco. Por outras palavras, a violência é sempre relativa, porque um bom revolucionário não pode ser humanista...


Os regicidas praticaram uma violência boa. O Júlio Costa, que assassinou Sidónio era louco. O massacre da Noite Sangrenta de 1921 foi a consequência deste paralelograma de forças. E o assassinato de Humberto Delgado, mero excesso de zelo de um funcionário que, graças à tolerância salazarenta, nem sequer recebeu uma maquiavélica reprimenda. Ficou protegida pelo segredo da Razão de Estado. Já não havia bom senso.


Todas as ordens normativas humanas, da moral ao direito, mantêm uma espécie de ligação primordial à pré-filosofia espontânea do senso comum, porque, por mais intelectual que seja o respectivo desenvolvimento, elas nunca conseguem quebrar as amarras que o ligam ao instinto. E ai do conhecimento, incluindo o científico, que deixe de ser um facto íntimo e próprio do espírito, para utilizarmos palavras de Antero de Quental. Aliás, o conhecimento científico, segundo o mesmo autor, constitui apenas a região média do conhecimento, entre o senso comum e o conhecimento metafísico.

13.12.09

OBAMA: uma vida útil, um caminho. De Teresa Bracinha


Desde 4 de Novembro de 2008 que pensei começar a escrever sobre Barack Obama com alguma regularidade. Então, a dada altura, apesar do impulso do projecto, entendi guardar em mim e durante um tempo a promessa.

Agora aqui seguem algumas palavras que pretendem reconhecer a descoberta ou o ajuste com a realidade que se mostra diversa e una num jeito fresco de assumir a política.

Em rigor, a realidade a que me refiro é aquela que fica algures pelo meio de uma viagem e é desse meio que, espero, cada um retire a melhor água.

Vejo hoje, aqui e além, referirem-se a Obama de jeito incisivo por excesso e sem a clemência com a qual ele nos pretendeu entender durante a sua vida e a sua carreira política.

Julgo que muitos os que se lhe referem com perfídia e invídia mal disfarçada, ainda não entenderam que o trágico mulato não é ele, é sim, a tragédia parda que todos somos sempre que não conseguimos superar-nos.

Há que dizer que Obama não está ligado a causas perdidas; Obama sobreviveu até hoje ao processo demolidor de quem luta para pagar conta própria e forte conta alheia na escuridão do vazio, num momento em que os fundamentalistas da própria estupidez nos tentam condenar a todos.

Assim, e que mais razões não existissem para suportar uma vida cheia de renovação interpretativa em si mesma, como tem sido o caso do percurso de Obama, eis que ele nos propõe uma aposta, uma possibilidade e uma possibilidade a festejar sobretudo quando as realidades da política comezinha fermentam numa enxurrada coxa e desentrançada de ideais ou causas.

Tenho para mim que o contexto em que surgiu Obama é aquele em que as arestas vivas só aceitam quem de coragem as enfrente.

Devo dizer que não tenho visto até à data, um Obama que discorda cansativamente de tudo; um Obama alheio às humilhações e fúrias, às violências e aos desesperos de um mundo em queda.

Atrevo-me a frisar que em muitos dos seus discursos, reside a força de uma inocência lúcida, inimaginável numa idade adulta e que nos faz pensar nas já adulterada crianças que pelos dias de hoje, tão cedo a perderam, e, sobretudo, sem que ninguém assuma a responsabilidade desse crime imputável a quem o devia ser e de pleno.

Há quem não imagine sequer que uma velha máquina de costura pedalada por quem não retira os olhos do tecido que ponteia, tem o direito de ocupar um lugar na economia mundial, tem direito a sonhar com netos e a descansar e a percorrer enigmas e a decifrar os dias e a aceitar o quanto é doloroso não poder confiar totalmente em alguém.

Que argumentos se utilizaram em favor dos direitos que acima se referem? Quem se assume co-responsável na desconstrução do contrato natural?, e ainda assim ouse oferecer liderança em saltos cruciais através dos tempos?

Recordo que Obama não recusou escrever o quanto deve à sua mãe o que de melhor em si existe. Emoção recorrente em mapa sem escala, diria eu. Subversão inesperada num ângulo que também por aí faz honra à liberdade.

Reconheçamos que cada um se tenta explicar; reconheçamos que temos feito esperar tanto quanto o que nos fizeram e fazem esperar a nós; reconheçamos que nem todos são poetas propensos; reconheçamos que poucos conseguem ser promessa ou assumir esse terrível risco de prometer; reconheçamos que o Nobel deve estar, no mínimo à altura do peito de cada um e daí tire-se a medida própria.

Há que saber discordar sem rancor e afirmar em terreno o orgulho pelo seu lugar no mundo. O imprevisto em Obama, também tem tido esta característica.

Oxalá todos nós saibamos colocar na mesa o que já fizemos pelas soluções de nós mesmos e pela injustiça que vamos permitindo calidamente antes de esperarmos pelo país que não merecemos e que reclamamos.

Ainda não vi um Obama azedo!, ainda que ele próprio e nós já tenhamos visto demasiado, de um modo ou de outro.

Ainda não vi um Obama embotado, colonizado por uma visão do passado, agarrado à desutilidade do agir.

Em meu nome e em nome de uma mudança autêntica, eu quero crer!

Quero crer que Obama não substituirá os ódios existentes por quotas de mercado de poder.

Quero crer que Barack Obama não abafará a diferença entre os mundos da abundância e os mundos da necessidade.

Em meu nome e em nome de uma mudança autêntica, sejamos fortes na luta contra a desilusão e que as novas perguntas vivam épocas de respostas firmes para que compreendamos a esperança e nela eu quero crer!, até lá onde e aonde pode levar um caminho, uma vida útil em nenhures e toda a parte.


Teresa Bracinha
13.12.09

11.12.09

Entre redes banco-burocráticas e intelectuários, com esquecidas cunhas e dourados poleiros


Claro que vi o vice Vara. Um belo retrato sociológico deste modelo de redes banco-burocráticas e uma notável defesa da reedição do antigo guia das ruas de Lisboa, para quem não tem GPS. Foi na televisão pública, no seguimento de um modelo já praticado com Manuel Dias Loureiro. Juridicamente falando, apenas recordo que "quod non est in actis, non est in mundo"...


Por outras palavras, o direito não é a vida. São relações jurídicas, isto é, uma minoria das relações sociais, as que são legislativamente seleccionadas e coactivamente protegidas pelo monopólio da violência legítima a que se chama Estado. Logo, nem tudo o que é lícito é honesto e a licitude nem sequer corresponde ao tal mínimo ético, dessa ilusão de deixarmos para os detentores do poder a definição de códigos de conduta que devem caber apenas às autonomias individuais e grupais e são insusceptíveis de captura pelo decretino, pelo que vêm do vértice para a planície dos súbditos. Moral e direito não são círculos concêntricos, apenas coincidem nalguns segmentos. Aqui e agora foram totalmente confundidos pela teledemocracia. E às vezes até continuam a ser medidos pelos preconceitos do racismo social e castífero que nos encarquilha.


Quando os jornais, no século XIX, substituíram o púlpito, dizia-se que conquistar o poder era conquistar a palavra. Desde Kennedy que entrámos em mediacracia mais videopoderosa. Política já não é apenas o que parece, mas a percepção do homem comum sobre o que aparece e que pode não ser o que é previamente ensaiado pelas agências de comunicação. E quando falha a confiança no aparelhismo público, as comunidades tendem a regressar aos esquemas da vingança privada, nesse jogo perigoso dos tribunais da opinião pública, onde, pela simples imagem, o justo pode pagar pelo pecador e acabar como "inimigo público".


Aqui e agora, o situacionismo dos vários estados a que chegámos, sobretudo o dos micro-autoritarismos sub-estatais, já não teme os opositores rotativistas, os tais que podem tornar-se convivas da alternância na gamela. Apenas odeia os dissidentes que não se transformam na oposição que lhes convém e que não se confundem com os tradicionais inimigos da democracia.


O importante, em Portugal, não é ser ministro, é tê-lo sido. Sobretudo, quando ainda se tem colegas no poleiro. Ou na impunidade. Sempre podem ser um importante elemento de consultadoria e pressão, por causa dos meandros da mesa do orçamento. E, entre um grupo empresarial de obras públicas e um estabelecimento de ensino, pouca é a diferença de pecado, na privatização já não clandestina do que deveria ser público.


Claro que a nota de revolta, neste último trecho, tem óbvio destinatário que a não vai ler que, de tanto andar pelas alturas, nem deve saber o que são blogues, nem aulas, nem alunos, nem beneditina investigação, livre das cunhas da subsidiologia. Dentro de momentos, quando todos conhecerem o evento, muitos terão de aceitar que não exagerei, quando denunciei categorialmente os chamados "intelectuários", os tais híbridos de intelectuais e serventuários, conforme a terminologia de Gilberto Freyre.

10.12.09

Bela estátua ao menino Obama. Obrigado, senhor presidente Wilson!


Thomas Woodrow Wilson (1856-1924) foi um presidente norte-americano que queria acabar com o velho hábito das diplomacias de guerra as quais, segundo as suas próprias palavras, faziam dos povos e das províncias mercadorias de troca ou peões do tabuleiro de xadrez. Ele que, na campanha presidencial de 1912, se opusera à política intervencionista dos anteriores presidentes republicanos, desde o big stick de Theodore Roosevelt à dollar diplomacy de William Howard Taft, voltou a vencer as eleições de 1916, em nome da não intervenção norte-americana na Grande Guerra. Contudo, logo em 2 de Abril de 1917, declarou guerra a uma Alemanha de Weltpolitik, Realpolitik e Interessenpolitik, proclamando a necessidade do mundo ser safe for democracy. Depois da vitória dos republicanos nas eleições para o Congresso e apesar de ter sido nomeado prémio Nobel da paz em 1919, eis que não conseguiu que o Senado ratificasse os acordos de paz. Nestes termos, endereçou uma mensagem pessoal às duas Câmaras do Congresso em 8 de Janeiro de 1918

1º Tratados de paz após negociações à luz do dia, a fim de acabar com a diplomacia secreta;
2º Livre navegação em todos os oceanos, em tempo de paz e em tempo de guerra;
3ºTanto quanto possível, supressão de todas as barreiras alfandegárias;
4º Desarmamento, sempre que possível, sem ameaçar a ordem interna;
...
14ºCriação de uma Sociedade das Nações que assegure a independência política e a integridade dos Estados grandes e pequenos


Assumindo alguns dos legados do modelo kantiano de Paz Perpétua, influenciou, de forma decisiva o Pacto da Sociedade das Nações e o posterior modelo da carta das Nações Unidas, sendo precursor de algumas iniciativas do internacionalismo liberal da década que marcou o primeiro pós-guerra, nomeadamente do chamado Pacto Briand-Kellog, de 27 de Agosto de 1928. Gerou-se uma corrente que o maior jurista do século XX, Hans Kelsen, qualificou como Peace through Law. Dela me considero militante, tentando não consumir o charlatanismo de certas traduções em calão lusitano, celestializadas por discípulos de Morgenthau e pálidos imitadores de Kissinger e Talleyrand. Os que costumam mandar assassinar e depois lamentam o sucedido junto dos familiares das vítimas, justificando a pirataria em nome da gestão de penduricalhos...

Hoje, voltei a ouvir o velho Wilson. Chama-se Obama e disse: There will be times when nations - acting individually or in concert - will find the use of force not only necessary but morally justified. E acrescentou: instruments of war do have a role to play in preserving the peace. Porque, a non-violent movement could not have halted Hitler's armies. Negotiations cannot convince al-Qaeda's leaders to lay down their arms. Logo, os Estados Unidos must remain a standard bearer in the conduct of war para se diferenciarem from a vicious adversary that abides by no rules.

Estou pelo bem, contra o mal. Pelo direito contra os interesses. Pela paz com justiça. Viva o regresso ao idealismo, com força!

A linguagem do realismo político continua a mandar ler o idealismo pelo mero jogo das palavras demonizantes do pensamento binário que diz, da ideia pura de paz perpétua de Kant, o que muitos dizem do contrato social ou da vontade geralde Rousseau. Não percebem que nenhuma destas categorias quis representar uma concreta situação histórica que efectivamente tenha existido ou que venha a realizar-se, enquanto os homens forem homens e não bestas ou anjinhos.
Estas categorias sempre foram entendidas como elementos normativos, como exigências dirigidas à realidade, tal como a democracia ou o direito. Em nenhum tempo e em nenhum lugar houve ou haverá democracia ou Estado de Direito, mas isso não significa que eles não mobilizem as concretas realidades humanas num sentido da perfeição. Ai de nós, se não houvesse esse dever-ser, esse padrão que nos permite desenvolver para cima e para dentro (a estátua do menino parece que foi hoje inaugurada na ... Indonésia).

Brandos costumes, bois amansados pelo jugo, balbúrdia dos insultos e o(a)s mizés em telhado de província


Apesar de chata, gostei da aula do Professor Aníbal. Mas gostaria bem mais de transmissão em directo da reunião que ele, depois, teve com o Sócrates, onde certamente foi tratada a situação grega de endividamento com a eventual inclusão da nossa seleccção nacional no futuro torneio dos PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia e Spaniazapatero), para efeitos de "ranking" negativo e de decisão em momentos excepcionais de desvario, sujeitos a contratos à força por ordem da comunidade internacional, através da circunspecta UE, com FMI por trás da cortina. Desde que houvesse relato radiofónico à antiga, com posteriores comentários do Rui Santos, sempre pela verdade desportiva dos meios electrónicos, contra os tipos do apito e das agências de taxas de juro, com liberdade de insulto, a partir da bancada e muito direito à indignação dos que pagam o bilhete...


Infelizmente, são outros os relatos da Câmara dos Deputados e ex-Ministros que são abaixo de Lordes e já não passam férias no Dubai: inimputável, palhaço, vendida a qualquer preço, esquizofrénico, aldrabice, trafulhice, tropa-fandanga, burrice. É tudo entre eles, o Estado são eles. Pensam eles. Praticam eles. Vale-nos que temos um povo com brandos costumes de bois mansos e em fila, a caminho do subsídio de reintegração, por acaso, o que mais assassinou figuras cimeiras do Estado no século XX. Temam a revolta dos mansos, dado que as respectivas armaduras começam a entrar em pontas surdas de indignação!


Contrapartidas, BPN, afundações, BCP, sucatas, escutas. Que, grão a grão, se vai enchendo o papo. Não o da revolta. Não o da indiferença. O do desprezo. Política não é Mizé contra o professor de filosofia do rito bracarense. Valia mais terem uma jantarada na Churrasqueira do Campo Grande, com bacalhau à moda de Terras do Bouro, que é província e paisagem para os capitaleiros.


Claro que em latim de Roma, o grande centro de conquista, a tal província, queria dizer "pro" mais "vincere", coisa para vencer, ocupar, dirigir, incluindo com governadores-civis...


1908 (Rei e P. Real); 1918 (Presidente da República); 1921 (chefe do governo e fundador da República, mais outros); 1965 (chefe da oposição). Não somo à lista Camarate. Ainda por enquanto porque só provámos o assassinato de D. João VI, mais de um século depois. Não há outro país com mais "magnícidios" na Europa, nem com o ciclotímico consequente de quarenta e oito anos de paz dos cemitérios, mas com um ritmo quase anual de intentonas e golpes de reviralho, transformados em comunicados oficiais de suas excelências do estadão, sobre o ter sido evitada ontem mais uma alteração à ordem pública. Claro que não contei com Amílcar Cabral nem com Eduardo Mondlane...


Apenas somei factos. A passagem do laxismo dos brandos costumes para a "balbúrdia sanguinolenta" é como atravessar no século XIX o Pinhal da Azambuja. Remexido, Zé do Telhado e João Brandão são mais recentes que o Robin Hood...
O povo, o povo soberano, que naquele dia tinha nas mãos o ceptro da sua soberania, não é menos dócil do que os irracionais que recordamos. O dia que devia mostrar-se orgulhoso, é quando mais se humilhava; quando podia dispor dos destinos dos seus senhores, é quando mais vergava a cabeça sob o peso que estes lhe assentavam. Não é semelhante esta força inconsciente do povo à do boi robusto e válido, que uma criança dirige e subjuga? Forte como ele, como ele dócil, como ele laborioso, como ele útil, não vê que a mesma força que emprega no trabalho lhe poderia servir para repelir o jugo. Ou, quando vê, é quando o desespero e a fúria, o cegam e impelem a revoltas tremendas (Júlio Dinis, ou um liberal à antiga descrevendo um acto eleitoral do rotativismo devorista).

9.12.09

A minha avó, que não sabia ler nem escrever e gostava de andar descalça...

Hoje é o dia internacional de luta contra a corrupção. O meu amigo Guilherme d'Oliveira Martins, que é o nosso estatal presidente das contas e da luta, já falou e falou. Disse bem contra a elefantíase legislativa. E mais falou. Até disse que não devíamos falar muito sobre a coisa. Logo, não falo mais.

Vou estar atento à entrevista que Vara vai dar, amanhã. Hoje foi só declaração esparsa. Não falarei sobre a matéria. Estive a ver a ficha curricular de um ilustre membro do governo, licenciado e doutorando na minha área, com um bocadito de atraso. Sugiro que se listem os senhores ilustres deputados, ministros e secretários de Estado que, sem qualificações de base adequadas, são ilustres docentes em várias universidades privadas e em muitas públicas, clandestinamente privatizadas. A meritocracia é uma excepção que confirma a regra. Costuma resolver-se por efectivos concursos públicos sem prévia fotografia. Pena que os gestores dos interesses, das pressões e das influências, por mera coincidência, só a vejam entre a partidocracia e seus satélites.

Cá estamos depois do segundo feriado de Dezembro, com mais trabalho em feriados do que em dias ditos de trabalho, porque as formiguinhas investem sem o espectáculo do ofício do corpo presente, com que os avaliólogos nos vão destruindo. Venham mais férias para que a sementeira continue. Porque os nossos dias da semana são mesmo "secunda feria", "tertia feria", "quarta feria", "quinta feria", "sexta feria", onde férias não são feiras, mas festividades litúrgicas do valor trabalho. Somos os únicos europeus que seguiram a determinação antipagã do papa. Não por vaticanismo, mas por causa das consequências da crise do século III que nos transformou em ilha, apenas presa por pedra ao continente. Daí esta multissecular vontade de navegar e partir, barra fora, para bem longe daqui...


Apesar de tudo, estou feliz. Há teses ditas de mestrado que são bem superiores a muitas de doutoramento. Tal como há teses de doutoramento que são bem piores do que teses de licenciatura. Os académicos não se medem pelo título formal, nem pela propina de inscrição. A minha avó, que não sabia ler nem escrever e gostava de andar descalça, com as sandálias ao ombro, era bem mais culta do que alguns dos meus colegas catedráticos.

7.12.09

Se cuidas que a popularidade é coisa diferente da justiça e da moral austera te enganas


Hoje é o Magalhães, amanhã, o Fernão, depois, o Colombo, o Cristóvão, o Vasco, o Gama, até ao tempo em que os Vascos não sejam Santanas... Sem cimeiras, é esta governação relativa, com FMI a dar sentenças e navegações à volta do Mar da Palha...


Essa abstracção chamada Estado passou a ser a medida de todas as coisas e ai de quem diz querer ter menos aparelho de Estado, isto é, menos principado, na economia e na sociedade, e mais república, ou comunidade, nas pessoas e nos seus grupos, sobretudo quando já não há apenas o Estado português a que chegámos, mas um "Leviathan" plural, desde a União Europeia ao modelo de globalização da hierarquia das potências...


Não sou socialista nem social-democrata, logo quero menos "Estados", mais sociedade e mais autonomia dos cidadãos, enquanto indivíduos, porque importa reinventar o aparelhismo para deixarmos de ter os "donos" do costume.


Digo e repito: quanto mais estatismo, mais corrupção! Sobretudo quando surge o Estado-Empresário que se transforma em patrão, tanto através de "empresas públicas", como de "empresas de regime". Mesmo nos ditos países nórdicos da Europa, se há um robusto Estado-Companhia de Seguros, não há nenhuma tentação de intervencionismo na economia...


Aliás, quando acusam os liberais de anti-estatismo, esquecem que quem edificou o Estado Contemporâneo foram as revoluções liberais. E o nosso resultou do programa de Mouzinho da Silveira, quando centralizou os impostos que o povo sempre pagou, mas que no Ancien-Régime eram desviados para o clero e a nobreza, ordens às quais cabiam as políticas de educação, saúde, defesa e segurança!


Contudo, Mouzinho da Silveira logo se demitiu da pasta da fazenda, ainda no Porto, quando se caiu no oportunismo das expropriações, a velha tentação absolutista, a que continuam a dar o nome de Estado...


Se cuidas que a popularidade é coisa diferente da justiça e da moral austera te enganas (conselhos dados ao seu sucessor na pasta da fazenda, José da Silva Carvalho).


Tenho a consciência que assumir este programa anti-estatista em Portugal, onde há quase um quinto do eleitorado a votar PCP e BE, como um enorme centrão socialista e social-democrata e um PP pouco liberal, é apenas ter voz que clama num deserto de utopias intervencionistas que são a principal causa de sucessivas derrotas dos portugueses e conduzem ao suicídio do PSD e de todos os outros coveiros do regime...


Em Portugal, não é apenas difícil ser liberal nos planos da política, da economia e da sociedade. É pecado! Daí que continue esta economia mística de nacionalização dos prejuízos e de privatização dos lucros, a que muitos já dão o nome de roubalheira, com socialistas e sociais-democratas na habitual música celestial de defesa de um situacionismo de economia privada sem efectivo mercado nem real concorrência!


Para os ditos, repito o que sobre o mesmo espírito de seita, proclamou Orwell: The catholic and the communist are alike in assuming that an opponent cannot be both honest and intelligent (Janeiro de 1946, in Polemic). Hoje, ponho em lugar dos CC, os do costume, os salazarentos da economia do condicionamento, os bloqueiros do central e da esquerda e os que não dizem o que pensam porque vivem da Mesa do Orçamento, impedindo a concorrência e a meritocracia. Isto é, impedindo a urgente regeneração dos que querem defender um Estado racional-normativo que não seja capturado pelas forças vivas, pela partidocracia e por essa difusa rede de clandestina privatização do público, a que podemos dar o nome de corrupção, onde uma bandocracia impune até transforma o aparelho policial e judiciário em bodes expiatórios, para que se reduzam a meras bocas que pronunciam as palavras das leis que eles traduzem em calão, para alívio das consciências que dizem ter.


Ser liberal, confesso sem peias, é ser efectivamente adepto daquilo que a maioria desta mentalidade dominante considera um impossível lógico: a defesa do capitalismo, enquanto o processo histórico mais eficaz para a defesa da igualdade de oportunidades e a justiça social!


Basta recordar que as empresas públicas e as empresas de regime estão para o cidadão como estavam os conventos e hospícios de antes de 1832: segundo Vitorino Magalhães Godinho, os rendimentos das ordens religiosas em 1832 andavam pelos 1 162 contos, enquanto o Estado recolhia apenas 1 600 contos, em impostos directos...