a Sobre o tempo que passa: dezembro 2010

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.12.10

Diálogo “Vencer por si”. Por Teresa Vieira


(Tradução directa por &e& Moreira do texto inserido no livro Contemporâneo pp.307 e ss. Ed. Lota Continua)


- Já alguma vez viveste uma experiência de vida política activa?
- Já. Já fui eleito até como independente.
- E declaraste ter saído dela desiludido?
- Sim, declarei por sinais.
- Mas denunciaste mesmo?
- De que género?
- Por exemplo, dizendo que estavas esfomeado de oposição.
- AH! Agora assustaste-me. Julguei que querias que eu dissesse nomes.
- Não pá, só se tivesses dito quem nos governa, por um lado, e quem não os controla, por outro.
- Nada disso pá!, lutei por causas enquanto lá estive: por exemplo, contra a caça, contra os delitos de opinião à tarde, contra o aborto clandestino pela manhã e depois, agora, depois de desiludido e na qualidade do que sou, recuso homologar seja o que for.
- E como não homologas?
- Ó pá! Basta acordar tarde como é o meu caso. Como sabes as homologações são pelas 9.35h e eu só me levanto às 11h.
- E agrada-te essa vida que levas agora?
- Qual vida?
- A de gerires a política por fora.
- Olha, depende. Já fui dentro algumas vezes, mas saio sempre com a pulseira e residência permanente o que me não incomoda já que nunca tive outra para além daquela onde resido.
- AH!, não?
- Não, claro que não. O que ouviste era tudo mentira. Tudo, tudo mentira. Eu só ia a Gibraltar para alcançar África. Luanda ou assim…e ajudá-los. Muito.
- Vê bem as más-línguas. Ouvi dizer que tu até vivias como se acreditasses naquela coisa da ex-política que tudo limpa.
- Olha meu amigo, fica sabendo que eu pertenço àqueles que sempre lutarão no interior do poder, mas para o denunciar às possibilidades de alternativa, e estas conhecem-me tão bem o empenho que, de quando em vez, lhes escrevo os discursos.
- Bolas! Então voltaste à política activa?
- De certa maneira sim. Aliás nunca tive rupturas de vez.
- E o que achas do 2011 que vamos ter?
- Ó pá, a cultura de esquerda deve ser entendida pela esquerda e a de direita pela da direita e a do centro deve guardar o estigma e a vantagem da cultura vitoriosa. Depois, amanhã, quando já for 2011, faz-me a pergunta outra vez, ok? É que tenho de arranjar-me para ir para o casino com o resto dos desiludidos que é o único modo de se ser revolucionário à meia-noite, entendes?
- Não.
- Ó pá a tua falta de força é uma tragédia! Bom ano, bom ano que bem precisas!
- Obrigado.
Deixei o Silva e dei comigo na inoperância do monólogo. Será que poderemos dizer que a nossa sociedade prima pela total ausência de algo que se assemelha a um Ambrósio?
Pois não sei. As razões muito simples assustam-me. E eu não quero falar de mim. Parece que já meti água, não é? Vou deixar de ser jornalista, ah!., isso vou. Sou kirkegardiano e pessoano e heterodoxo e muito religioso e…rural anarca e sentimentalmente dependente do povo a que pertenço. Assim renovo os meus votos do déjà dito, feliz ano! E mais vos digo que não esqueçam que a palavra é de origem matemática pois se trata de um percurso de um sólido que volta ao mesmo ponto.
Contudo, tenham presente que existem sempre duas formas de conceber a marcha para o futuro: a de ir e a de não ir.
Por mim desejo-vos outra: a de “Angelus Novos”!

30.12.10

Procurar Portugal fora de Portugal





Vestido de Camões
e Mendes Pinto,
tratei de procurar Portugal,
assim fora de Portugal,
dando-lhe os muitos nomes
com que os meus avós à solta,
se foram registando
por estes mares de outrora.
E pelos outros,
mais perto me cheguei
do abraço armilar
que nos deu signo.


(p. 125 do livro, cujo projecto de capa aqui semeio)

29.12.10

Uma nostálgica identidade rural



Por trás desta máscara,
há olhos de menino
e grisalhos cabelos, em desalinho.
Há um ser feito revolta,
com as mãos calejadas
de escrever-se
e as unhas, negras
de tanto moldar, em barro,
a própria estátua de sonho.
Não passo de um pedaço
da minha própria história
e, imaginando a experiência,
procuro fazer, do todo,
um eu comum,
pensado em mim.
(pré-publicação de mais um pedaço do livro, a editar em Janeiro, p. 94)

28.12.10

Meditações de ano mau, à espera de outro melhor...

1
Muitos desesperados chamam, às velhas operações da cunha, actividades congreganistas e maçónicas, especialmente quando a dita é elevada a manobra da nova sociedade de corte, hierarquista e neofeudal, daqueles favores pequenos que, com favores maiores, se pagam, por mais místicas que sejam as protecções de adro, sacristia ou passos perdidos com que se recobrem...


2
Esta fragmentação patrimonialista que destrói a política e o espírito torna-se mais patente em épocas de apodrecido fim de regime, como as da presente degenerescência, onde, como cantava o Mestre, não há lei nem rei, ninguém sabe que coisa quer, nem o que é bem, nem o que é mal...


3
Não sei nada de grego, mas sempre digo: O problema é não haver indivíduos (de "indivisus"), porque, para que eles o sejam, tem que haver moral, a ciência dos actos do homem enquanto indivíduo, como ensinava Aristóteles.


4
Quando se economiciza a "polis" ou a moral, quando se politiciza a economia ou o indivíduo, a resposta individual é aquilo que a velha ideia da anarquia mística sugeria: resistência, revolta, futuro! Porque, da Corte, homem não é, vale mais quebrar do que torcer (Sá de Miranda, em glosa).


5
A moral não depende do observador. É coisa que apenas fica dentro do observador, mas só quando ele tem capacidade (auto), por si mesmo , de editar as própria regras (nomia). E o gosto íntimo de as cumprir, respeitando a autonomia do outro. Isto é, tendo o limite de, no espreguiçar os braços não esborrachar o nariz do outro (imagem de Holmes Jr., um velho filósofo do direito, norte-americano...). 


6
Não há liberal à antiga que não tenha um anarca respeitoso dentro dele! A revolta é mais enérgica do que a revolução (Mestre Camus mo disse, num livro escrito no ano em que próprio nasci).


7
Aqui chego com o sabor amargo de sentir no lombo as unhas arreganhadas do caceteirismo mastigóforo, o da inquisitorial sandice que me quer agnóstico, ateu ou de outra revelada pelo mesmo livro, quando apenas me confesso homem religioso, contra o fanatismo, a intolerância e a ignorância, mesmo a que apenas espera indulto de príncipe e nos sugere o estado de escravos voluntários.


8
Por dentro de muitas coisas com figura humana, continua a besta do costume, nomeadamente as muitas traduções em calão de um puritanismo multinacionalmente fundamentalista que usurpa velhos símbolos de libertação e signos da energia pátria dos egrégios avós, heróis do mar. Detesto os reaccionários que não assumem a tradição e nos embalam com um absolutismo apátrida que edita santinhos e pagelas, enquanto disfarça a cobardia com hóstias embebidas em vinhedo, arrotando dejectos em forma de palavra.


9
Há quem não alinhe no binário do respectivo manual de procedimentos e exorcismos...


10
Apenas sou obrigado a responder-lhes quando eles me processam em nome do Estado e com os dinheiros do Estado, mas para benefício próprio da conquista e manutenção do poder, com o minúsculo dos compadres e comadres que se auto-reproduzem em abortos clientelares, a coberto das seitas do venha a mim o reino do regabofe, usando o Orçamento de Estado como barriga de aluguer.


11
Que o ano seja Bom em vez do Mau. Basta não elevarmos a causa do estado a que chegámos à falsa categoria de Messias, mesmo que todos os dias se autoderribe do andor do estadão a que o levaram. Basta rasparmos o verniz altissonante que lhe recobre os pés de pau...

Aos grandes homens do momento. Por Teresa Vieira





Ó grandes homens do momento


ó grandes glórias a ferver


de quem a obscuridade foge


aproveitem sem pensamento


tratem da fama e do comer


que amanhã é dos loucos de hoje.


V. Frates


A espontaneidade criadora, a libertação dos indivíduos e o ser-se a isso sensível e explicitá-lo, deveria ser a grande razão de entrada no novo ano de 2011.


De um modo ou de outro a vida tem-nos dito o quanto vivermos os sonhos é já agir sobre a interdisciplinariedade das realidades que nos cercam. Afinal o futuro é sempre o resultado de um movimento na assunção das renovadas revoluções humanas.


Gostava de “aconselhar” a que se revejam as irrupções catárticas sobretudo as que já se expuseram nas lutas por novas formas de organização do poder, pois que é de uma excessiva simplificação e de uma profunda falta de interpretação, meter tudo no mesmo saco e com ele festejar ou rejeitar a entrada no novo ano.


Muitos dos nossos pensamentos foram bem mais do que achegas por parte de quem rejeita a coexistência de cano e decana do impróprio viver de quem se não defenestra dos cargos de mando.


Reflicta-se ainda que, se entendida, a poesia está sempre em lugar algum o que impede o carreirismo de se infiltrar, pois que ela reside num estilo de vida ou na incessante procura desse estilo.


Há muito que a poesia nasceu e fixou residência no universal; no que se expande; no por excelência da perspicácia; no seio quente da alma; na legitimidade assimétrica dos ângulos do sentir.


Assim sendo, em nosso entender, o buraco negro deste mundo, tornado cratera e facilmente tapado pelos seguidores dos processos (nem sequer originais) baseados no princípio da avestruz e assentes na imprópria equação do que se não fala e se não vê, não existe e por essa razão demos vivas à burocracia burocrática entupida de infinidades, assim sendo, dizia, há que fazer falhar as energias de uma “civilização”, da qual, por surpresa, algum ente menos electodomesticado possa afirmar que Portugal anda a emigrar como um ormigueiro assustado.


É evidente que habitamos um mundo porventura excessivamente dependente nas toxicodependências das concordâncias, mas um poeta pode ser muito poeta e pode ser pragmático o que o leva a rejeitar construir uma sociedade diferente tendo por base o bolor da anterior.


Como dizia Valete (?) o amanhã é dos loucos de hoje.


Se assim é, procuremos o fim do tal mar da banheira de cada um, ou encarregue-se cada ser de dar resposta ao que faria, se o que faz fosse fazer um feito, usando o fito de forjar através de um fórceps a formatação do futuro.


M. Teresa B. Vieira


28.12.10

Os Milagres da Penha de França crecem com o tempo...





De novo Vieira, meu Padre, sobre a Penha de França, com imagem de um comício republicano aos pés: "os Milagres de Penha de França crecem com o tempo. O maior encarecimento do tempo, e que tem poder até sobre as penhas: o maior louvor daquela Penha, é que tem poder até sobre o tempo. E se os livros são remédio contra o tempo, quem não é sujeito às leis do tempo, não há mister livros" (id., p. 372).

Recordando Antígona, com imagem islamo-turca do pretexto comum (do novo livro, p. 46)



Hoje não apeteceu sulcar
os meandros eruditos, académicos
de tantos livros que não li.
Preferi recordar Antígona:
não nasci para odiar,
mas para amar!
Há húmidos caminhos
nesse fluido dos deuses
que vão além de seus limites,
mas cumprem as regras eternas
e imutáveis
que ninguém sabe como surgiram
mas que sempre se recebem
em comunhão.
É esse o sinal distintivo da criação.
Que seria de nós, simples mortais,
se não ousássemos, de vez em quando,
repensar nosso sentido?

27.12.10

Vieira e o Sermão de Nossa Senhora de Penha de França

Não há poder maior do mundo, que o do tempo: tudo sujeita, tudo muda, tudo acaba. Não só tem poder o tempo sobre a natureza; mas até sobre cousas sobrenaturais tem poder, que é o que mais admira... (Sermões, I, Lisboa, IN-CM, 2008, dir. Arnaldo do Espírito Santo, p. 371).

A metafísica acontece nas coisas mais banais, para quem quer ter direito ao divino



Nestes sítios do Sol Nascente, a metafísica acontece nas coisas mais banais. Na curva de um monte de verde sujo, ou nas bolas de neblina que nos dispersam. Há pedaços de espírito que nos vão dando contornos, onde Pascoaes pode ser Pessanha e Pessoa volver-se em Wenceslau. E uma noite de sonhos sem pesadelos, palmares e mangueiras bordejando casas que são casas, nesta cidade de muitos fios ostensivos, motoretas sempre em bulício e espíritos que podem realizar-se nos homens concretos, de carne, sangue e sonhos. Porque as essências apenas se objectivizam espiritualmente, quando as subjectividades pegam na alma e a deixam penetrar nos corpos, compreendendo. Porque só há almas quando elas se religam a um corpo, e todos os transcendentes só o são quando sentem o aqui e agora. (pedaço do livro que aí vem, sem "nihil obstat", pitadinhas de Aristóteles e irmandades com Teixeira, Fernando e Camilo).


PS: Na foto, o próprio ao colo de seu avô. Já na altura o vestiam de anjinho, sem asas. A irmandade é a do Santíssimo, de  belas opas vermelhas. O andor ficou decapitado, mas o fotógrafo não foi este que vos escreve. Mas assume a heresia de seu pai.  As asas, do anjinho que me veste, não me deixaram ser salada de religião revelada, livraram-me do agnosticismo e do ateísmo, sobretudo dos estúpidos, conforme as constituições originais, e obrigam-me a continuar a procura do que Régio qualificou como "as confissões de um homem religioso"...

26.12.10

Portus Cale, Portus Garbe. Texto meu do século passado, ortodoxamente herético.



Aqui e agora, neste Portugal cujo nome oficial foi, durante séculos, o de Portugal e dos Algarves, mas que, ainda hoje, continua a ter o carácter pluricultural e universalista da distância de tais Algarves na esfera armilar que circulariza o nosso escudo nacional.
Aqui e agora, este Sudoeste da Europa, com os seus arquipélagos atlânticos, mais do que uma nórdica finisterra, continua a ser porto de partida, cais de todas as necessárias viagens para a redescoberta de novos mundos.


Aqui e agora, neste nosso tempo, tão tecnologicamente dito como de aldeia global e, por vezes, escatologicamente qualificado como de fim da história, ainda continua por cumprir a exigência de todos nos tratarmos como filhos de Andram (Gil Vicente). Porque, como proclamava Almada Negreiros, se as frases que hão salvar a humanidade já estão todas escritas, continua a faltar uma coisa: salvar mesmo a humanidade.


Mesmo aqui e agora, eis que nos entram casa dentro, circadianamente, em zooms, replays, câmaras lentas, imagens de fome, peste e guerra, e outros sinais de intolerância, de perseguições, de limpezas étnicas. Custa dizer-lhes os sítios, porque a própria escolha do nome implica tomar partido activo pelos responsáveis por muitas matanças e certos genocídios. Mas, das margens do Jordão a Serajevo, de certas partes da Mitteleuropa às praias da Somália, de Timor a remotas paragens das Américas e dos Próximos, Médios e Extremos Orientes, Ocidentes, Nortes e Suis, eis que muitos, invocando em vão os sagrados nomes de Deus - quando não de deusas, génios e sucedâneos, feitos ideologia -, esquecem que nada do que é humano nos pode ser alheio, mesmo que fique em Tien An Men, em Díli, em Los Angeles ou no Casal Ventoso. Eis o homem de sempre, entre a lama e as estrelas, entre l'ange et la bête. O homem em guerra consigo mesmo, o homem em guerra civil por dentro de si mesmo, nas suas entranhas e na sua alma.


Não há dúvida que, de finisterra, nasceu Sagres, pelo Atlântico, a caminho do Sul. Que, outrora, partimos, ousando regressar ao ventre mátria, de nossa mãe distância, na senda daquele abraço armilar, daquele universalista quanto mais além, mais além ainda (Paul Claudel) que talvez constitua a principal significação partilhada das comunidades portuguesas, esse núcleo central da nossa memória e dos nossos valores, donde nos vem a identidade e a autonomia.


Começámos por ser Porta de Chegada daquele mundo antigo, que se reduzia ao mapa de Ptolomeu e que podemos qualificar como a Idade Mediterrânica da História. Então, nestes confins do Ocidente europeu, onde a terra acaba e o mar começa, fomos recebendo, em sucessivas vagas, a visita de fenícios, gregos, romanos, germânicos, judeus, berberes e árabes. Gentes de todas as sete partidas que, de Leste para Oeste, procurando um lugar onde, nos foram ensinando a aprender o aprender, da religião, da filosofia, do direito, da álgebra, da tecnologia.


E nacionalizando essas tendências importadas pela arte da simbiótica, eis que adquirimos técnica para nos podermos lançar numa nova partida, para esse além de nós a que podemos chamar mundialização.


Desde o século XV que, descobrindo as descobertas, nos fomos descobrindo e, com judeus e árabes, também diluídos dentro de nós mesmos, conseguimos esquecer o círculo vicioso das guerras santas contra guerras santas entre gentes do mesmo Livro, ousando fazer guerra contra as ondas do tenebroso, os misteriosos cabos bojadores e os fantasmas dos adamastores.


E assim navegando em estradas flutuantes superámos as Tormentas e unimos, pela boa esperança, o Atlântico e o Índico, transformando todo esse espaço no novo Mediterrâneo da história. Chegava a hora de uma terra maior, do tal planisfério, onde se circulava, não apenas de Leste para Oeste, mas também de Norte para Sul, com novas estrelas do norte, a que chamámos cruzeiro do sul.


Faltava, no entanto, cumprir a viagem: ir além dos cabos, da Índia, da Taprobana, esse circum-navegar que é partir para regressar ao sítio da partida. Descobrir que a terra inteira podia ser unidimensional, que a humanidade não cabia nem no ptolomeu da fantasia nem na abstracção de um planisfério; faltava descobrir que, em vez de chegar a uma índia cartografável, importava navegar, como proclamava Fernando Pessoa, para uma índia que não vem nos mapas e chegar lá em naus feitas daquilo de que são feitos os sonhos. Faltava cumprir o abraço armilar, isto é, assumir o globalismo de uma terra-esfera onde não são possíveis periferias, tenebrosos, ou aquelas ilusórias perspectivas etnocêntricas de um mundo quadrilátero, com quatro cantos onde só nos sítios onde reinamos temos a ilusão de estar debaixo do Céu.


Faltava descobrir que tanto o Leste como o Oeste, tal como o Norte e o Sul, são, dia a dia, subvertidos pela revolução dos corpos celestes, em torno de um eixo e à volta do sol. 


É esse novíssimo mundo que agora, e sempre, pode ser, se os homens forem homens.
Mas o tal diálogo de culturas e o tal encontro de religiões, à maneira dos encontros de Assis, só é possível se nos expatriarmos nas nossas próprias origens (Heidegger), isto é, se reconhecermos a contemporaneidade filosófica de todas as civilizações (Toynbee). 


Para tanto, talvez importe refazer alguns dos pretensos mandamentos das leis dos homens que todos vamos balbuciando de forma hipocritamente unanimista.


Falta uma cidade à imagem e semelhança do homem, uma cidade que não seja grande demais nem pequena demais, mas suficiente na sua unidade. Uma civitas humana onde possam conciliar-se tanto a exigência de independência de cada grupo nacional como a liberdade e a participação de cada cidadão, o que só é possível quando houver uma comunhão pelas coisas que se amam.


Falta também uma nova noção de saber que vá além do pretenso cientismo dos tempos modernos, essa ilusão da morte de Deus (ou do deicídio) que gerou o terrorismo de uma certa razão paroquial - a mesma que determinou que só existe aquilo que pode medir-se ou experimentar-se intencionalmente.


Falta, sobretudo, respeitar uma antiquíssima (mas não antiquada) concepção de homem: aquela que entende cada homem concreto como um homem completo; onde cada homem seja um ser que nunca se repete, vivendo uma história onde cada acontecimento é também um acontecimento que nunca se repete. Porque cada homem é um fim em si mesmo, só podemos salvar a humanidade se nos salvarmos, cada um de nós, fazendo aos outros aquilo que queremos que nos façam a nós. Isto é, só salvando os imperfeitos homens que temos, e somos, poderemos salvar a humanidade.


Aqui e agora, nós, os herdeiros da liberdade europeia, temos apenas de proclamar que a história está sempre a recomeçar. Que só há fins da história para os pretensos vencedores. Porque, como dizia um herético português, não será que vencer é ser vencido? Porque só fazendo o passado presente, podemos ter saudades de futuro.

PS: A concordância com algumas linhas deste exercício do começo da década de noventa do século XX pode levar à fogueira... do insulto (mais de vinte anos depois da respectiva apresentação no Convento da Orada). Obrigado, Helena Vaz da Silva! Obrigado,  João Rosado Correia! 

Quem todos os dias se escreve (p. 15, livro no prelo).





Quem todos os dias se escreve, deixando que peregrinem a luz e a sombra de que é feito, se tem os pés na angústia da procura, também é capaz de erguer os olhos para o sonho, partilhando os retalhos de uma vida que é comum a todos os que, por se reconhecerem finitos, reinventam o infinito. Porque cada um de nós é esse tal ser que nunca se repete, vivendo acontecimentos que também nunca são iguais. Todos os dias são dias de viver e de morrer, quando se olha a luz de frente, nesta sucessão de encruzilhadas de que afinal é feito o quotidiano e quem não segue a lógica dos homens de sucesso e rejeita dividir o mundo entre amigos e inimigos, negando o desespero dos valores dominantes que mandam dizer que tem razão quem vence (novo livro, a menos de um mês do lançamento, p. 15).

25.12.10

Dez meditações deste dia, ao correr da tecla





1
Lembro a catedral-mesquita de Santa Sofia, onde a Europa não acaba e a Ásia está aos pés. Onde o sincrético não é mistura, mas ascensão!


2
Istambul, Constantinopla, ou Bizâncio..., como se fosse o Jardim da Estrela, com o Tejo mais adiante e as Américas do outro lado, nas malhas que Alexandre, o macedónio, nos teceu, a caminho da Índia.


3
Tudo por causa de uma foto que foi tirada em confusão, do lado oposto, para que tudo se troque, à imagem e semelhança uns dos outros...


4
E não é por acaso que os adeptos de Cristo e de Maomé celebram, em comunhão, o humanismo do preceptor de Alexandre, um tal fundador dos politólogos que serviu Atenas sem ser ateniense, mas que de lá foi expulso, por errada informação dos agentes secretos da "polis" que também condenara o mestre dos mestres à cicuta... A Europa já era!


5
Prefiro a capela de Mértola, que foi igreja, mesquita e, de novo, igreja, para, nos intervalos, servir também de sinagoga. Até já lá assisti a serviço místico, presidido pelo bispo de Beja, em cerimónia com judeus, cristãos, muçulmanos, maçons e meros descrentes de tudo...


6
Foi há uns anos, com a Helena Vaz da Silva a inspirar e o Rosado Correia a fomentar. Até os judeus e os muçulmanos rezaram em português e as beatas alentejanas que lá estavam não conseguiram destrinçar as várias peças das religiões do Livro. O centro da Europa poderia voltar a ser Al-Andalus ou o Portus-Gharb, entre os homens de boa vontade que ousarem ser homens livres, em torno do velho, mas não antiquado mar interior!


7
Entre Sufis, Franciscanos e Fraternais há buracos de agulhas onde podem passar camelos facilmente, se traduzirem jihad, cruzadas e iniciação pelo simples verbo que nos dá a conversão interior do morrer para renascer em ascensão...Sem este lugar-comum não há diálogo!


8
E os ortodoxos ainda não marcaram o Nascimento para essa data de pacificação com os adeptos da pluralidade dos divinos que Roma felizmente subverteu...Isso não é fraqueza dos católicos, apostólicos, romanos e protestantes, mas abertura ao mistério. Ainda por bem!


9
Todas as grandes religiões universais só o são porque repetem em grandes ciclos multi-seculares a mesma narrativa. Daí que seja antidivino morrer por um catecismo, uma doutrina ou uma ideologia. Estas passam, as culturas da identidade ficam nas suas diferenças que possam aceder ao mesmo universal. Basta saudar o sol, ou olhar o céu, em procura do mais além!


10
São Paulo, o cidadão romano Saulo, descobriu em Atenas isso mesmo, num templo ao deus desconhecido, às muitas diferenças do divino que permitem a unidade não unicitária....sem a qual Deus apenas se escreve com minúsculas.


11
Alguns dos que procuraram essa unidade chamaram-lhe, no século XVIII, "Grande Arquitecto do Universo". Os nomes interessam menos que a coisa nomeada.

24.12.10

Hoje é o dia





Hoje é o dia em que chegou a noite do menino-Deus, mesmo para quem não acredita em Deus, como se os crentes fossem superiores aos infiéis, e vice-versa. Até porque muita gente que diz não acreditar é mais activamente crente do que os crédulos, quando apenas tem de sorver a ternura de quem efectivamente acredita. A imensa multidão dos que dizem acreditar, mesmo sem fé criando esta vaga de crença que nos vai submergindo em cantos da “silent night” (de livro a ser editado em Janeiro,  já no prelo, p. 150).

23.12.10

Que bom seria não haver guerrilha, ou terrorismo... (Pedaço de novo livro)



Que bom seria não haver guerrilha, ou terrorismo, e que a nossa governança pudesse ser gerida por um qualquer mecanismo. Que todo o mundo se reduzisse ao papel quadriculado de um projecto de cimento armado, sem as eternas angústias a que não conseguimos dar resposta, como a adoração dos deuses, de um só Deus, ou das coisas simples do amor ou as paixões cívicas que metem pátria, ideologia, camaradagem ou amizade. Que bom seria sermos todos categorias, abstractas e quantificáveis, susceptíveis de planeamento, sem as loucuras dos que ainda citam Platão, Confúcio, Cristo, Rousseau e Marx... (novo livro, p. 130)

22.12.10

Quem todos os dias se escreve


Para que os grandes escritos possam emergir, são precisos muitos escritos inúteis, como estes em que, minúsculo, todos os dias, me diluo, procurando imitar a perfeição do mundo. Eles apenas servem como corrente de geração, nesta missão de recolher e transmitir as sementes que, noutros, hão-de amadurecer. Também a poesia é um inconsciente fruto que o curto prazo das nossas vidas terrenas não permite vislumbrar. Que outros virão, depois de nós, e neles, nosso eu comum se realizará, na procura do eterno (p. 13, novo livro)

21.12.10

Donde sou, onde não estou (pedaço de livro a publicar em Janeiro, com foto de Gaviões, Rio de Janeiro)



As dunas, a mata atlântica,
onde há veados, porcos, iguanas,
animais ditos silvestres,
nesse andar à solta como era
antes de haver eleições, muros,
casa a casa, muitas aldeias.
....
Aqui me sinto Zé Bonifácio, Vieira,
todos os que, comigo, trazem
estes restos de uma procura
que vem do princípio do tempo.

Regresso ao blogue


Acabei de fazer a revisão do meu quinto livro de poesia, a editar no primeiro mês do próximo ano. Aqui deixo o mote visual. A suspensão deste blogue, até agora, tem a ver com a poluição que o ameaçava com campanhas presidenciais. Mas não desisti de bicadas quotidianas que reservei para o FB: