Pedro Tamen - O livro do sapateiro
Eu diria que se escreveu como se já não houvesse tempo para as razões, mas a escrita faz um desafio e agarra pelos olhos as tais cores do tudo que perduram no livro do sapateiro.
Nota-se que o sapateiro segue a analogia dos dedos que fizeram irmãos em livro anterior, diria até que a mão direita do sapateiro, sabendo ou não, foi aceitando um acocorar dos tempos, sobretudo quando eles nem concluíram a cena-vida, nem apenas a ela lhe chamaram solidão.
No tempo 4 o livro do sapateiro recorre a uma luz de tempo antigo como se o tempo novo não coasse os saberes por filtro anterior. Assim somos levados a concluir que em muitas horas não se descortinou o que foi a interpretação do que transporta e move o sapateiro e o sapato e que é precisamente esse tempo do transportar o que afinal lhe resta descobrir.
Neste tempo, sapateiro e sapato comungam a opinião de que o comércio dos saberes e dos sentires é afinal merceeiro, tão merceeiro que o cheiro do vinagre surge ao sapateiro com a utilidade de entender a vida na sua metade e não pela metade no sentido de amputada. Antes nos surge que o sapato se fez e se faz no espaço imenso de um sopro. Assim o entendemos até ao tempo 7 deste livro.
Contudo, desafia-se o sapato e o pé, ao mesmo tempo que faz todo o sentido compreender neste livro, o dizer não digo, pois já disse, qual condenado ainda a tempo. Sempre a tempo de aceitar a condenação que rejeita.
De propósito o livro do sapateiro surge numa perfeita confusão esclarecida.
Ao tempo 12 não distingue o poeta a margem, para que não surja a ponte que afinal recusa não ter visto na hora de se fazer oferecida ao seu olhar. Era sal, talvez, ou era pão o que se viveu e se vive e no entretanto do hoje a esperança, ainda assim na mão da pele também ela acocorada, temerária e insistente até romper a juventude que lhe resta.
Sentimos uma característica clara nestes poemas: eles recusam os caminhos miméticos pois que a obra não é trabalho de encomenda, como nos aperta o tempo 19. Todavia admite-se claramente que o destino é caminho incerto, é soluço admitido, mas a vida é outra coisa: sentimos que se afirma que a vida é um regresso ao princípio. Ao princípio do dia em que não renascendo se nasce.
Para nós este é o grande sapateiro que não foge, mas aceita sem receio o castigo de um prego pelo desrespeito que anteriormente lhe prestou. Desatenções?
Há no tempo 26 diga-se, uma fisga que dispara o suicídio de muitos dias, certo de que os sapatos aguentariam caminhos diferentes ou mais arrojados . Talvez por isso a tristeza líquida do choro quando nem a fruta que cuidou o reconhece. Parece que o sapateiro poderá agora sim, estar cego. Ou poderá querer fugir do destino ao qual apela deitando mão das cerejas?
Enfim, a cave é em muito o local da vida que o sapato usa e pisa e lustra. Afinal a cave faz parte do que pertence ao poema do livro no seu todo, pois que está à frente do próprio sapateiro e não só, mas também, para que lhe recorde a pele transfigurada quando é tentada ou saudada pelas pastagens verdes do tempo 41.
Surge-nos o livro do sapateiro e nele um construir de muito fundo um alicerce ao livro todo; suporte sintético e certeiro das palavras aos dias de uma vida em muito feita, prego a prego semeando pregos, horas a fio, na obtenção de um esclarecer que clareie razões ou as justifique ou as negue.
Surge-nos este excelente livro e no qual se constrói, sem paradoxo, um único poema que se ilumina também com a infelicidade. Aqui a infelicidade é também protagonista de um especial luzimento a muita vida em que se vai polindo o próprio sol? ele que desde logo subentendido no tempo 49, não deixa de ter voz para nos dizer o quanto os últimos dias, se têm brilho, será exactamente por nunca serem os últimos, ainda que o poeta aqui e ali os queira averbar.
Porém, a verdade é que o brilho imperecível deste sapateiro de olhos molhados já se fez à estrada pelo pé do escriba.
Referimo-nos à estrada magnifica e através da qual no tempo 43 o sapato concluído enfim e até hoje, vai e irá, montes e flores onde exacto encontra a sua maneira de bambalear o caminho, aquele com que tempera a natura numa liberdade elástica exposta nas palavras eximias do tempo 36.
Teresa Vieira
Sec.XXI – Fevereiro 2010