Portugal, entre as Arcadas e a Rua do Ouro. No Jornal de Negócios de hoje
O principal produto de um sistema político, a decisão orçamental, deveria ter sido sustentado por uma adequada troca de informação entre governantes e governados, bem como pela própria troca de informação horizontal entre os governados. Mas, como sempre, preferimos reduzir o sistema político às enferrujadas canalizações representativas da partidocracia, assumindo-o como uma coisa que pode conquistar-se sem interacção. Isto é, quisemos esquecer que grande parte da nossa soberania não passa de simples capacidade para gerirmos dependências e interdependências, que ela não é uma coisa mensurável pela física do poder, mas bem mais pela estratégia, onde as grandes potencialidades podem transformar-se nas grandes vulnerabilidades, e vice-versa.
Continua a não haver nerves of government e adequada retroacção da informação capaz converter os apoios e as exigências em decisões políticas. Porque é pela informação, pelos sensores dos centros de recepção de dados, que o sistema político contacta com o respectivo ambiente, com os outros subsistemas sociais e com os outros sistemas políticos. É pela operação de processamento de dados, confrontando mensagens do presente com informações arquivadas no centro da memória e dos valores, que o sistema político pode, ou não, adquirir autonomia e identidade. É depois, no estado-maior da consciência, onde se selecciona a informação presente e passada e se confronta este conjunto com as metas programáticas, que o sistema político prepara a pilotagem do futuro em que se traduz a governação.
Por outras palavras, o nosso principal défice democrático está na falta de uma adequada democracia fiscal. A maioria dos votantes ainda não percebeu que o Estadão não dá nada, apenas distribui o que recebe, cobrando a grossa fatia das comissões que alimentam os empregados do aparelho e os desmandos do clientelismo e da compra e venda do poder...
Deste modo, os bastidores da negociação orçamental demonstraram como a política continua a depender do paternalismo dos vigilantes banco-burocráticos, essa discreta entidade que, de vez em quando, tem ministros das finanças que se assumem como agentes duplos da partidocracia e da secção lusitana da geofinança, entre a Rua do Ouro e as Arcadas do Terreiro do Paço.
Valia mais confirmarmos que Sócrates, democraticamente falando, não existe. Tal como Manela. Tal como Paulo. Tal como Aníbal. Eles, e elas, apenas são os nossos representantes, isto é, aqueles que estão presentes em vez do Outro, esse transcendente situado chamado povo. Eles são um Estado que devia ser o Nós, mas, por deficiências educativas pombalinas, afonsistas e salazarentas, ainda julgamos que o Estado são Eles, a soma dos Eus que votam contra ou a favor do Orçamento que Nós, cada um de Nós, pagamos.
Chamam-nos Contribuintes, mas apenas somos Impostados. E a culpa da escravatura está nos próprios Escravos que não se alevantam em adequada revolta dos Escravos, como diria um tal de Beaumarchais. Por mim, não tenho gostar de uma qualquer dessas figurações da laicíssima trindade, ou da quadratura sem círculo, do situacionismo de sempre. O que é verdadeiramente comum não devia ser de nenhum...