a Sobre o tempo que passa: outubro 2006

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.10.06

Entre Maputo e a cidade da Praia




Neste dia dito das bruxas, Sócrates está em Maputo. Descansa no conforto do hotel Polana, antes de ir assinar a venda dos últimos restos do último Império português, aquela parcela de uma carteira de acções que nos faziam proprietários maioritários da barragem de Cahora Bassa, a tal que vendia energia ao apartheid abaixo do preço do custo e que o novo Estado independente nunca quis assumir, porque não valia a pena nacionalizar os prejuízos. Já na cidade da Praia, a angolana Amélia Mingas vai assumir a presidência do Instituto Internacional da Língua Portuguesa. Não consta que tenha actualidade o manual de estratégia do general Kaúlza de Arriaga, com os seus nós górdios, nessas malhas que o império terrestre teceu. A nossa pátria comum continua a ser a língua portuguesa, segundo os manuais de Luís de Camões, Cecília Meireles, Malangantana ou Chico Buarque. Importa convencer o Lula a desaguar no Tejo, sem ser numa jangada de pedra!

30.10.06

Lula, Vieira e Sócrates, as reeleições esperadas, sem plágio
















Mais uma semana que começa, em ritmo de Verão de São Martinho e em plena mudança da hora. Ouço que Lula foi reeleito, conforme tínhamos aqui previsto, deixando o tucano Alckmin a mais de 20 pontos de distância. Reeleitos foram também Luís Filipe Vieira e José Sócrates, estes com mais de 95%, mostrando como os encarnados e os vermelhos estão ao rubro. Lula foi reeleito pela preferência dos pobres, os segundos pelos que podem pagar as quotas dos clubes.

O primeiro usa barbas, fez o discurso de vitória com t-shirt e teve um universo votante de 58 milhões de pessoas. Os segundos, engravatados de vermelho, andaram mais por baixo: o benfiquista pelos sete mil votantes, representantes dos seis milhões de simpatizantes das águias; o covilhanense foi ao partido legitimar-se por 25 mil votos, para governar dez milhões de lusitanos e quase oite séculos e meio de história. Um são as directas em pleno, numa das mais entusiasmantes democracias da história. Os outros, a representação oligárquica. Todos são democráticos.

O referendo na Sérvia e a eleição presidencial na Bulgária não mereceram muitos comentários, preferimos reparar nas manifestações dos bombeiros voluntários de Braga contra a manutenção do comandante e, ao invés, na proclamação dos irmãos de Tondela, contra a não recondução de outro comandante.


Reparo que a questão equatorial-sousatavaresista teve mais um episódio, com as declarações do escritor ao "Correio da Manhã" de hoje onde o mesmo, reproduzindo frases da literatura mundial repetiu, em sua defesa, o que aqui comentei neste blogue. Não o acuso de plágio, apenas brinco, porque concordo com ele. Apenas acrescento que me fui inspirar em Michel Déon, em "Les Ponneys Sauvages"...



28.10.06

Acima do cavalo da diligência está o trâmuei, acima deste a locomotiva, e acima de tudo o progresso!

Há cento e cinquenta anos, quando ainda não havia Maria Filomena Mónica nem Mariano Gago, tinha lugar a inauguração solene do caminho-de-ferro entre Lisboa (Santa Apolónia) e o Carregado, com o cardeal-patriarca de Lisboa a abençoar as carruagens.

Havia ecologistas progressistas que queriam conservar o que estava, gente que preferia continuar a andar de burro e muitos que já imaginavam ir desta para melhor. Nesse tempo já havia José Sócrates, como já havia Cavaco Silva.

Tal modelo de action man chamava-se, então, Fontes Pereira de Melo e, sobre as novas tecnologias da informação, declarava: Acima do cavalo da diligência está o trâmuei, acima deste a locomotiva, e acima de tudo o progresso! (discurso de 18 de Fevereiro de 1865 na Câmara dos Deputados).

O povo continuava a não existir. Só se concretizou quando deixou de ser patego a olhar o balão e tratou de ver passar os mesmos comboios de sempre, com algum atraso.

Que venha a reforma dos reformadores!

Acordo, ainda virado no corpo e sem poder ir à farmácia comprar um qualquer antí-virus, porque só inventaram até agora anti-bacterianos para o corpo humano e a vacina não parece que seja terapêutica. Clico nos jornais e semanários de sábado.

Leio que um ministerial herói anti-corrupção suspende coronéis da GNR e vejo outro ministro que se diz anti-socrático, talvez por nunca ter lido Platão.

Reparo que outro antigo ministro, excelente crítico de cinema, num semanário "on line", se indigna por não termos comemorado em Portugal o centenário de Hannah Arendt e trata de recolher duas ou três frases, obtidas nos "magazins" da estranja, para se assumir como recolhedor de frases da antiga assistente de Arendt que, por acaso, ainda ontem, aqui, proclamava como minha mestra.

Nada a criticar. Só que, ao clicar nos comentários reparei no nível de alguma da nossa opinião crítica, dado que alguns dos melhores interactivos agradeciam ao publicista o facto delhes ter dado a conhecer "essa excelente senhora". Apenas noto que também durante a Guerra, a judia errante, ao fugir da Alemanha estacionou aqui em Lisboa, num percurso até agora desconhecido, talvez porque os publicistas de então ainda estivessem cinquenta anos atrasados.

Vale-me que os socráticos do PRACE vão finalmente reformar o Estado à Teixeira Santos. Vão extinguir centenas de organismo, passar para a disponibilidade milhares de funcionários, cortar na dívida da Madeira e mandar o reformador-mor fazer o PRACE na mesma ilha. Que a cirurgia resulte para bem de todos, mas que no bloco operatório não falte a luz ou não haja inflitrações pelo telhado, que isto de operações plásticas, tirando gordura da pança para a meter no bandulho, raspando um osso aqui para pôr uma prótese ali, pode afectar o nervo da própria governação, porque mexe nas consequências sem tratar das causas, nomeadamente quando se inocula um antibacteriano para tratar do vírus, assim eliminando os anticorpos. Só a vacina resulta, se ela já tiver sido inventada.

A obesidade do aparelho de Estado só se trata se começarmos pelo cérebro da coisa, chamando, primeiro, o psiquiatra e, depois, o neurologista. Tratar depressões com trepanações é pior do que o recurso à bruxa.

Sugiro que Teixeira Santos consulte o senhor Padre Fontes lá das serranias do Barroso. Ele bem lhe pode transmitir o que o arcebispo dessas terras foi um dia dizer ao Concílio de Trento: os senhores cardeais precisam é de uma valentíssima e reverendíssima reforma!

Sugiro que chamem o reformador-mor da Madeira para continuar a reformar a república inteira. Já agora, ilustre possuidor da cadeira de Salazar, leia mesmo as páginas de Hannah Arendt sobre o governo dos espertos e o domínio perpétuo do acaso, para concluir que a nossa administração está cada vez mais otomana. Até porque perceber nunca foi compreender e explicar não é o mesmo do que pensar. Ninguém reforma aquilo que não é capaz de pensar e praticar. Por isso é que talvez venha a fazer greve de revolta.

27.10.06

Contra as traduções em calão de nacionalismos exógenos...

Quando ficamos retidos entre as quatro paredes, por motivo de doença, e temos tempo para perder o tempo, fechando a televisão e a rádio e não lendo jornais, apenas voltados para os papéis do pensamento, podemos fazer daqueles balanços a que dantes se dava o nome de exame de consciência, porque "je pense, donc je suis", para logo me interrogar, como o mesmo mestre, "mais qu'est-ce donc que je suis ? Une chose qui pense. Qu'est-ce qu'une chose qui pense ?". E assim posto em turbilhão, resta saudar novo dia que vem e procurar nascer de novo.

Porque ontem, assim aborrecido com as dores do corpo, mas com a alma em asa, não olhei para o discurso de Sócrates, nem para as antevisões do Porto-Benfica, optando por continuar a circular pelas chatíssimas operações de revisão do meu próximo livro, onde tenho que martelar num texto com dez anos de gaveta. Porque, onde em 1996 eu vivia a dor da revolta, ainda com esperança nas instituições, reparo que, hoje, me assoberba o desencanto, embora permeçam vivas "as esperanças de Portugal" e o "futuro do mundo". Porque só é novo aquilo que se esqueceu.

Infelizmente, devido à febre, não assisti ao começo do televisivo debate sobre a eleição dos grandes portugueses e não posso dar a minha opinião sobre tão magna discussão, típica dos frequentadores de Portugal como Torre do Tombo ou dos escrevinhadores de certidões de óbito de "uma certa ideia de Portugal". Porque, quando uma geração tem a mania de esquecer que "todas as nações são mistérios", resta exilar-me "deste país" para procurar Portugal de forma universal, naquela semente que outros nos deram e que a outros transportámos.

É o que tenho sofrido nesse "je pense" sobre o "mouvant", nesse "eu" de sempre que navega nas presentes "circunstâncias". Mesmo quando vou às profundas raízes do nosso pensamento político, encontro, como mestres da nossa profunda tradição, um Álvaro Pais ou um Frei João de São Tomás que não eram portugueses, ou um Infante Dom Pedro, que apesar de português, traduzia o que, da civilização que assumia lhe vinha por Frei João Verba. Tal como Velasco Gouveia ou João Pinto Ribeiro reproduziam da neo-escolástica.

Isto é, o que de mais autêntico há nos portugueses de radicular procura sempre foi estrangeirado e cosmopolita, num autêntico nacionalismo anti-nacionalista, porque abrasado pela procura do "abraço armilar". Daí que deteste os pretensos nacionalismos que não passam de "tradução em calão" de nacionalismos exógenos, preferindo o processo de "nacionalização das tendências importadas".

Muito pessoanamente, saliento que a nossa nação só o pode ser quando se assumir como "caminho para a super-nação futura".


Eu próprio, quando penso a política, não passo de mero repetidor do que recupero de Aristóteles e do que me foi reproduzido por Hannah Arendt ou Simone Goyard-Fabre, as minhas mães do pensar complexo, à século XX, chegando sempre à perene conclusão que somos quase sempre uma espécie de avós de nós mesmos, especialmente quando atingimos a originalidade de não querermos a originalidade.

É o que me acontece quando, às vezes, tenho a ilusão de fazer uma descoberta neste navegar quotidiano pela teia de Penélope do pensamento político. Porque quando penso que inventei uma ideia nova, logo me alegro quando descubro que a mesma já tinha sido descoberta por tipos como Platão e que, ainda recentemente, foi glosada por um dos meus irmãos desta seita da procura.

É então que fico entusiasmado, porque me me sinto acompanhado pelo padrão dos que penso que pensam de forma racional e justa, ousando persistir na mesma procura, para que outros, depois de mim, persistam nesta bela aventura. Nascer de novo, afinal, é conservar uma semente que tem vinte e cinco séculos.



26.10.06

Crise? Qual crise?

Com os intelectuais oficiosos do regime reunidos na Gulbenkian, apadrinhados por Belém, para se concluir o óbvio do não fim da história e da necessidade de bem comum, com a presença de algumas estrelas do turismo político-cultural, já antevemos a entusiástica reportagem conjunta da revista "Caras" e do "JL" sobre a matéria, todos os portugueses se podem ufanar porque a crise dos outros é tão grande quanto a nossa própria crise. Entretanto, a bendita chuva vai ensopando a pátria, principalmente a minha pequena pátria, entre o Sul da Beira Litoral e o Norte da Estremadura, ao mesmo tempo que todos os dias os telejornais nos trazem um a dois minutos de Sócrates, na sua campanha para a reeleição de secretário-geral do PS.

Crise? Qual crise? Governar, afinal, é crise e a democracia sempre foi uma institucionalização de conflitos, essa mistura de convergências com divergências que nos permite sucessivas emergências que, em vez de eliminarem os contrários nos podem trazer a complexidade crescente a que alguns ainda dão o nome de progresso.

Por mim, retido entre lençóis, devido a um estado febril de vírus gripal, entre uns ataques de tosse e algumas dores musculares, vou vendo o mundo entre a Net e as televisões por cabo, sem poder desfolhar os jornais, nomeadamente os que trazem o caso Miguel Sousa Tavares, pouco preocupado com as habituais lutas de invejas que, entre nós, sempre foram mais intensas do que as lutas de classes.


Plágios, por plágios, sempre estou mais preocupado com os universitários que conseguiram escapar à rede de análise dos júris. Apenas me recordo de um projecto de tese de doutoramento de há alguns anos, onde detectei mais de uma centena de páginas de "scanner" de outra tese que, por acaso, tinha na minha biblioteca. O sujeito em causa foi convidado a largar a profissão universitária pública, mas dizem-me que, agora, anda numa privada, acusa-me de ser mau carácter e está prestes a concluir a saga numa universidade espanhola, para depois aqui entrar automaticamente como registado. Espero não ter que o aturar um dia como secretário de Estado das Universidades, dado que o dito cujo é um activista destacado de um dos dois principais partidos portugueses e ainda por cima teve a protecção de uma salazarenta e ministerial figura.

25.10.06

Regresso à soberania, governo dos espertos e lixo processual...

Sim! Acabou a crise, Paços de Ferreira vai candidatar-se a capital europeia do móvel, graças ao recrutamento de um reforço sueco e voltámos à normalidade de chamarmos apenas gatunos aos árbitros de futebol, nestes dias que precedem o confronto entre dragões e águias. Voltámos de tal maneira à normalidade que até vamos referendar o aborto, dito IVG, com o CDS a renascer das cinzas do esquecimento, pedindo apoio à falange clerical e à Ordem dos Médicos. Sim! Acabou a crise e isto ainda é um país de valores absolutos que até aproveita os restos de soberania de que dispõe para proibir dentro das fronteiras o que é permitido em Espanha, ali mesmo em Badajoz, na Clínica dos Arcos.

Torna-se, portanto, imperativo que, para efeitos de defesa da gravidez se fechem as fronteiras: que nenhuma mulher pise o risco da fronteira ou entre num avião sem que antes faça um testezinho de procura do seu estado, através de umas gotinhas de chichi!


Sim! Acabou a crise. Os grandes e médios partidos, isto é, todos os que têm representação parlamentar não cumpriram a lei que editaram há pouco sobre o respectivo financiamento. Para quê? Princeps a legibus solutus, quem manda não está sujeito à lei que ele próprio faz, o Estado são eles e as leis que eles emitem apenas são para os selvagens dos outros, dos pequeninos que ameaçam entrar na concorrência e que é preciso garrotar. A classe partidocrática instalada é um clube fechado, sujeito àquilo que Hannah Arendt qualificava como o governo dos espertos, onde impera o acaso e o arbítrio do aplicador da lei, nestes tempos de elefantíase legiferante e daquilo que o recém empossado presidente do STJ qualifica como lixo processual.

Sim! Acabou a crise, metade dos processos dos nossos tribunais são entupimentos de causas de fotocópia, ao serviço das grandes empresas contra os pequenos devedores, nesta luta dos David, do enquanto o pau vem e vai folgam as costas, contra os Golias, das grandes corporações dos gestores públicos e dos contratos de adesão, onde todos somos iguais, mas há sempre alguns que são mais iguais do que outros.

Sim! Acabou a crise e não tardará que a política entre no nível da futebolítica, com uma opinião pública fragmentada por sectarismos, bairrismos e clubismos, com muitas destas insinuações onde as montanhas sonoras dos picaretas falantes apenas costumam parir uns ratinhos cheios de muitos apitos processuais, para que tudo continue como dantes, mas já sem quartel-general em Abrantes. Por favor, onde fica o exílio! Volta Santana Lopes, estás perdoado! Volta Paulo Portas, as forças armadas estão à espera de reequipamento! Anda cocaína na costa...

24.10.06

Inovar não é reformar...

Ontem, mal saí de casa, fui brevemente contactado pela Eduarda maio da Antena 2, para comentar o actual momento socrático, dito de quebra do impulso reformista, a que PSL chama batota política e MM, de falta de tento na língua. Apenas disse que tudo não passa de uma espécie de fim do estado de graça, coisa que aconteceu ao actual governo por duas vezes: no dia seguinte à eleição da maioria absoluta e nos momentos que se seguiram ao início da coabitação com Cavaco. Com efeito, o actual momento de quebra de promessas, mais um a vez por culpa do governo anterior, apenas revela aquilo que qualquer homem comum sente: os políticos já não respeitam a palavra dada!

O que não faria mal se apenas fossem punidos os que prometem não aumentar os impostos e depois os fazem disparar... Infelizmente, porque todos os protagonistas da situação e da oposição já demonstraram que na prática as promessas são para não cumprir, assistimos a uma crescente quebra da confiança pública nas instituições democráticas, dado que começa a fazer-se uma distinção entre a moral privada e familiar e a moral do Estado, dado que nesta última começa a ser regra os fins justificarem os meios, nesse maquiavelismo de segunda categoria, a que muitos chamam "moral de responsabilidade", quando não passa da tal falsa "razão de Estado", a que, em português antigo, demos o nome de "arte de furtar".

Ontem, à Eduarda Maio, comentei um pouco estes meandros e acabei por me lembrar, durante o discurso, da clássica frase de Edmund Burke, para quem "inovar não é reformar". Porque Sócrates, tal como os seus antecessores do PSD e do PS, apenas encenam inovações, mas sem reformas. Apenas publicam manuais da chamada reforma do Estado, palavras e mais palavras, esquemas e mais esquemas, muitos nomes e pouca parra, não assentes numa cultura reformista e sobretudo nos exemplos morais. Só há reforma quando quem a dinamiza constitui um paradigma que, pelo prestígio e pela autoridade, é seguido por causa daquele imperativo categórico, onde os cumpridores da regra a aplicam porque aquele que a determina constitui um exemplo de conduta, da qual se pode extrair uma máxima universal.

Destes politiqueiros que nos enxameiam, apenas aplicaremos o anti-Kant da moral do sapateiro de Braga: tanto não há moralidade, como nem comem todos. E só comeremos todos quando o responsável político der o exemplo de ser o primeiro dos servidores e não o primeiro a servir-se. E hoje qualquer funcionareco sabe que o respectivo subchefe apenas mantém a decadência dos anteriores micro-autoritarismos sub-estatais, com o seu cortejo de subsistema de medo e de clientelismo.

Quem tiver dúvidas que vá a uma qualquer universidade pública, para assistir aos últimos capítulos da liquidação do eterno conceito da academia de Platão. A universidade portuguesa que, apesar de tudo, conseguiu resistir ao livro único do pombalismo, à ofensiva do autoritarismo salazarento e aos desvarios do PREC, está agora a ser sujeita aos desmandos de um patrão público que se prepara para tratar da coisa como se esta fosse objecto do capitalismo ou do burocratismo estadualista. E os pretensos tratadores zoológicos nem sequer reparam que a Universidade já existe antes do Mercado e antes do Estado e que não mudou de alma nos próprios países que são o exemplo do melhor capitalismo e do melhor estatismo.

Basta dar um salto à república imperial vigente, para compreendermos que o elemento estrutural que deu aos norte-americanos o respectivo "soft power" assenta na circunstância pluralista de aguentarem e fomentarem o conceito de liberdade universitária. Aqui, em vez de homens livres e do respectivo exemplo, apenas temos burocratas e partidocratas que assaltam a hierarquia da falsa autonomia universitária para que a meritocracia não seja possível.

23.10.06

Semana de manipulação da memória

Começo de mais uma semana, em tempo dito de mau tempo, sob o signo da memória, pois daqui a um pedaço estarei a arguir uma dissertação de doutoramento sobre a matéria e, dentro de dias, assistirei a uma operação de revisionismo histórico, onde tentará manipular-se a dita, enquanto o país aguarda ansiosamente o concurso sobre os grandes portugueses, onde um dos candidatos escolhidos é precisamente o grande inquisidor.

Por isso, ao passar os olhos pelos jornais, reparo que
um dos nossos partidos legalizados, o PNR, é entendido pelo respectivo líder como uma plataforma, onde se conjugam várias tendências de extrema-direita, desde os salazaristas aos nacional-socialistas ou os fascistas. O equilíbrio, em particular na acção, surge difícil, tendo em conta, por exemplo, o histórico provincianismo de Salazar e o agressivo racismo de Hitler ou o teatralismo de Mussoli ni. Mas o presidente do PNR acha que não.

Vale-me que hoje entrei em experiências de acesso à rede através de uma plataforma sem fios, depois de consultar o mercado e depois de reparar, como potencial consumidor, que um dos quatro grupos da concorrência, depois de prometer uma campanha que duraria até 31-10-2006, decidiu mudá-la na semana passada e não cumprir a promessa escrita anterior, dizendo que até mandou retirar os folhetos que tinha nas lojas. Tentei protestar, não resultou.

Aqui, o capitalismo não tem respeito pela palavra dada, como é timbre da ética protestante que o gerou. Aliás, sempre me podem invocar exemplos de primeiros-ministros que prometeram não aumentar os impostos ou manter as SCUTs. Bem como de ministros da economia ou de secretários de Estado do mesmo ministério que, no dia seguinte a proferirem determinadas afirmações, vêm a público negá-las redondamente.


Mas voltando à memória, apenas direi que quem a procura manipular raramente repara que pode, no dia seguinte, surgir quem desmonte o manipulador, até por razões de legítima defesa da verdade. Basta recordar o tom do relatório de um enviado de John Kennedy ao salazarismo do começo dos anos sessenta, quando o enviado de Washington declarou que Portugal não era governado por um ditador, mas antes por dois fantasmas, o Infante D. Henrique e Vasco da Gama. Isto é, o ditador, fazendo manipulação revisionista da história, tentava que o discurso de justificação do poder parecesse firmado nessas figuras históricas.

Julgo que este modelo salazarento ainda está em vigor em muitos segmentos dos micro-autoritarismos sub-estatais e prevejo que vamos ter uma semana fértil nestas operações de branqueamento. Aqui estarei para as desconstruir. O revisionismo estalinista não tem suficiente lixívia para apagar a verdade, mesmo quando os estalinistas se inscreveram em partidos anti-estalinistas.

Já agora, conto que, numa brincadeira de amigos, fizemos uma simulação de votação dos grandes portugueses. No nosso círculo ganhou o Fernando Pessoa, mas em segundo lugar ficou Salazar, votando neste gente anti-salazarista. Todos chegámos à conclusão que votámos na mesma opção, porque Pessoa é uma espécie de anti-Salazar e Salazar, uma espécie de Anti-Pessoa.

19.10.06

Uma entrevista dada hoje a um jornal de estudantes...

1.Qual a sua opinião sobre a reformulação da licenciatura em Relações Internacionais que está a ser levada a cabo?

Dou toda a minha solidariedade institucional ao coordenador e meu colega que a protagonizou, mas como não sou construtivista e desconfio bastante das engenharias e dos chouriços curriculares, muito principalmente quando tais modelos são levadas a cabo por desafios decretinos, apenas gostaria que não inventássemos o que já está inventado, nem descobríssemos o que já está descoberto.

Daí que , sobre a matéria, prefira tratar da árvore que me encomendaram, uma disciplina semestral de introdução e metodologia das relações internacionais e outra de história do presente. E nisso estou a trabalhar entusiasmadamente com excelentes colaboradores, treinando até o processo como professor visitante na Universidade de Brasília que, no começo da década de oitenta, tanto influenciou o nosso modelo de ensino das relações internacionais.

Aliás, os acasos procurados dessa cooperação universitária, fizeram com que não estivesse presente na reunião do conselho científico que optou pela presente reforma, o que faz de mim uma espécie de abstencionista institucional, posição que, felizmente, não coincide com a de Pilatos.

Mas confesso que preferia ver a questão do ensino das relações internacionais numa perspectiva supra-endogâmica, como um problema da universidade portuguesa no seu conjunto e como um problema do próprio Estado Português na sua necessidade de recurso a cientistas e a profissionais na matéria. E aqui, julgo que vivemos no tradicional modelo decadentista do Portugal dos Pequeninos com a mania das grandezas, dado que não temos matéria prima de recursos científicos para tantas escolas e escolinhas de relações internacionais, tanto nas Universidades públicas como nos diversos ministérios.

Deveríamos concentrar esforços, até para assumirmos que quem nos paga é o contribuinte, garantindo um só sistema público de ensino da matéria, com a cooperação das áreas dos negócios estrangeiros, da defesa, da inteligência e da economia, através de uma sã concorrência, como fazem outros países da União Europeia e até potências bem mais ricas do que nós, de maneira a que a matéria pudesse sair deste nível quase terceiromundista, onde mandam os tradutores em calão, feitos vedetas mediáticas do comentarismo ou subsidiados por potências que nos querem colonizar.

Julgo que falta muito patriotismo científico ao nosso sistema universitário púbico de relações internacionais e por isso nem sequer conseguimos ter os necessários estrangeirados que nos permitiriam aceder à padronização internacional destas matérias. E julgo também que abundam reformadores que precisavam de uma valentíssima reforma, dado quem não parecem preocupar-se com a empregabilidade dos formandos, para não falarmos em certas sumidades que nem sequer sabem o que é viver a aventura de nos últimos vinte anos terem surgido novas gerações que querem "atravessar o limiar da esperanaça". Mas colaborarei com todos os que querem continuar a ter no ISCSP a melhor escola de relações internacionais do país e apoiarei especialmente os que permitirem que os nossos alunos já doutores por outras escolas nacionais e estrangeiras regressem à casa mãe através de urgentes concursos públicos para docentes, a fim de garantirmos o dinamismo da concorrência. Navegar é preciso para que possamos a continuar a viver como pensamos.


2. Segundo algumas opiniões, as Relações Internacionais não são uma ciência pois carecem de metodologia própria. Enquanto académico e decano da nossa área de estudo, que comentário faz a esse respeito?

Não subscrevo tal perspectiva, habitualmente emitida por membros de uma certa seita científica quando assumem a respectiva derrota no contexto da fertilização teórica. Relações internacionais são aquilo que os internacionalistas fazem, conforme os modelos das associações profissionais da área e os "rankings" dos mais citados no processo. É desta opinião comum dos que pensam de forma racional e justa sobre a matéria que deriva o objecto formal, ou metodologia da ciência. Infelizmente, a ciência das relações internacionais em Portugal ainda não está imune a certas doenças infantis e algumas borbulhagens adolescentes, pelo que ela tem sido campo de colonização de outras áreas científicas que nela coincidem quanto ao objecto material, como, por exemplo, aconteceu com a composição das comissões de avaliação do sector e como se vislumbra no nascimento de novas unidades universitárias, onde parecem fazer desaguar especialistas das antigas Faculdades de Letras, contribuindo para que a imagem da ciência se aproxime daqueles híbridos interdisciplinares com muito turismo científico e algumas interferências da própria partidocracia.


3. Na sequência das comemorações dos Cem Anos de Investigação e Ensino em Ciências Sociais e Políticas do nosso Instituto, considera que o que se tem produzido na área das RI no ISCSP é suficiente para continuar a fazer Escola?

Não gosto participar em cerimónias dos discursos de justificação do poder e decidi abster-me, porque ainda não chegou a altura de nos libertarmos de certas sombras de um passado recente que até não deixam que se faça uma leitura integral de todo o passado, nomeadamente o da monarquia liberal e da Primeira República. Como o actual poder acha conveniente continuar apenas a dialogar com a fase salazarista da escola, apesar de ter sido convidado para participar no discurso, prefiro ir plantar macieiras nos dias de tais cerimónias.

O que escrevi sobre a matéria, em livros que não puderam ser publicados no ISCSP, obrigam-me à coerência do silêncio. Mas estou totalmente disponível para me associar a qualquer cerimónia que peça perdão a quem, amando a escola e sendo figura relevante da ciência em Portugal, dela foi recebeu a perseguição e a própria expulsão da função pública. Enquanto não esconjurarmos estes fantasmas da nossa vertente autoritarista, não conseguiremos ganhar o respeito dos homens livres. Enquanto desconhecermos quem efectivamente foi Luciano Cordeiro, Álvaro de Castro, Jorge Dias, Alfredo de Sousa, D. António Ribeiro, José Hermano Saraiva, Manuel Belchior, Vitorino Magalhães Godinho ou Luís Sá, estamos a tomar um partido que não é o meu e a ter a ilusão de escrevermos uma pseudo-história dos vencedores. Se me quiserem continuar a qualificar como dissidente, tenho muita honra no epíteto. Eu não vou por aí.

4. Qual a sua reacção face ao anunciado investimento do governo em ciência e tecnologia?

Depende do conceito de ciência e de tecnologia. Parece-me que o conceito dominante nos discursos do poder estabelecido, tanto a nível do governo como dos reitores-primazes, ainda balbuciam as cartilhas cientificistas de Augusto Comte, olhando as ciências sociais e humanas como ciências ocultas a que de vez em quando se pede um discurso de cereja para ornamentar o bolo de uma decadência que nos atira para a periferia do desenvolvimento humano.

Preferia que copiássemos o modelo existente nas potências dominantes, onde não me parece que considerem como simples ideologia o tratamento das ciências do espírito. Até parece que se esquecem que cibernética, conforme o conceito matricial de Norbert Wiener, vem da palavra grega que quer dizer governo e nasceu num ambiente de teoria dos sistemas gerais, quando se procurava uma aproximação das ciências ditas exactas às ciências ditas sociais. Basta repararmos como se escolhem os avaliadores e os distribuidores de subsídios estatais para a área das ciências sociais, onde não se obedece à hierarquia conquistada pela via dos concursos públicos, preferindo-se o amigo do partido ou a figuara mediática, ao contrário do que acontece nos países civilizados, onde o regime da cunha já há muito foi superado por um sistema minimamente objectivo.

5. Portugal irá assumir a presidência da União Europeia no segundo semestre do próximo ano; quais as suas expectativas para esses seis meses?

Espero que se continue a garantir a nossa independência através de uma sábia e experimentada gestão de dependências. Como já não somos um quintal murado, mas uma simples província do euro, com os dois principais partidos portugueses vinculados aos programas europeus dos partidos multinacionais de que são meras secções nacionais, o nosso espaço de manobra é bem estreito, dependendo apenas do bom senso dos governantes e da capacidade técnica dos assessores. Como confio no patriotismo dos nossos governantes e até conheço muitos alunos da escola que circulam neses meios tecnocráticos, tenho apenas expectativas realistas de quem sabe que não vamos cair na ratoeira dos aventureirismos. Infelizmente não vislumbro sinais que nos libertem do presente desencanto sistémico que nos vai dissolvendo a cidadania, em nome da "tirania do statu quo " e do modelo TINA (there is no alternative).

6. Que balanço faz dos primeiros dez anos de CPLP?

Um bom espaço para o exercício da retórica de um lusotropicalismo "aggiornato", visando a alimentação das brasas dos Estados Unidos da Saudade, dado que ainda não é possível gerir factores de poder internacional adeauados ao sonho dos povos que integram a comunidade. Porque tudo depende do Brasil e este país ainda não tem direito a ser potência liderante do grupo, dado que ainda não abandonou o isolacionismo de Estado-Continente e não ouviu as vozes dos portugueses, angolanos e moçambicanos que clamam pela respectiva "Weltpolitik". Quando o Brasil acordar, Angola tiver direito à paz e ao desenvolvimento e outros puderem participar, julgo que Portugal não pode renunciar à sua função de irmandade. Até a União Europeia precisa desta dimensão universal de Portugal. Apenas espero que nessa altura ainda haja portugueses treinados para a cultura do abraço armilar.

Reflexão sobre o desencanto...

Confesso que, na segunda semana de regresso à rotina deste quintal murado, a que damos o nome de Portugal, me sinto cada vez mais em exílio interno, face a esta repetição de um jogo do mais do mesmo, propício à manutenção da presente ditadura da incompetência e aos noticiários do faz de conta. Ainda ontem os gloriosos intelectuais ocupantes do teatro Rivoli no Porto, depois de não terem sido recebidos pela senhora ministra da cultura, punham a hipótese da luta armada, coisa que, naturalmente, estimula o povo inteiro a votar no concurso dos grandes portugueses, onde até concorre Salazar.

Mesmo quando passamos para a alta política, reparamos que o ministro encarregado de dar injecções de confiança aos operadores económicos diz, um dia, que a crise acabou para, no dia seguinte, proclamar que quem diz isso padece de infantilismo, enquanto os impostos aumentam e as SCUTs passam a pagar portagem, porque todos leram os lábios de Sócrates antes de ter sido eleito salvador da pátria. Vale-nos que o CDS zela pela moralidade lusitana e aí está como última trincheira do direito à vida e adversário dos interesses da Clínica dos Arcos. Não me convence. Continuarei a votar como no último referendo, a favor da despenalização da interrupção voluntária da gravidez, secundando, neste caso, a proposta do PS.

Apenas confirmo que também as pátrias tendem a perder a energia colectiva, quando se deixam enredar no desleixo e entran naquele vazio de pensamento e de entusiasmo que nos levam à frustração. É o que acontece aqui e agora, nesta brevidade das coisas prometidas, quando quem sou se dispersa e se revolta.

É nestes momentos de cinzento que podemos voltar a ser. Basta repararmos que, por vezes, nos chega a tal escrita automática onde as próprias palavras se não pensam, naquilo a que alguns chamam inspiração, quando, no máximo mais profundo de quem somos, sentimos que somos todos os que antes de nós sentiram esta serena revolta de resistirmos.

Há sempre vozes de um todo que falam dentro de cada um. Essa força que nos excede e nos compele, mas de quem somos parcela, nessa antiquíssima corrente de viver o pensamento, quando, por dentro, cada um não é apenas um eu, mas todos quanto por nós dentro nos fazem ser todos os outros.

Não há desencanto que desfaça a força de um colectivo que resista. Falta apenas a palavra sucinta que nos incite, o verbo de quem somos o princípio, a raiz da força que nos faça levantar.

17.10.06

O processo de revolução vinda de cima que continua em curso

O semanário "O Diabo" publica hoje excertos de uns comentários que emiti por via telefónica, onde considero que em democracia o povo não existe, dado que os mecanismos de representação exigem vários tipos de povo, conforme as canalizações visualizadas. O povo eleitoral difere do povo das sondagens, tal como o povo das manifestações não coincide com o povo das elites. Porque o povo não passa de uma abstracção que nunca em nenhum tempo e em nenhum lado conseguiu conquistar o poder.

Logo, assinalei que o presente modelo de teatrocracia manifestativa é o tal normal anomal de uma democracia entendida como institucionalização de conflitos, com o conseuqnete sistema de ritos e mitos. Porque o povo português que já anda há trinta anos em democracia representativa sabe que todo este processo é uma espécie de jogo, com muitas manobras e muitos heterónimos. E ainda bem. Significa que somos pluralistas e todos até preferem ver professores em desfile encenado do que o ar façanhudo dos que clamavam pela ditadura do proletariado. E disso algumas coisas mais que aqui não repito.

Insisti apenas que a governação vigente tudo mede e consegue controlar em termos de "agenda setting". Aliás, não é por acaso, que em tempos de "manifs" da "rentrée", a mesma questão, posta exactamente com os mesmos termos, tenha sido apresentada para debate em três ou quatro dos nossos principais órgãos de comunicação social. Isto é, continua a ditadura dos perguntadores e os pobres mortais, do poder dos sem poder, apenas podem dar resposta à pergunta que lhes é feita pelos controladores da "révolution d'en haut".

16.10.06

De novo o Brasil. Novas reflexões à distância...

Não, não vou esquecer o Brasil... Leio que nesta segunda fase da campanha para presidente e governadores, Lula se distancia onze pontos do candato tucano e recordo o último debate da Globo a que assisti "in loco", quando Alckmin enfrentou dois antigos dissidentes do PT. Um virado à direita, sob a chapa do partido de Brizzola, já social-democrata, Cristóvão Buarque, antigo reitor da Universidade de Brasília e antigo governador do distrito federal pelo PT. Outra, a professora de medicina Heloísa, nordestina como Lula, mas que, dizendo não querer trair a sua classe, se assumiu como da esquerda pura, em nome das origens revolucionárias, proclamando que Lula se reuniu de bandidos e continuou a corrupção do governo de Fernando Henrique, sempre a denunciar os mensalões, os sanguessugas e os milhores de dólares de origem desconhecida que inundaram o lulismo. Chamou mesmo, aos ministros da área económica e financeira, muleques da banca e denunciou o desvio de renda que esta tem levado a cabo. Isto é, demonstrou agilidade, inteligência e preparação, não se perdendo em ideologismos, porque tem bem mais substância do que a imagem de exaltada e franzina.

Alckmin preferiu o jogo táctico de fugir com o rabo às frechas dos contendores e tratou de desviar todos os ataques ao sistema tucano, tanto pela defesa que fez do legado de FHC, como pelos exemplos de boa gestão que apresentou como governador de São Paulo. Infelizmente para ele não conseguiu mostrar carisma, não vendeu ideologia e não clamou contra o fim da história. Preferiu acentuar a imagem do bom gestor, conhecedor de "dossiers", quase demonstrando que não vai ter êxito presidencial.

Por isso comoveu a prestação de Buarque, o velhote idealista, que leu a cartilha dos valores da democracia, à maneira dos velhos regimes de príncipes, sempre a proclamar princípios e a desenvolver teorias experimentadas, especialmente quanto às medidas que propôs para o combate à corrupção, utilizando desta um conceito alargado, nomeadamente quando considerou que a própria gestão que o governo tem feito da bolsa-família se insere no esquema. Porque tanto serve para criar dependência, como não elimina a própria pobreza, dado que apenas serve para matar a fome sem ensinar a pescar, isto é, sem permitir um desenvolvimento sustentável. O que só seria possível pela revolução da educação e pela aposta na criação de centros de ciência e tecnologia, a fim de serem possíveis situações como as da Embraer, hoje o maior exportador brasileiro.

Lula não foi ao debate. Ele sabia que a imagem de pai dos pobres, herdada de Getúlio. tem apenas como adversário o próprio lulismo e a consequente erosão do poder, para o que elege sempre como principal adversário o tucanismo. Ele sabe que o seu prestígio lhe vem dos milhões de famintos que alimenta, mesmo que faça mais caridadezinha estadual do que justiça. Ele sabe que tem com ele a classe média baixa e maioritária, a quem não tocou na bolsa. Manteve pragmaticamente a estabilidade cambial e o programa de luta contra a inflação, em aliança com o sistema financeiro e sem a hostilidade agressiva do associativismo empresarial, ao mesmo tempo que acalmou sindicatos e adormeceu o MST, que se tem entretido, graças a gossos subsídios estaduais, a fazer uma massificada formação de quadros, preparando a passagem a futuro movimento político, sem sabermos ainda se o fará de forma institucional e pluralista, ou, então, através de um processo subversivo ou revolucionário.

A grande mancha do lulismo está na corrupção, que se transformou em torrente, ao mesmo tempo que é manifesto o alastramento da incompetência, sobretudo a nível dos altos quadros da administração pública, dado que, ao enxamear-se a máquina de comissários políticos se desestimularam os que apenas reclamam direito à carreira. E assim foi crescendo uma máquina gigantesca que se tornou na principal devoradora dos contribuintes.

Julgo que o sistuacionismo lulista, apesar de tudo, se vai aguentar. A situação económica internacional tem-lhe sido favorável e o povo continua entretido com uma espécie de continuação do menos mal dos remediados, nomedamente pelo acesso à classe média de três milhões de pessoas, dando esperança aos setenta milhões que permanecem na situação técnica de pobreza.

A subida de Lula ao poder, perante a decadência tucana, deu ao Brasil a hipótese acabar com uma larga mancha de esquerda utópica e messiânica que ainda não tinha tido a oportunidade de gestão do poder e, portanto, padecia de algum irrealismo programático. Julgo que Lula teve o mérito de dar à democracia brasileira uma maior base social de apoio e o regime passou a ser efectivamente de todos, sem agressivas exclusões, ao mesmo tempo que surgiram sucessivas quedas dos anjos. O PT já se social-democratizou e passou a alinhar na grande turminha dos blocos centrais, ao mesmo tempo que Lula foi ganhando respeitabilidade na cena internacional, onde, sem ascender à dimensão de um Mandela, soube distanciar-se do espectáculo de demagogia das republiquetas das bananas, onde muitas comédias podem redundar em tragédia.

13.10.06

O normal é haver anormais neste estado a que chegámos

E ao fim de uns dias, de intenso regresso, lá tenho que usar minhas lentes analíticas neste processo de ter de submeter-me para sobreviver, mas de procurar a luta para continuar a viver como penso, sem pensar muito como hei-de assim viver. Daí que me disperse em análises e comentários, algumas das quais em "cross fertilization" com alguns órgãos da comunicação social, falando com jornalistas que só conheço pelo telefone, mas que fazem parte de um companheirismo de gente do mesmo ramo, porque sempre me senti jornalista de ideias, embora pouco praticante.

Confesso, em primeiro lugar que não tenho receitas ideológicas ou propostas de alternativa geopolítica para o actual modelo em que este país submergiu. Se messianicamente me sentisse parte de uma qualquer seita com uma alternativa salvacionista, lá iria para o combate. Até já não tenho partido e nem sequer faço parte dos independentes que querem ir para uns quaisquer estados gerais da direita ou da esquerda. Prefiro viver como penso e continuar liberal sem ser neoliberal, tradicionalista sem ser neoconservador e ser fiel ao lema que aqui incluo na coluna À esquerda.

Daí que possa dizer que estamos condenados a esta tirania situacionista. Estamos condenados, em virtude de pressões sistémicas do ambiente que nos rodeia como país a esta democracia pluralista gerida por Blocos Centrais. Estamos condenados a continuar a ser uma província do euro. Estamos condenados a ser uma sociedade e uma economia abertas à globalização e ao presente modelo de capitalismo sem ética, onde morrem seiscentos mil iraquianos, para o cumprimento de um qualquer plano estratégico errado.

Em segundo lugar, muito domesticamente culpados, temos, para enfrentar tal desafio, um Estado Velho, filho de um pretenso Estado Novo que o PREC e a pós-revolução soarista e cavaquista não souberam agilizar em tempo de oportunidades perdidas. Porque o dito estado a que chegámos tem muita gordura, alguma celulite de brilhantina, mas continua ineficaz, com pouco músculo, nervos mal irrigados pela criatividade e ossos sustentadores descalcificados. Estamos cada vez mais anafadamente envelhecidos, psiquicamente desencantados e com alguns sintomas de depressão.

Passámos do velho Estado-Cão da Guarda da Propriedade alimentado a impostos para um Estado Social, quando Salazar traduziu com meio século de atraso os modelos de Napoleão III e de Bismarck, mas esse pretenso segurador do socialismo catedrático e da Escola Social de le Play, segundo as cartilhas de Comte e as lições de doutrina social de Marnoco e Sousa, transformou-se em mera caridadezinha de um banco dos aflitos, entupindo o serviço de urgências, onde infelizmente se passou a ler o lema comunitário de que "o que é comum não é de nenhum" como coisa de que se pode abusar e que se pode estragar. Isto é, o estatismo intervencionista em Portugal destruiu a visão radical democrática segundo a qual o Estado não é um "lui" que nos é estranho e que se pode roubar, mas antes uma exigência do Estado sermos nós todos.

O próprio socialismo de consumo agravou essas contradições culturais, porque nos apareceu uma espécie de Estado Ladrão, onde o ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão, como começa a emergir com todas estas denúncias não justiçadas sobre a corrupção.

Acresce que temos uma cultura especial e uma herança política muito própria e que não podemos aplicar receitas feitas para outras índoles. Não podíamos tentar o modelo neoliberal de Thatcher ou de Blair, porque não temos uma sociedade civil autónoma, feita "establishment". Nem podemos invocar terceiras-vias nórdicas, à finlandesa, até porque nos falta a tal ética protestante a nível do esforço produtivo. Do capitalismo apenas gostamos do hedonismo do consumo e de alguma sociedade de casino que desperdiçamos na lotaria.

Mas porque sabemos que de boas intenções está o inferno cheio, não vale também a pena inventarmos o que já está inventado nem descobrirmos o que já está descoberto. Porque podemos e devemos reconhecer que temos um feitio de sonhadores que gostam de procurar o paraíso e que, de vez em quando, acertamos no princípio do ovo de Colombo e somos capazes de flexibilidade reformista, quando colectivamente assumimos o desafio da mudança.

Foi assim que fizemos e desfizemos um império africano em menos de um século, desde a Conferência de Berlim, a partir da qual começámos a subir as ladeiras das serras de Chela e a defender-nos pelo milagre de Tancos. Foi num ápice que passámos para a integração europeia, desde a EFTA e a CEE à presente UE. Tanto nos descolonizámos em 24 horas como até implantámos uma razoável democracia, escapando às garras totalitárias e à hipocrisia dos Kissinger que nos admitiam como a Cuba da Europa para vacinarmos a velha senhora contra o sovietismo. Por outras palavras, ainda podemos continuar este milagre de sermos independentes, mesmo que a independência seja gerirmos dependências, dado que a maioria dos factores de poder já não são nacionais e resta-nos a condição de bons alunos.

Não nos espantemos pois com esta teatrocracia manifestativa, como a bem conseguida jornada da CGTP de ontem, feita com jerónima e democratíssima eficácia. A democracia é este modelo de institucionalização dos conflitos, onde o normal é haver destes anormais e onde governar sempre foi o mesmo do que gerir crises. Se é verdade que não temos alternativas a esta tirania dos blocos centrais com os seus centrões sociologicamente moles, onde há dois terços de remediados e apenas um terço de excluídos, apenas temos que submeter-nos para sobreviver e arranjar alternativas de sonhos que nos possam levar a lutar para viver, através de reformas que sejam mais colectivas do que tecnocráticas, mais políticas do que económicas e financeiras, para que o povão a elas possa aderir pela chamada confiança pública.

Daí que os governantes precisem urgentemente de estudar a antropologia das nossas virtudes e defeitos. Para que o que resta do Estado de Bem-Estar não redunde no "out of control" do Estado de Mal Estar.

12.10.06

Para que a universidade possa dar à luz, sem arder...

Regresso, bem devagar, a este dia a dia de Sócrates com Cavaco e Marques Mendes em pacto, com Ribeiro e Castro em Timor, Louçã em limbo e CGTP na rua. Sinto que regresso ao passado. A reforma universitária, por exemplo, quase parece que acabou de se concretizar com a cerimónia de assinatura de mais um acordo com o MIT, com duas entrevistas televisivas sobre o futuro com o actual quase pretérito reitor primaz e com o passado candidato ao mesmo cargo, os quais nem sequer sabem dizer que o mais grave problema da actualidade se prende com a universidade está na circunstância de nela se ter imiscuído o vício do Portugal dos pequeninos com a mania das grandezas a que chamam autonomia universitária, esse neocorporativismo de fachada que, em nome de uma falsa gestão democrática das escolas nem sequer repara naquilo que uma qualquer avaliação do bom senso chumbaria.

Ninguém faz omoletas sem ovos… Ninguém faz universidades sem aquilo que os gestores qualificam como política de excelência e que os pensadores políticos clássicos inventariaram como a procura do melhor regime. Por outras palavras, sem professores melhores e sem alunos com mais qualidade, não há MIT que nos valha, nem sábio ministro que nos compense.

Se eu pudesse ser ditador da coisa durante vinte e quatro horas, aplicaria o processo um dia sonhado por Guerra Junqueiro para aquilo que era a universidade portuguesa do respectivo tempo: incendiá-la para ver se ela poderia dar à luz uma qualquer luz. Isto é, muito metaforicamente, diria que basta usarmos os meios que temos para outros fins, invertendo o presente sentido das políticas suicidárias que nos encarquilham.

Em primeiro lugar, assumindo a humildade democrática de reconhecermos a coisa universitária como um efectivo bem público, isto é, como um bem pago pelo contribuinte e que deve estar ao serviço da comunidade, do povo, da república, isto é, do futuro de Portugal, independentemente das instituições parcelares serem públicas, privadas ou concordatárias, porque mesmo as que estão ao serviço de Deus ou do lucro, são publicamente sustentadas.

Nas efectivamente públicas, determinaria que se acabasse com a presente fragmentação destruidora, através de concentração de recursos e de efectiva descentralização centralmente controlada, através de duas simples medidas: concursos efectivamente nacionais, libertos da endogamia, e obrigatoriedade de passagem dos professores mais jovens pela periferia, antes de poderem aceder aos locais aparentemente privilegiados das zonas capitaleiras do Porto e de Lisboa.

Julgo que a efectiva mobilidade e a real concorrência pelo mérito são o segredo das universidades anglo-americanas que estão nos primeiros lugares do “ranking” mundial. Adoraria que um terço do corpo docente de cada escola pudesse circular, todos os anos, de universidade em universidade, para que a coisa pudesse abrir as janelas e deixasse entrar ar fresco, mesmo que apanhássemos algumas constipações, as quais depressa se curariam se houvesse confiança pública numa lei de oferta e da procura e na verdadeira meritocracia.

A presente gestão dita democrática é uma paródia de democracia, porque os reitores nem sequer são eleitos pelo sufrágio universal e directo dos corpos de docentes, de funcionários e de estudantes, mas pelas oligarquias de interesses estabelecidas pelo não mérito, onde as fórmulas de gestão acabam por nem sequer serem profissionalizadas.

O país ganharia com a utilização dos métodos usados pelos países onde os resultados são bem melhores que os nossos e que não desperdiçam os recursos públicos pela criação de muitos quintais murados. Não vale a pena inventarmos o que já está inventado, nem descobrirmos o que já está descoberto.

Nas minhas áreas científicas, por exemplo, sou francamente adepto da concentração das mesmas, começando por Lisboa, de maneira a que, em vez da vaidade capitaleira, possamos ter uma só capital, bem mais eficaz e bem mais pequena, onde não deixemos que as vaidades e os golpes clientares dos próprios ministros e ministérios criem, para uso dos delfins, escolinhas próprias e golpadas na distribuição dos subsídios, fora do controlo científico.

Se me deixassem, delineava desde já um plano de emergência de uma política de Estado, à semelhança do que fazem unidades políticas como os Estados Unidos, o Reino Unido ou até a própria França, unificando esforços das universidades e dos ministérios dos estrangeiros e da defesa, procurando garantir que o interesse nacional deixe de andar a pedir subsídios a potências estranhas, ou a entidades financeiras e económicas estranhas ao interesse público, como presentemente acontece, neste Estado que deixou de, nestas matérias, de ter política de Estado e prefere terceiro-mundizar-se.

10.10.06

Espreme, gota a gota, o resto de escravo que guardas dentro de ti

Regresso. Àquilo que eu digo ser a minha terra. Como se a pátria tivesse que ter uma terra, como se a pátria, minha, não fosse, desde sempre, a pátria prometida, a onda peregrina do navegar é preciso, viver não é preciso, como se navegar não fosse imaginar.

Regresso e confirmo: ainda sou, como muitos outros, desses portugueses antigos da velha cepa, desse povão silencioso que não precisa de adornar-se com as penas do estadão ou dos aristocretinos. Ainda quero ser de antes quebrar que torcer, desses que, desde sempre, trazem consigo a missão da procura do paraíso.

Regresso. Português antigo a quem continua apetecer voltar a ser um português à solta. Desses a quem apetecia ficar para sempre nessa ternura de todos os dias ter de escrever seu escrever-se.

Porque em qualquer lugar pode haver calor da tarde a despedir-se do sol, até que uma lua de prata lhe volte a dar a lua cheia que o vento amaine. Se ainda houver um qualquer mar que nos dê viagem. Mesmo que seja essa de apetecer continuar menino, brincando nos rochedos da baixa-mar, onde, nas breves piscinas, pode haver caranguejos, estrelas do mar e peixes de várias cores imaginadas.

Para que chegue a praia-mar, a força que vem do princípio do tempo, o corpo em sal diante do sol, o prazer da sombra em horas de meio-dia. Para voltar a ser quem sempre fui, resto de sol, semente de luz, diante do mar, olhando a brevidade de quem sou corpo.

Sabe tão bem saber que de onde o sol nos vem está o próprio mar feito viagem, o oceano que será sempre poder-ser. Porque atravessando quem sou, feito de histórias que reconto, vou dizendo em mim a força de quem sonho. Para poder esquecer que apenas sou intervalo de uma viagem maior que desde sempre trago comigo.

Sou de uma pátria maior do que as andanças das cidadanias pequeninas. Dessas que se vingam nas dívidas de uma região autónoma, ou que se vão ornando com discursos de um procurador ou de um presidente.


Prefiro as muitas gentes de uma gente armilar, bem mais imensa, bem mais diversa. Sou do tamanho do que ainda posso sonhar de Portugal. Do que foi e do que há-de ser.

Não quero volta ao linguajar de comadres num quintal estendendo a roupa suja, branqueada com amaciador do mais do mesmo.

Prefiro o tamanho universal dos que procuram, embora não consigam, o mundo inteiro abraçar. E continua a apetecer largar de mim estes lastros de um passado agrilhoado, agora perdido nos muitos micro-autoritarismos subestatais e comunicacionais. Onde muitas estrelas cadentes reflectem um brilho que lhes vem do longe, mas sem serem sequer iguais aos astros sem luz que causam as marés.

Nos outros prefiro continuar a achar estes restos se uma saudade de futuro, estes restos de procura que me fazem pedaço de um novo tempo por cumprir.

Porque ontem foi segunda-feira mesquinha, neste ouvir as novas de uns pequeninos que se pensam Portugal só porque são ministros, ou líderes de uma oposição que já foi ministra, e que brincam aos discursos de reforma, como se as causas da tirania situacionista pudessem mudar as condições que lhes permitiram mandar em nós.


Porque ontem passeei por entre um povo que continua a ser encarneirado para cumprir horários ou preencher formulários e a quem proíbem a esperança de procurar.

Vale-me que dei aulas. Umas horas de aulas. E senti que do outro lado estava gente que senti do mesmo lado. Olhos de esperança. Vontade de cumprir uma missão. De peregrinar o mundo inteiro. De largar desta prisão murada pelos mandadores de sempre.


E voltei citar o velho lema de Sá de Miranda. E a dizer o que aprendi em Soljenitsine e Tchekov: espreme, gota a gota, o resto de escravo que guardas dentro de ti.