a Sobre o tempo que passa: maio 2007

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.5.07

Bolonha, quando havia uma corporação de estudantes e professores, apoiada pelos reis e homens bons das cidades, ao serviço da república

Ontem não comuniquei por blogue, dado que cumpri a missão de senador eleito da minha universidade numa reunião plenária desse órgão soberano, em tempo de crepúsculo institucional. Claro que fiz a minha intervenção, dita filosófica, onde disse o que aqui tenho proclamado, sobre esta esta encruzilhada. Ficou o registo. Até disse que poderia ser uma das últimas reuniões da UTL, se a principal escola se fundacionar. Mas ninguém efectivamente informou os senadores daqueles segredos que circulam nas alturas do CRUP, da PCM e da AR, entre a imaginação decretina de ministros, partidocratas e deputados, todos entretidos na sua "révolution d'en haut".

A herança absolutista que nos enregela continua a considerar que público é aquilo que vem, muito verticalmente, de cima para baixo, de sua alteza o estadão para a planície unidimensional dos súbditos. Em segundo lugar, a mesma herança colectivista e antiliberal também confunde o privado com o lucro, tal como atribui ao concordatário o monopólio do místico e do espiritual. Em terceiro lugar, interpreta o regime constitucional do Estado de Direito, de acordo com a mentalidade regulamentarista do princípio da legalidade.

Esta instituição plurissecular chamada universidade, que já existia antes de haver Estado, enreda-se na política de sigilo do estadão e não consegue que se invente um estatuto adeuado à sua natureza, para a situar no seu verdadeiro lugar: aquilo que, muito à maneira anglo-americana se chama sociedade civil e que, entre nós, se deveria dizer o sector comunitário, que não tem de ser público nem privado, mas uma ideia de obra, um sistema de autonomia, onde as regras vêm de baixo para cima, e a inevitável manifestação de comunhão entre os respectivos membros.

Quando Bolonha, a do século XIII, espalhou o processo de restauração da academia de Platão e do liceu de Aristóteles por toda a Europa, ainda não havia Maquiavel, o inventor do Estado, nem Bodin, o inventor da soberania. Havia uma corporação de estudantes e professores, apoiada pelos reis e homens bons das cidades, ao serviço da república. Não havia ainda despotismo ministerial, partidocracia, nem centralismo governamental ou parlamentar, com o seu direito administrativo, de absolutista marca, incluindo a da democracia absolutista. Eu tenho saudades de futuro. E, em termos universitários, sou mesmo corporativista, isto é, pelo corporativismo pluralista, federalista e de associação, inimigo do corporativismo de Estado do salazarismo, que estragou a palavra e me obriga a falar em anglo-americano, reclamando para a universidade a autonomia da sociedade civil.

Logo, não podia haver uma universidade dita privada, maioritariamente detida por um autarquia local, onde o presidente, com menos de catorze de licenciatura, era o presidente da direcção, alimentado sem vencimento, mas com gasolina, refeições e senhas de presença, enquanto acumulava com as funções de presidente da assembleia da mesma autarquia, tornando-se depois o futuro presidente do partido que tinha a maioria na mesma chafarica. A advogada que logo avençou seria também a vice-presidente do seu partido. O autarca com quem estava aliado seria afastado do respectivo partido quando se zangou com o chefe.

Julgo que não será aconselhável deixar que esta classe política monopolize a discussão sobre a matéria.

30.5.07

Confesso que voltei a fazer greve

Tal como aconteceu em Janeiro de 2004, volto a proclamar: confesso que fiz greve. Continuo como insindicalizável, liberal e de direita, mas opto por reagir contra esse símbolo do poder que é a ex-sindicalista e directora-regional de educação do norte e todos os restantes repetidores do domínio burocrático do ninguém. Repito o que, sobre a greve de 2004, escrevi: O que nos falta é uma adequada cultura de Estado de Direito, capaz de eliminar, pela raiz, os “tumores” dos micro-autoritarismos ministeriais, secretariais e sub-estatais, onde inúmeros bonzos, ministeriais e autárquicos ... continuam o absolutismo, dizendo que tem valor de lei tudo aquilo quanto vociferam, sob o nome de ordens, e não estando dependentes da ordem geral e abstracta que dão aos subordinados. O que faz falta, não é animar a malta, é um pedacinho de patriotismo científico.

P.S. 1. Assinei o livrinho de termos, autorizando o registo nominativo do meu acto de greve, apesar de o considerar inconstitucional. Reparei que alguns colegas muito à esquerda não aderiram, uns por razões financeiras e outros com a pilática desculpa de hoje não terem aulas. E lá tive que dizer a um ilustre situacionista que assumia, em coerência, a minha atitude, repetindo o fiz em 2004 com um governo de não-esquerda. Cá para dentro de mim, apenas recordei que, além de ter sido um activista de comissões de trabalhadores anti-PCP, lá em 1976, também fui, na época, candidato à direcção do primeiro sindicato da função pública e fundador de um sindicato da UGT que ainda hoje mexe e que, aliás, me convidou para participar num seminário no próximo mês de Outubro. O tipo que me verberou, ilustre PS de hoje, andava então pela UDP...

P.S. 2. O senhor ministro das finanças ganhou o gosto pelo microfone e pelo palco mediático. Comentou a greve, à boa maneira de um capataz do patrão Estado, mas não deixou de dizer que a culpa pela exigência de dados nominais sobre os grevistas, bem como a obrigação de comunicação fiscal das doações entre familiares cabe exclusivamente aos serviços da sua administração directa, isto é, à sua direcção-geral não sei quantos, que tem o director-geral em dias de fim e que, portanto, até pode ser diabolizado por quem há pouco tempo o santificava. Pilatos não faria melhor discurso. Aliás, essa "pura iniciativa da administração" não iliba o ministro que é o responsável directo por essa mesma administração, para as coisas boas e para as coisas más. Mesmo depois de, há meses, o próprio primeiro-ministro ser interpelado directamente sobre uma dessas matérias na televisão, negando o que afinal existia.

29.5.07

Neste ambiente inquisitorial, onde a história pode voltar a ser o género literário mais próximo da ficção



Um dos candidatos à autarquia de Lisboa bloqueou ontem as instalações da empresa municipal de saca multas aos carros mal estacionados, com uma fita da cor com que os fiscais da dita nos chateiam quotidianamente. Teve direito a telegrama da Lusa e a breve som na rádio, mas não passou para os diários de grande circulação no dia seguinte. O critério jornalístico foi mais soberano do que a lei que manda dar igualdade de oportunidades a todos os concorrentes a um acto eleitoral. O espaço de transmissão de notícias preferiu o camelo da JSD e a comissão de honra do ex-ministro Costa, onde estiveram várias notabilidades e gerontocratas, nomeadamente o retirado Freitas do Amaral, nomeado por Celeste Cardona reformador geral das prisões.


Por isso, reparei que entre os meus "mails", constava um do grupo
Lisboa, Renascer, onde pode ler-se: somos um grupo de três pessoas “conectadas” que pretendemos criar um grupo de 23 pessoas candidatas à Câmara Municipal de Lisboa, nestas eleições intercalares. Não temos, nem nunca tivemos partidos políticos, não somos de esquerda nem de direita, mas sim de “cima”. Procuramos o bem-estar pessoal e social, não num eixo de esquerda, direita, ou vice-versa, mas num eixo vertical de terra e céu. Com efeito, temos conhecimento dos problemas que afectam a Câmara Municipal de Lisboa e possuímos competências em engenharia, urbanismo, prospectiva de organizações, gestão, finanças, marketing.

Propomo-nos iniciar aqui e agora o quinto Império, isto é o Império do Espírito Santo. Queremos implementar aquilo que já foi desejado pela Rainha Santa Isabel, quando introduziu em Portugal o culto do Espírito Santo….
Não queremos o poder dos poderosos, mas o poder dos bons e sabedores, quer sejam de condição rica ou pobre, e poderosos ou não. Queremos dar origem a uma nova Terra! E isso só será possível se outro género de políticos passar a existir. E tudo pode começar neste acto eleitoral! Sabemos que Portugal, e neste caso Lisboa, já tem gente suficiente para perceber esta mensagem, e mesmo que anseiam ver esta alteração politica...Esta comunicação, e porque se dirige apenas aos portugueses com vida espiritual, onde queremos ter a nossa base de candidatura eleitoral, não se debruça sobre as razões de natureza técnica e politica, que será dada a todos aqueles que estiverem interessados em pertencer à lista de candidatos.

Como não estou assim conectado, não respondi afirmativamente ao convite deste movimento espiritual. Apenas reparei que, como cidadão de Lisboa, já tenho um passivo individual de uns terráqueos 2 382 euros, nomeadamente para o pagamento dos assessores do senhor presidente da câmara, entre os quais figuram vários ornamentos do "jet set" e outros tantos jornalistas avençados.

Por isso, lá tive, muito delicadamente, que declinar o convite recebido para participar numa dessas comissões de honra, que bem me poderiam colocar no centro desses clubes dos pretensos vencedores, com maior oleosidade em futuras cunhas, nomeadamente para os carros que, de vez em quando, tenho de estacionar em cima do passeio.
Confesso que a única cunha que era capaz de meter, e me podia comprar para o sistema, era a que me permitisse ver livre desse mesmo sistema, a caminho de um qualquer exílio que me libertasse dos esquemas do governo subsidiocrata a que nos condenaram.

Porque noventa por cento dos chamados candidatos a presidente do município lisbonense apenas pretende um lugarzito de vereador, enquanto os restantes sabem que apenas fazem campanha para, durante dois anos, fazerem mesmo campanha, para ocuparem o lugar para os outros quatro anos pós-intercalares, fazendo-nos esquecer que não passam de meros delegados daquela partidocracia que, depois de provocar o ruinoso incêndio, se quer agora assumir como uma espécie de bombeiro-pirómano.
Prefiro os helicópteros russos que, ontem, Rui Pereira foi comprar a Moscovo, com os títulos da dívida da velha Associação de Amizade Portugal-URSS.

Acho bem mais interessante o apelo à Rainha Santa Isabel, essa aragonesa que nos deu o milagre das rosas. Julgo que ela não participou ontem na assembleia-geral do milenar banco, onde, também ontem, se enfrentaram duas facções financeiras do Opus Dei, com a participação dos principais advogados lusitanos, nomeadamente o que, agora, se assume como grão-mandatário do ex-ministro Costa. Continuo a integrar o partido de el-rei D. Dinis, como me ensinou mestre Agostinho, lá na Travessa do Abarracamento de Peniche, entre gatinhos e sinais templários, com algum lume da profecia e muito mais lume da razão.

Não tenho pergaminhos espirituais suficientes para tal missão. Cartesiano e laicista demais para poder dialogar com o infinito, apenas sou uma potencial vítima de um qualquer hierarca decretino em excesso de zelo, que bem pode mandar um dos seus espiões ler estes postais do blogue, para imediata denunciação de ouvida junto do senhor director, ou da senhora directora, neste ambiente onde a história pode voltar a ser o género literário mais próximo da ficção.


Ao contrário dos que julgam que estou a fazer ironia, tenho de confessar publicamente que já fui vítima deste inquisitorialismo de trazer por casa, quando um senhor director, que costuma ler fotocópias deste blogue, transportadas por um público e notório especialista em espionagem, insinuou que eu era o autor de todas as coisas anónimas que, sobre ele, abundam na Internet. Por isso, agradeço aos militantes do PS Jorge Coelho e António Vitorino, a pronta defesa da liberdade que emitiram, dado que assim atalharam a ameaça dos candidatos a Hugo Chávez que por aí circulam, com cartão do PS e apoio aliancista de fascistas reais e estalinistas não arrependidos. Vale-nos que ainda há activistas do Espírito Santo, banqueiros do Opus Dei, madeirenses como Berardo e uma ampla maioria de socialistas liberdadeiros, com quem lutei pela liberdade, quando muitos cristãos-novos do actual partido da rosa ainda eram idiotas úteis dos nossos totalitarismos e autoritarismos.

Hoje, entro em dia de reflexão. Vou decidir se amanhã farei ou não greve, integrando a lista de suspeitos, informaticamente registável, atrás dos comunistas da CGTP, contra as chouriçadas gaguistas. Para tanto, irei reler o artigo do funcionário público António Barreto sobre o presente socratismo. Da última vez que estive com o actual líder do PS, em reunião não privada, testemunhei a fúria que se apossou do actual primeiro ministro, quando invoquei o nome do ilustre sociólogo, que, por mim, bem gostaria de ver como candidato a presidente da autarquia lisbonense...Pelo menos, faria a diferença face ao azul e vermelho dos cartazes de Fernando Negrão da Costa que, lado a lado, nos vão poluindo no mais do mesmo.

Continua obsidiante esta minha vontade de quebrar as algemas que me ligam ao decretino e à escravatura dos pretensos reformistas que nos cavalgam e que transformaram os aparelhos de Estado que ocuparam, em esgoto para as respectivas frustrações, eliminando espaços da sagrada autonomia das pessoas e dos grupos não estatizados que nos davam o bem comum. Até a própria universidade não escapa aos pretensos manipuladores da engenharia social, justificando-se, mais uma vez, a resistência da urgente federação dos homens livres, de todos esses pequenos proprietários dos respectivos saberes e carreiras, conquistadas a pulso e que não podem ceder aos pequenos tiranetes e ressaibados que se preparam para esmagar as autonomias daqueles indivíduos e grupos, donde se fez pátria.

26.5.07

Não deixemos que a máquina estatal, paga pelo suor dos contribuintes, se fragmente em neofeudalismos partidocráticos

Apoio o grito de revolta do meu amigo Mendo Castro Henriques, mesmo quando é pública e notória a minha antiga preferência pela Ota. Os amigos são para as ocasiões, mesmo quando têm sucessivas divergências de intervencionismo cívico e de reivindicações memorialistas, como a da campanha contra Aquilino Ribeiro, esse pedaço de pátria em forma escrita, que a todos nos deu identidade e que não pode ser decepado da tradição. De outro modo, também teria que reduzir D. Miguel à mera categoria do terrorismo e alinhar com banimentos, a que não escapariam muitos outros membros dos nossos panteões.

Apenas acrescento que não vale a pena alinhar em certos delírios oposicionistas que, tomando como pretexto as "gaffes" e gafarias que ensombram o executivo, acabam por entrar no ritmo da caricatura propagandística. Os vícios do centralismo e do autoritarismo são uma possibilidade que pode afectar um qualquer detentor do poder.

Também eu temo este agigantar do poder de ninguém, típico do comunismo burocrático, onde o clamor público do direito à indignação apenas consegue parangonas e ritmo contestatário de telejornal quando a pretensa vítima, dizem que a sexta, é um ex-deputado. Porque os vícios do micro-autoritarismo subestatal podem continuar a ser os anónimos cidadãos que não conseguem furar o bloqueio desta democratura de silêncios.

Já Montesquieu observava que quem detém um qualquer pedaço do mesmo poder tende a abusar do poder que dispõe. Por isso, apontava para a clássica balança receita da separação e divisão do poder e dos poderes, pelo establecimento de um sistema de pesos e contrapesos, de poderes e contrapoderes, onde, para cada acelerador, se deveria estabelecer um travão, naquilo que, outrora, Cavaco Silva qualificou como forças do bloqueio.

Julgo que as recentes crises têm a ver com a nossa falta de cultura pluralista, que tanto tem afectado o absolutismo do despotismo ministerial, como certo absolutismo democrático que lhe sucedeu. Onde, em vez de um rei absoluto, se colocou a absoluta abstracção do povo.

Com efeito, o chamado povo, como tal, nunca esteve nem estará no poder, dado que quem efectivamente o gere são os chamados representantes, como se dizia o antigo rei absoluto ou como se dizem, actualmente, os deputados eleitos e os governantes que aqueles sufragam.

Acontece apenas que estes representantes, directos ou indirectos, dependem do sistema de canalização que os elevou ao palco do estadão democrático. Isto é, dependem de duas formidáveis máquinas que podem desfocar a relação directa com o eleitorado. A montante estão os oligárquicos mecanismos da partidocracia. A jusante, os verticalistas processos dos aparelhos da administração do chamado Estado.

E tudo se agrava quando se elimina o sistema de competência e de carreira do velho conceito weberiano de burocracia racional-normativa e se faz um curto-circuito da partidocracia para a burocracia, com a criação dos tais
jobs for the boys and girls, nomeadamente com directores-gerais da confiança política, ou pessoal, dos senhores ministros. Porque se transporta para jusante a poluição existente a montante.

Logo, uma qualquer ministerial figura, marcada pela partidocracia, não pode lavar as mãos como Pilatos por um acto de um seu director-geral, nomeado segundo o critério da confiança política. Não pode invocar a autonomia institucional de uma qualquer direcção-regional, dado que o vértice é imediatamente responsável por tudo quanto emerge na fileira dos directamente dependentes. Não lhe é possível dizer, de acordo com o princípio da subsidiariedade, que uma entidade de ordem superior não pode interferir na esfera de autonomia de um seu directo inferior.

Esse modelo funciona quando há um complexo de esferas autónomas em razão da sua natureza, onde a que tem menos espaço na hierarquia nem por isso perde a plenitude da sua independência, nas matérias em que tem competência própria. O director-regional nomeado por razões de confiança política é tão indistinto quanto o adjunto ou o chefe de gabinte de Sua Excelência. Pertence à zona do não-pessoal-de-carreira, sendo passível de instalação e remoção pelas vagas do "spoil system".

Os sinais de despotismo de um só podem conduzir ao extremo oposto do despotismo de todos, também embrulhado nos mesmos mecanismos delatórios, com denunciações de ouvida, demagogia e populismo, os habituais prelúdios dos césares de multidões, nessa espiral de vindictas a que só pode atalhar-se pelos cumprimentos dos conselhos de Montesquieu, conforme a cultura do Estado de Direito.

Porque se apenas mantivermos o verniz do Estado de Legalidade, nem Bordalo Pinheiro poderia editar o seu "António Maria", havendo sempre candidatos a juiz Veiga, com os consequentes moscas do Intendente e bufos da PIDE. Não deixemos que a máquina estatal, paga pelo suor dos contribuintes, se fragmente em neofeudalismos partidocráticos.

25.5.07

O imaginário da geração que traduziu em calão o Maio 68 ainda não compreendeu que todas as revoluções são pós-revolucionárias

Tenho passado os dias a rever a primeira parte de um relatório sobre metodologias da ciência política que apresentei para concurso público, no século passado, no ano de 1996. Só uma década depois é que ele sairá dos prelos, principalmente para demonstrar como em Portugal qualquer esforço no sentido de se obter o consentimento dos que pensam de forma racional e justa não consegue solidificar uma opinião comum, capaz de influenciar os homens livres.

Com efeito, o jogo dos grupos de pressão e dos grupos de interesse, nessa manipulação de uma gerontocracia, entretida com a literatura de justificação do poder que alcançou e com o consequente revisionismo histórico, leva a que os restos de universidade que ainda resistem caiam na esparrela das chouriçadas, alimentadas por elementos colonizadores, vindos da partidocracia, das catacumbas da buracratite ou das empresas onde são empregados, usando a universidade para cartão de visitas.

É com a angústia do desencanto que revejo palavras e ideias de uma época em que ainda tinha esperança na instituição fundada há vinte e cinco séculos por Platão. Vejo agora que o desencanto é cada vez mais pressionante. Mesmo as eventuais boas intenções do ministro Gago e dos seus compagnons de route se preparam para manter esta instabilidade estatutária, em que costumamos ser férteis, repetindo o erro jacobino de Veiga Simão, que fez uma reforma pombalista para a não executar, desculpando-se sempre com a circunstância de a criatura se ter liberto do criador.

Agora, todos os universitários, os que esperam o prometido pacote decretino do senhor ministro, que quase nos obriga a louvaminhar os novos amanhãs que cantam, sabem, de experiência sofrida, que esse impulso reformista vai ser sucessivamente barganhado em instabilidades e eventuais vazios de poder, até porque este ministro, muito provavelmente, não será o executor da peça com que doirará as respectivas memórias. O conceito indeterminado da bolonhesa, a criação de fundações, as campanhas eleitorais para as curadorias e as reitorias, a dependência de todos os aparelhos dos critérios mínimos de excelência, etc. , redundarão na inevitável guerra de todos contra todos, onde acabarão por gerar uma luta pela sobrevivência no emprego, com a consequente feudalização de um processo que deveria ter uma ideia de obra, claro cumprimento das regras processuais e manifestações de comunhão entre os membros da instituição.

A Universidade que sobreviveu à Ditadura, ao PREC e à pós-revolução corre o risco de não aguentar os muitos aprendizes de feiticeiro que ainda não compreenderam que o feitiço se volta sempre contra o desencadeador da tempestade. Julgo que qualquer revolucionário frustrado não consegue, a partir da respectiva frustração, assumir a necessária reforma de uma entidade que caiu nas teias de grupos de pressão e de grupos de interesse. O imaginário da geração que traduziu em calão o Maio 68 ainda não compreendeu que todas as revoluções são pós-revolucionárias e que quer fazer de anjo acaba por se tornar, muitas vezes, num bestial que, depressa, passa à categoria de demónio.

Não é a Gago que me refiro. Mesmo que o remodelassem, isso não impediria que fossem contidas as forças de destruição que as respectivas boas intenções desencadearam e que acabarão por fazer prevalecer os fagmentários interesses das muitas árvores que não têm o sentido da floresta. Não tardará muito que entidades com interesses financeiros acabem por aproveitar esta oportunidade de res nullius, para aqui instalarem a racionalidade importada de um novo ensino superior verdadeiramente privado e lucrativo, a que se acolherão os consumidores defraudados pela falta de qualidade da chouriçada que se avizinha, dado que nem sequer podemos recorrar à ASAE e à DECO, porque os produtores da fraude continuam a abusar da respectiva posição dominante no mercado da publicidade enganosa.

Vou continuar a rever o meu trabalho, ao ritmo de memórias futuras. Pelo menos, ficará nos arquivos de quem o ler, quando a investigação científica voltar a ser dos investigadores e as aulas, dadas por professores que fazem do ensino a sua primeira paixão e não um trampolim para as respectivas vaidades ou jogos de infuências e tráfico de poder.

Isto é uma espécie de país, com música de Marques Mendes e letra de Mário Lino




O presidente do município de Oeiras congratulou-se, ontem, em Lisboa, com o logótipo "Flor Azul", que será a imagem de marca da próxima presidência portuguesa da União Europeia, num acto que disseram simbolizar o arranque do exercício semestral. Coisa que foi ministerialmente qualificada como "um símbolo da imagem de modernidade que Portugal assumiu no contexto europeu". Não consta que a autoria da dita flor caiba a um celebrado artigo de Clara Pinto Correia, nem que a mesma seja acompanhada pela musiqueta que abre o programa dos Gato Fedorento. Também ninguém refere se Isaltino Morais vai processar a União Europeia sobre tal usurpação imaginativa. Apenas observo que não vale a pena inventar o que já está inventado nem descobrir o que já está descoberto.

Santana Lopes acusa Marques Mendes de práticas nazis. Marques Mendes diz que Mário Lino não está bom da cabeça. E o ex-deputado Charrua é que vai suspenso. Almeida Santos fala em ataques terroristas que acertam nas pontes sobre o Tejo, enquanto D. Afonso Henriques, liberto do túmulo, diz que ainda tem suficientes mocas de Fafe para dar cabo do canastro a todos os comandantes de terra seca que nos estão a levar ao fundo. Por outras palavras, se a política portuguesa cabe toda num velho palco do Parque Mayer, protestamos vigorosamente contra alguns desses mais exaltados que querem internar os respectivos colegas no Júlio de Matos, no Sobral Cid e no Miguel Bombarda. Rir é o melhor remédio.

24.5.07

O décimo segundo candidato: "não queremos ver Lisboa a arder"



Reparo, através do registo dos motores de busca, que este blogue foi muito visitado por aqui ter transcrito uma
frase atribuída ao rei D. Carlos e que, em parte, fez parte do alegado insulto do ex-deputado Charrua ao Estadão. Apenas respiro de alívio depois de tomar conhecimento dos recados do presidente Cavaco, do meio-termo assumido por Sócrates e da boa prestação televisiva de ontem de Jorge Coelho sobre a matéria. E bem poderia enumerar o que, em privado, mas em pleno edifício público, ouvi de altos hierarcas do Partido Socialista, num assunto que não deve servir para conflitos entre oposicionistas e socialistas, mas antes para que eliminemos todas as dúvidas sobre o ar livre em que todos queremos continuar a viver.

Prefiro rever a bela prestação do ministro Mário Lino na Ordem dos Economistas, dado que aquela do
não há gente, escolas, hospitais, comércio, onde não há indústria nem hotéis
, com cancerígenos ataques aos pulmões, falta de um braço e de uma perna, foi outro dos habituais exageros do ex-bloguista em figura humana, que teve o condão de nos despertar uma dessas saudáveis gargalhadas, à imagem e semelhança da que deveria findar com o episódio Charrua. Com ministros destes, não há, felizmente, bananas que coincidam com sacanas. Nesta terra da boa gente que ainda resta, até eu sou capaz de apoiar o partido da Ota, se me continuarem a convencer com risadas e argumentos racionais e a não confundirem a opção com tiradas iberistas.

Aliás, basta reparar como as candidaturas à autarquia dos alfacinhas de gema e clara já atingem esse símbolo da plenitude que é o número dos trabalhos de Hércules e dos meses do ano, isto é, tantos quantas as estrelas da bandeira da Europa que, por acaso, era a do Quinto Império, conforme a descrição do Padre António Vieira. A plenitude lisbonense está assim condenada a dar à luz um destes ratinhos: António Costa, Manuel Monteiro, Telmo Correia, Garcia Pereira, Pinto Coelho, Câmara Pereira, Fernando Negrão, Ruben de Carvalho, Sá Fernandes, Carmona Rodrigues, Helena Roseta e o último que será o primeiro. Até porque talvez todos convidem Maria José Nogueira Pinto para embaixadora da saudade capitaleira.




Mais mobilizadoras parecem ser as ilustres figuras dos mandatários e das comissões de honra e de apoio, pelo que corremos o risco de haver comícios, colóquios e almoçaradas com a presença de Afonso de Albuquerque, Febo Moniz, Rosa Araújo, Elias Garcia, Duarte Pacheco e Fernando Santos e Castro, lado a lado com Karl Popper, Karl Marx, Mao, Mussolini ou Che Guevara, todos falando através da Pomba Gira que, nos intervalos, com o apoio do firme e hirto Professor Alexandrino, fará interpretações de Amália Rodrigues, Max e Alfredo Marceneiro, depois da recente mensagem que recebeu do além da própria princesa Diana. Porque tudo isto é triste, tudo isto é fado...


Apenas me apetece furar alguns segredos e, através deste meio, anunciar que o décimo segundo candidato à autarquia lisbonense é, nada mais, nada menos, do que o senhor Pinto da Costa que, na próxima sexta-feira, anunciará a novidade, na Casa do Dragão, que tem a sua sede no restaurante da Assembleia da República. O manifesto tem sido preparado em segredo por alguns ilustres poetas da nossa praça, tendo como título: "Não queremos ver Lisboa a arder".



Aliás, entre os vereadores propostos pela lista, consta o senhor Emplastro, para o pelouro da mobilidade, sendo seguras as informações que apontam, para a comissão de honra, os nomes de Luís Filipe Vieira, Soares Franco e Alberto João Jardim e para Belmiro de Azevedo e Henrique Granadeiro, como mandatários financeiros.


Consta também que o arquitecto Siza Vieira é o autor do projecto que permite instalar o novo aeroporto na ilha do Bugio, enquanto Manoel de Oliveira se ofereceu para elaborar os tempos de antena. Pedro Santana Lopes, que terá obtido, quase em silêncio, um doutoramento em arquitectura e engenharia civil pela universidade Platoon de Bali, apresentará o projecto de novo túnel para travessia do Tejo.

Espera-se pela presença entusiástica dos senhores presidentes da câmara de Oeiras, Gondomar e Felgueiras, enquanto um ilustre eclesiástico abençoará o lançamento do primeiro carril do novo metro de superfície entre a Estação do Rossio e o novo santuário da Cova de Iria. Dizem também as más línguas que António Costa, num derradeiro esforço, teve um encontro discreto com Fernando Seara e Dias Ferreira, num bar da Segunda Circular, ameaçando com um grande buzinão, contra esta finta de génio, que baralhará todas as contas das próximas eleições.

23.5.07

A sociedade aberta e o absolutismo inquisitorial das mentalidades fechadas




Confesso nunca ter sido um dilecto admirador de Diogo Freitas do Amaral. Mas, no
day after à respectiva saída de funções docentes no ensino público, dado que vai continuar a dar aulas no sistema concordatário, não posso deixar de o saudar e de louvar a respectiva luta pela regionalização. Registo também as ilustres presenças no auditório, para telejornal filmar.

Emocionou-me particularmente a presença do seu antecessor na presidência de um certo partido, que, sem contar as peripécias relacionais com o dito e as respectivas
viúvas, declarou, de forma eloquente: não dou notas, mas saliento a última mensagem importante que deixou e que completa o seu legado de professor. Já José Sócrates lembrou após a última aula de Freitas que criou com ele uma cumplicidade especial com o livro ‘Sociedade Aberta’, do filósofo Karl Popper.

Por isso, prefiro salientar as declarações do constitucionalista Jorge Miranda ao DN, sobre as consequências pouco popperianas registadas no universo kafkiano de importantes segmentos do actual aparelho subestatal: "houve um delator, o que é uma coisa profundamente triste", "o princípio constitucional da liberdade de expressão não pode ser posto em causa dentro da administração pública". E, acrescenta, "se houve injúria ou difamação, a questão tem de ser resolvida em tribunal e nunca por via administrativa". Chega ao ponto de dizer que "quem deveria ser demitido era a directora a regional".


Por cá, com mais um fadista a candidatar-se a Lisboa e com fundamentais reportagens televisivas dos almoços de Costa e Negrão, com ilustres comensais e notáveis, neste regime, onde os mandatários servem para disfarçar a pobreza dos que se candidatam ao formal mando, eu tivesse ido peregrinar um texto que emiti em 8 de Novembro de 1989, titulado
A Sociedade Aberta numa Estante Fechada:

Karl Raimund Popper, hoje com cerca de noventa anos, constitui, sem dúvida, um dos principais patriarcas intelectuais deste nosso tempo ocidental pós-marxista. Contudo, a respectiva obra, desde a
Logik der Forschung, publicada em Viena, em 1935, só há poucos anos é que transbordou do universo cultural anglo-saxónico, passando também a marcar os países latinos, principalmente depois das traduções francesas da sua principal bibliografia.

Também em Portugal o popperismo chegou em força, na década de oitenta, influenciando, inevitavelmente, o nosso insípido movimento de doutrinas políticas, com destaque para a aproximação liberal de Lucas Pires, para as descobertas intelectuais do Clube da Esquerda Liberal, de João Carlos Espada, ancorado no soarismo, a Pacheco Pereira, um dos intelectuais orgânicos do cavaquismo.


Apesar de tanto atraso, Popper também tem sido um dos semeadores da nossa tímida liberalização e, embora poucos o tenham introspectivado, muitos consideram-no como um elemento da moda, uma espécie de sinal exterior de intelectualidade, que se utiliza para desgarradas citações.


Acontece que noutro dia, ao visitar a biblioteca do antigo serviço público da propaganda e da censura, deparei com a primeira edição da fundamental obra do filósofo:
The Open Society and its Ennemies, publicada em Londres no ano de viragem de 1945. Uma obra que apesar de uma razoável edição brasileira, ainda não foi, infelizmente publicada em Portugal.

O exemplar da
Sociedade Aberta, apesar de, na referida biblioteca, ficar à mão de semear, estava coberto por poeira com algumas décadas. Arrumado, catalogado e indexado, o livro em causa jaz numa estante fechada. Se furou o bloqueio do autoritarismo português naquele pós-guerra, se não foi retirado da possibilidade de consulta, ficou, assim, por inércia, incomunicável, à espera que outros ventos da história o viessem libertar da poeira do esquecimento.

Na verdade, Portugal é um pouco como este acaso. Deixamos entrar a semente da sociedade aberta, mas preferimos encaderná-la, asfixiando-a numa redoma.
Se somos lestos à adaptar epidermicamente novas ideias, sobretudo quando as mesmas assumem a agressividade da moda, depois, não as adoptamos em profundidade, como elemento fecundante das nossas circunstâncias.

Deixamos as ideias originais nas estantes da erudição e apenas as utilizamos indirectamente através de dicionários de citações. Não as deixamos crescer por dentro de nós, dialecticamente.
Que o digam os ventos da sociedade aberta que por todo o mundo circulam!

Se estivermos atentos aos discursos políticos do poder e de algumas oposições, poderemos concluir que todos estão irmanados na mesma doença maniqueísta, que continua a considerar verdade aquilo que é contrário ao erro e erro aquilo que é contrário à verdade, numa concordância tácita com o modelo do absolutismo inquisitorial.

22.5.07

Quem verbera governantes pratica actos de indisciplina, com irreverente e grave conduta, revelando impossibilidade de adaptação às funções docentes



Tenho muito orgulho em ser funcionário público, ter um "ofício", ser "vicarium", estar integrado numa instituição e servir uma ideia. Começo a ter vergonha de estar na função pública deste Estado a que chegámos. E quase todos os dias me apetece ir ao meu aforro e publicar, do meu bolso, um grande anúncio num jornal de grande circulação, pedindo que me dêem emprego para aquilo que sei fazer, longe destas castas capitaleiras e partidocráticas que assaltaram os aparelhos, onde o lastro inquisitorial e pidesco nos asfixia, especialmente com o recente regresso às denunciações de ouvida, com colegas e com chefezinhos a aceitarem as vilanias e a difundirem bufarias.


Por hoje não falo no caso do funcionário que fez comentários jocosos sobre o senhor primeiro-ministro. Nem de mais recentes actos de persiganga noutros locais. Nem sequer temo que, do Partido Socialista, tenham desaparecido os liberdadeiros. Esses que andam distraídos com tanta azáfama e nem reparam nos estalinistas não reciclados que se infiltraram nos meandros dessa velha e fundamental casa da resistência à opressão.

Apenas recordo o ano de 1962, quando 47 professores universitários de Lisboa apoiaram formalmente a posição dos estudantes, em revolta, através de uma carta enviada ao Presidente da República. Um deles, socialista e liberdadeiro de sempre, até é então demitido de professor de uma dessas unidades orgânicas pelo governo. O ministro e director da escola, que o convidara para regressar a Portugal, não subscreve formalmente tal acto de saneamento, obedecendo plenamente à hipócrita legalidade, dado que deixa a subscrição de tal violência para um dos seus ajudantes.


O corajoso professor é demitido em 16 de Agosto, porque, em 13 de Maio, pondo em prática o seu feito de homem livre, escreve uma carta ao director da escola em que verberava a maneira como o Ministério tem conduzido a questão estudantil. O alto hierarca ministerial conclui pela indisciplina, irreverente e grave conduta, que revela, de facto, impossibilidade de adaptação às exigências da função que exerce. O corajoso professor há-se voltar a demitir-se como ministro em pleno gonçalvismo, para transformar-se num dos semeadores da resistência ao novo totalitarismo. Não consta que tenha praticado vindictas, mesmo contra o ministro salazarista que o demitira, tão vermicamente.

Apesar de defendido, entre outros, por um futuro ministro do mesmo Salazar, acaba formalmente demitido da função pública e o Supremo Tribunal Administrativo, entre cujos juízes se inclui um futuro provedor de justiça da democracia, dá servil razão ao governo. O supremo responsável ministerial pelo processo, menos de meio século volvido, há-de vir a ser elevado a paradigma de professor e de pensador político, graças aos modelos de revisionismo histórico em que costuma ser hábil.

O processo em causa está integralmente reproduzido em José Magalhães Godinho, Causas que Foram Casos. Eu pensava que tais peças faziam parte do pretérito imperfeito e não do presente incerto que nos asfixia e nos começa a proibir as necessárias saudades de futuro. Os vermes regressaram em força, carimbados com a categoria de especialistas em contra-subversão e análise de informação, reclamando até o legado do tal ministro salazarento e saneador, por interposto ajudante. A democracia dos homens livres vai apodrecendo e não convém que o PS se deixe cabralizar pelos novos zés dos cónegos que nele pedem tachos. Pela Santa Liberdade, pelejar até morrer!


20.5.07

Destas boas intenções e colectivismos morais ficaram os gulagues totalitários cheios...


Quem é catador dos almanaques da história, pesquisador de alfarrábios e coleccionador de papéis esquecidos, registando factos e analisando comportamentos, pode, sem qualquer arrogância de ciência certa, concluir que os tempos que, por agora, vão passando são mero crepúsculo, plenos de "guerrazinhas de homenzinhos", onde têm direito a parangonas os mesmos pequenos literatos partidocráticos que consideraram Fernando Pessoa um poeta menor e nem lhe deram o lugar de bibliotecário em Cascais, ou os que escreveram artigos de primeira página num jornal de Lisboa contra o pretensiosismo de Alexandre Herculano. Não reparam que não passam de lixo cujos nomes nem constam da memória dos próprios investigadores desses caixotes, onde os polícias da ASAE são atacados por sopa quente na feira dos fenómenos do Entroncamento e sem recompensas de multinacionais a GNR recupera uma criança raptada, assim se demonstrando como os cidadãos da União Europeia da Roménia não são iguais aos do Reino Unido.

Julgo que as senhoras adalgundes e marianas não constarão sequer de uma simples nota de página dos memorandos que relatarão as anedotas do tempo presente. Todas fazem parte de uma categoria que se aproxima daqueles insignes ficantes que pensam que, por fazerem parte de um grupo nominalmente antifascista, não podem cometer actos antifascistas, mesmo que os qualifiquem como o partir dos dentes à reacção.
Da mesma maneira, actuam, aliás, os integrantes da procissão dos filhos dilectos de outra seita de sinal contrário. Destas boas intenções e colectivismos morais ficaram os gulagues totalitários cheios... Os pilatos de sacristia sempre lavaram as mãos face aos barcos que partiam para os desterros de Angra, de Timor e do Tarrafal...

É por isso que assisti ontem em directo às cenas do chamado congressinho do CDS, onde o palanque apenas serviu para telejornais, dado que a esmagadora maioria dos mil e quatrocentos congressistas preferiu ir para os corredores e para a rua, brincar aos jogos de tendências. Nesse mesmo dia, publicou o Público breves comentários meus sobre a matéria porteira:

"Dentro do esquema de transfiguração, tudo se pode esperar dele, desde montar um esquema para fazer uma coligação com o futuro líder do PSD, como para ser um partido de charneira, muleta do PS em 2009", considera o politólogo José Adelino Maltês, antevendo que "o pós-ideológico Paulo Portas vai colher à rede quem vier com ele". Para garantir o seu espaço, o líder do CDS não hesitará em assumir-se num dia como um líder populista e, no outro, como antipopulista, num jogo com o eleitorado que lhe permita alcançar a fasquia dos 10 por cento de votos em 2009.

Por outras palavras, o partido que Portas monopoliza não passa de uma das peças da engrenagem situacionista, isto é, sendo tão catch all como o PS e o PSD, apenas deles difere por ter bem menos votos e militantes. Pode encenar frémitos ingentes da montanha prestes a dar à luz, mas apenas procria a candidatura de Telmo Correia, quase a nível da de Manuel Monteiro...

Por isso, como especialista de agenda setting, gerou este artificialismo de pôr os heterónimos a encabeçar tendências, mantendo o lastro da falta de autenticidade dos endireitas do Caldas, onde cabem tanto os beatérios do Padre Cruz como as fingidas heranças jacobinas, com reencarnações de Amaro da Costa, Freitas do Amaral e Adriano Moreira. Por isso, até nem faltou um alto hierarca porteiríssimo a invocar, ontem, o saudoso grupo de Ofir, talvez para fazer esquecer que Portas, depois de ter sido nomeado para um alto cargo de Estado por Francisco Lucas Pires, acabou por tentar assassiná-lo em directo na televisão, acusando-o de um pretenso desleixo físico, sem qualquer espécie de pudor. Consta também que o secretário-geral vai ser aquele senhor que foi à televisão insultar os óculos e o aparelho auricular de Sousa Franco.

Como membro do dito grupo de Ofir, julgo que noventa por cento dos participantes dessa aventura tem a mesma opinião que este resistente que subscreve o presente postal. O actual CDS/PP presta mau serviço às ideias liberais, quando propaga a imagem do partido dos ricos e do negocismo. As ideias liberais, plurais e complexas, porque rimam com as aristotélicas e tomistas justiça comutativa, justiça distributiva e justiça social, não podem cair na betesga de um qualquer porta-voz bem falante ao serviço de grupos de interesse que precisam de pontas de lança para a manutenção da presente injustiça sistémica. Porque justiça não passa de sinónimo de igualdade, tratando desigualmente os desiguais, mas com igualdade de oportunidades.

19.5.07

Denunciando o trabalho de sapa dos animaizinhos que vão corrompendo a liberdade

Imaginem que um funcionário público qualquer, neste tempo de directores regionais que não gostam de anedotas sobre o nosso primeiro, escrevia coisas como estas: quem está nas cumiadas é que sabe de que lado sopra o vento, e que precisa de imitar a canna, que verga e se dobra para não ser arrancada ou quebrada. Se o furacão atirasse das alturas para as varzeas da vulgaridade os homens eminentes que por lá andam, quem perdia não eram elles, era a patria.

Estávamos em plena monarquia liberal, com gentalha e quadros mentais de absolutismo e de reacção, mesmo quando invocavam inscrição em partidos de muito progresso e modernidade. Mas poderia dizer-se como hoje: a republica litteraria, como a civil, tem a sua aristocracia, a sua classe média e o seu vulgacho, e, como na republica civil, ha aqui sympathias entre os membros da mesma categoria, e ha malevolencias da plebe contra as superioridades...

O homem liberdadeiro que assim escrevia dizia estar alheio da política militante, por não crer na redempção do país e dizia-se afastado das cousas publicas com indifferença, essa indifferença filha das serveras licções da experiencia. E dizia da Sancta Madre Igreja, quando esta foi desafiada por alguém que teimava na defesa das suas ideias, o seguinte: ela agacha-se quando lhe viram o dente. Pensam alguns que é medo. Enganam-se. É para começar o trabalho de sapa.

Observava a seguir que a dita
tem uma jerarchia interna que nem sempre corresponde à jerarchia official. No fim da escala estão os que possuem olhos no corpo, sem que por isso os tenham na alma. Serve esta espécie de animaesinhos ... para aquelles trabalhos subterraneos que se vão abrindo debaixo dos pés dos maldictos...

As antimaquiavélicas palavras são de Herculano e bem podem ser aplicadas a este ambiente de decadência que marca os actuais meandros das novas leis da rolha, este garrote sorridente que vai semeando um totalitarismo doce, sob a capa da partidarite, da compra do poder, do clientelismo e da personalização do poder. Espero que muitos continuem em resistência, na defesa da liberdade.


O bailinho da Madeira começa a propagar-se como mancha por todos os segmentos do aparelho público de poder

A decisão do Tribunal Constitucional relativamente às eleições lisboetas revela como os partidos dominantes do Bloco Central tratam a política, isto é, como uma coutada de caça, com reservado direito de admissão. A política são eles, os partidos-sol, com as respectivas sociedades de corte, de acordo com o desespero típico da hierarquia das potências e todo o universo dependente de satélites, pretensamente independentes, para que possam baralhar e dar de novo.

Neste sentido, mantém-se a principal herança de um absolutismo onde o príncipe não está sujeito à própria lei que edita e onde tudo o que ele diz é lei, para que continuemos submetidos à voz do dono, do supremo dono e dos pequenos donos do poder que eles vão propagando pela teia dos muitos micro-autoritarismos subestatais onde se reproduzem. Todos esses mandadores dizem que não estão agarrados ao poder e que têm a consciência tranquila, assumindo uma descarada partidocracia, onde dizem que tem razão quem vence.

Se não estamos à beira de uma ditadura das finanças, donde possa emergir um velho Estado Novo, já temos amplas coincidências com esse regime da usurpação que, entre nós, teve exemplo em António Bernardo da Costa Cabral. E não é por acaso que, mais uma vez, entram em cena as figuras do governador civil e de sucedâneos como o director regional. O que hoje se lê no jornal sobre um processo disciplinar a um professor e ex-deputado que contou uma anedota sobre Sócrates em privado, talvez aconselhe a que os agentes do poder montem uma rede de detecção de anedotas contrapoder contadas nos corredores dos serviços públicos. Aliás, até poderíamos utilizar os recursos do salto tecnológico para inventariarmos os blogues críticos do poder, ou um serviço de espionagem de "mails" emitidos por funcionários públicos, quando estão no exercício de funções.

Por outras palavras, o bailinho da Madeira começa a propagar-se como mancha por todos os segmentos do aparelho público de poder. Os meandros eleitorais da autarquia lisboeta já se aproximam do mesmo asco que quase todos podem observar noutros segmentos de assalto ao poder. É por isso que não vou hoje revelar pormenores de outros micro-autoritarismos de que todos somos vítimas, nomeadamente em segmentos universitários que consigo observar de mais de perto. Não os denunciarei, aqui, porque eles se aproximam cada vez mais da zona noticiosa dos casos de polícia e merecem a intervenção de outras instâncias. Os supremos mandadores não estão isentos das normas constitucionais e penais em vigor.

Os sinais da doença autoritária e os reflexos condicionados da persiganga estão a contaminar o edifício democrático e a confiança pública. O chamado défice democrático começa a penetrar nos fundamentos de um aparelho de poder que diz estar ao serviço do Estado de Direito, onde revigora o regime do enquanto o pau vai e vem folgam as costas.

Os manhosos que queriam impedir coligações já o conseguiram em Lisboa e a figura do antigo ministro da administração interna, superior hierárquico da senhora governadora civil, sai chamuscada por um eventual excesso de zelo de uma sua servidora. Outros pormenores mais deliciosos emitirei, dentro de dias, noutros segmentos do mesmo cabralismo. Apenas espero que as manobras de espionagem montadas por agentes formados pela mentalidade das escolas técnicas da PIDE atinjam os seus alvos, isto é, os avençados a que dão o nome de jornalistas e, pior do que isso, de professores.

18.5.07

Alfacinhados, lá vamos, cantando e rindo...

O Carmona desistiu. O Seara não veio. O Portas tirou da cartola o coelho do Guedes. O Monteiro vai à guerra. O Negrão prefere não voltar a ser polícia. Roseta insiste. Lisboa exulta. Eu votaria na candidatura do Professor Manuel Sérgio. Sempre poderíamos ir fazer ginástica pós-moderna no Terreiro do Paço.

Entretanto, o meu telemóvel não deixa de tocar com chamadas de um número anónimo. Se for de quem penso, isto é, do candidato que da última vez apoiei, direi não. Gosto mais do meu amigo José Miguel Júdice, mas não sei se votarei no colega de liceu do Manuel Monteiro, quando ambos militavam na JS. Tenho medo que ele convide, para director do gabinete de modernização administrativa da autarquia, a mesma personalidade que ele colocou como lançador do PRACE.

Como regionalista e velho liberal anti-absolutista, apenas concluo que o alvará de um partido confirma que vivemos em regime de igualdade de oportunidades para as candidaturas independentes, nesta bela animal farm, onde o Estado de Direito e a democracia mantêm os mecanismos criados pelo direito administrativo de Marcello Caetano e Diogo Freitas do Amaral. Por mim, gostaria mais de votar para um parlamento
regional de Lisboa, numa espécie de regresso ao velho senado, com pequenas autarquias, com a que elevou Alexandre Herculano a presidente da câmara de Belém, quando ainda se escreviam cartas aos eleitores de Sintra e não havia parques de estacionamento à moda do Minho, apesar de já não se andar de burro, para gáudio dos condutores de Ferrari.


Onde fica o exílio adequado para um português que quer continuar à solta, contra os fantasmas do absolutismo?

Hoje, por volta do meio dia, termino uma dessas habituais semanas universitárias de Maio, plenas de colaboração com as actividades de extensão universitária, principalmente em colóquios promovidos pelos senhores estudantes. No dia um, foi uma palestra onde, em coligação com os estudantes, convidámos Manuela Ferreira Leite, com anfiteatro a transbordar. No dia dois, um balanço sobre dez anos de uma licenciatura. No dia três, conferência sobre a teoria política do humanismo renascentista português. No dia quatro, uma aula de antigos alunos para os novos alunos, sobre a questão europeia. No dia cinco, a presidência de um colóquio sobre globalização e inteligência económica. No dia seis, a tertúlia de filosofia política que há seis anos se leva a cabo na Universidade Lusíada, com o Duarte Nogueira, o Barbas Homem, o Guilherme d'Oliveira Martins, o Vera Cruz, a que este ano faltaram o Paulo Teixeira Pinto e o Ricardo Leite Pinto. No dia sete, que é hoje, uma discussão sobre o Brasil com colegas da UNB. Sempre com prévio trabalho de casa, para a elaboração de "papers".

Os sete dias, que foram suficientes para a criação de outro mundo, acabaram por ser intensos para a reforma universitária, segundo me diz a inside information. O senhor ministro entrou em negociação, com sucessivas novas versões do grande diploma pombalino que nos vai pôr na linha fundacional. Já o meu conselho científico, cientificamente convocado pelos directivos vigentes, escolheu reunir-se precisamente nos dias em que sabia que eu não podia estar presente, para um dos grandes chefes dizer que eu não quis estar presente, mesmo quando presidi a sessões em que ele subscreveu formalmente o convite e também devia estar presente, por razões institucionais. Apenas fiquei esclarecido e responderei, com a necessária greve de zelo e a utilização dos meios contenciosos disponíveis, mas sem me preocupar com o de minimis da alta qualidade humanista dos que nunca foram treinados para a cultura da institucionalização dos conflitos, preferindo os silogismos sebenteiros do cardeal Ratzinger, e mistura com as vulgatas de José Estaline.

Por outras palavras, enquanto o senhor ministro da ciência, e muito bem, parece querer estabelecer um número mínimo de trinta alunos por doutor ,como critério de excelência, os meus grandes chefes da pequena chafarica caminham para estabelecer, para cada um dos doutores que integram as respectivas listas de conquista dos restos do poder, trinta cadeiras por doutor. Por enquanto já vão em vinte e tal para cada um, sem contar com as que têm em acumulação noutras universidades públicas, privadas e concordatárias. E fazem bem, porque assim, com tantos assistentes dependentes, conseguirão maiorias de votos para a respectiva reeleição e sempre poderão continuar a elaborar planos científicos em reuniões onde simples monitores têm tanta qualidade opinativa como doutores, agregados e catedráticos, só porque invocam a chouriçada da bolonhesa, mesmo quando desprezam gritos de revolta institucionais subscritos pelos mesmos estudantes. No intervalo, podem pagar anúncios num semanário de grande circulação, onde põem professores auxiliares, que utilizam como agentes eleitorais, como coordenadores de mestrados, ao mesmo tempo que, em cartazes internos, elevam os ditos, também por lapso, a professores catedráticos, porque a lei para os amigos tem outro sabor.

O poder nu é assim, em qualquer regime marcado pelo arendtiano modelo de governo dos espertos. E quando alguém faz um discurso, em público, olhos nos olhos, criticando o poder, o melhor é sair da sala, para, depois, quando o visado não está presente, no silêncio da alcatifa, se dizer que ele o achincalhou e até insinuar que uma das respostas deveria ser a da pancadaria, ao mesmo tempo que também se insinua que ele é o autor de todos os blogues do mundo, de todos os mails anónimos do mundo, de todo os incómodos do mundo, porque ele, um dia, é do Opus e, no outro, da maçonaria. Não sei mesmo se não será realizador de um video que ainda não vi e que é objecto de trágica risada em toda a escola. No entretanto, sempre se pode sanear efectivamente, nessa ilusória distribuição de serviço com que os que compareceram à reunião dos homens sem sono se banquetearam até à consumação dos séculos. Amen.

Agora, os catadores inquisitoriais descobriram que o subscritor deste blogue acabou de cometer um crime: anda para aí a promover uma associação privada de doutores, agregados e catedráticos de várias escolas, para nela fazer investigação científica interdisciplinar, federando homens livres do subsídio do senhor director, das viagens de turismo científico pagas pelo senhor director, das fotocópias que ele manda afixar em todo o edifício com as entrevistas que dá a jornais da respectiva região sobre as respectivas opções políticas, ou do prévio ofício autorizador do mesmo senhor director, que pretende monopolizar toda a investigação institucional, acumular duas ou três cordenações de unidades, fazer a lista que controla todos os órgãos da escola, ter, na sua directa dependência, todos os assessores técnicos e ser omnipotente na gestão dos orçamento.

Julgo que a mistura de omnisciência com omnipotência, incluindo a filiação no partido que está no poder, mas que não o elevou a secretário de estado da reforma administrativa, bem como a consultadoria da reforma da região autónoma da Madeira não são ingredientes que podem fazer a boa via. Porque não é boa via ser o dito o caminho e a verdade. E sempre deveríamo fugir do concentracionarismo, nesta encruzilhada que aconselha a unidade na diversidade e a manutenção da pluralidade de paradigmas. Continuo a não temer estar em desacordo com a maioria dos outros, para poder estar de acordo comigo mesmo e integrar aquela minoria onde não temo ser o único integrante. Quero viver como penso, sem pensar como depois irei viver. Por favor, onde fica o exílio adequado para um português que quer continuar à solta, à solta contra os fantasmas de um absolutismo, enredado nas teias da ignorância, do fanatismo e da intolerância?

17.5.07

Intervalo

Leio as magníficas novidades sobre a candidatura à autarquia lisbonense, onde destaco os apoios de Júdice e de Saldanha Sanches a Costa, os discursos de Negrão e outras tantas parangonas. Infelizmente, não tenho tempo para ir além da minha chinela, numa semana onde tem sido intensa a minha agenda participativa em eventos académicos, quase sempre promovidos por estudantes. Nem sequer ainda consegui fezer o "download" mental de muitos mais pormenores kafkianos que me comunicaram, sobre a função pública e a vida universitária.

Basta registar a maneira como a arquitecta Helena Roseta tem sido tratada pelos mangas de alpaca que transformaram a democracia nesta chatice sem memória. Por outras palavras, quem tenta escapar ao rolo unidimensional do politicamente correcto corre o risco de continuar a ser integrado naquele "index", sem direito ao "nihil obstat" e ao consequente "certificado de bom comportamento moral e cívico". Os reflexos condicionados inquisitoriais, com a consequente falta de portugueses à solta, continuam a impedir que se desencadeie a necessária revolta de escravos.




16.5.07

Antes da temida judicialização da política, vigora a politização da justiça

Enquanto Marques Mendes, em vez de repetir o gesto de Jorge Sampaio, tirou do perfil que tinha cabeça o nome do magistrado Negrão, e Sócrates lançou Costa, assistimos ao rapa, tira, deixa, põe dos armários de uma classe política cada vez mais rarificada, dado que se foi buscar um ministro ao tribunal constitucional e se pôs, como candidato autárquico, um outro juiz, em regime de comissão de serviço parlamentar, assim se demonstrando que, antes da temida judicialização da política, vigora a politização da justiça, como transparece da circunstância de entrarem no grande palco partidocrático tanto um ex-director do SIS como um ex-director da PJ.

No intervalo, a decadência continua, como o retrato que ontem aqui deixei sobre a avaliação da função pública, ou a pelingrafia que aqui poderia deixar se divulgasse um video que circula entre telemóveis de alunos de uma determinada unidade orgânica de um establecimento de ensino superior público, com cenas ebriamente chocantes de um ilustre membro do quadro docente e dirigente, assim se demonstrando como vivemos no habitual regime crepuscular daquilo a que pleonasticamente chamamos brandos costumes, que, entre nós, tendem a durar décadas e décadas de cobardia cinzentona, com magnicídios à mistura. A monarquia liberal morreu em 1890, mas durou até 1910. A República acabou logo em 1915 e o Estado Novo perdeu os mínimos de legitimidade, até ditatorial, em 1958, deixou assassinar o líder da oposição em 1965, mas só caiu em 1974, derrubado pela máquina que o tinha levado ao poder.

Não vou ter, hoje, tempo para contar pormenores. Tenho aula de teoria política daqui a um pedaço de minutos. Farei, logo a seguir, uma intervenção formal sobre a globalização económica e, ao mesmo tempo, e de propósito coincidente, promovido pelos convocantes, haverá mais um desses multitudinários conselhos ditos científicos, onde um bando de náufragos, ameaçados pelo decretino dito reformista, se entretêm a distribuir serviço para os próximos anos, com três ou quatro grandes e pequenos chefes, que acumulam cerca de um quarto da "coordenação" das cadeiras e cadeirinhas da instituição, a exibir o freudiano poder pelo poder, numa manifestação de certo saudosismo serôdio que confirma aquelas perspectivas freudianas, segundo as quais alguns professores não reparam que são sempre avôs de si mesmos.

Por mim, irei apresentar para memória futura, de futuras avaliações independentes e cientificamente fundamentadas, todo o conteúdo da preparação de uma distribuição de serviço frustrada, a fim de saudar a chouriçada reinante neste pequeno regresso aos saneamentos do miguelismo, do PREC e do salazarentismo, em nome da luta de invejas e da eterna vaidade, nesta mistura de vindicta com requintes de sadismo. Continuo a querer viver como penso, sem pensar como vivo e julgo não precisar de uma fileira de dependentes e de votantes, em regime neofeudal, para ser professor público. Sempre há anúncios de jornal, onde posso pedir emprego, e a internet pode servir para dar as minhas aulas. Não tenho medo e já não preciso de ser promovido.

15.5.07

Tudo isto é kafkiano e o País parece estar a dormir, ou pior, a encolher-se de medo...

Hoje não vou comentar as candidaturas autárquicas lisbonenses, entre António Costa e Helena Roseta, porque o meu amigo Fernando Seara desistiu, como outrora o fez relativamente à presidência do Glorioso. Espero que não tenha sido por causa dos envenenados elogios de Marcelo Rebelo de Sousa, no domingo, onde o ilustre presidente do conselho científico da FDL disse que o presidente sintrense seria apoiado pelos santanistas, a fim de fazer saltar da toca Santana, ele próprio, que, no comentário radiofónico da manhã seguinte, logo atacou veementemente a hipótese, nestes jogos de bastidores que nos vão desgastando pelo mau uso e prostituindo pelo abuso.

Prefiro viajar pelos meandros do permanecente micro-autoritarismo subestatal, citando parcelas de um "mail" que acabei de receber: este País parece ter ensandecido... fui colocado num depósito onde está uma série de pessoas absolutamente desactivadas... que esperam desactivados pela reforma. Durante um ano e meio, nunca me deram uma única tarefa. Nem uma única. Chamam-me ..., mas nunca recebi qualquer despacho, nem me foi solicitada qualquer tarefa.

Ontem recebi a minha nota de serviço referente ao ano de ... Ora tudo isto é um embuste sem limites, nunca ninguém me definiu objectivos, e nunca ninguém me mandou fazer fosse o que fosse. A minha classificação de serviço assenta em verborreia que mais não é do que um chorrilho de mentiras... Inventaram tudo. Para aplicar o sistema de avaliação chamado SIADAP (inventado pelo ...) estão a inventar. Apesar de a minha classificação ser inócua ... arrepia-me pensar que as pessoas que estão a ser dispensadas ... tem-no sido apenas com base nessa classificação. Os jornalistas que enfeitam os jornais com letras garrafais que anunciam rigor e novas regras que visam distinguir pelo mérito, estão a ser enganados. Não é nada disso. Pior do que tudo, vejo os funcionários mais amedrontados do que nunca... vou lutar contra esta absurdidade. Esta noite mal consegui dormir na ânsia de me dirigir ao meu sindicato, e admito ir para os jornais denunciar a barbaridade que se vive em certas gaiolas da função pública. Para começar vou devolver a minha classificação ao ..., e explicar-lhe que tudo o que escreveu na minha classificação é mentira. Absoluta mentira! Tudo isto é kafkiano e o País parece estar a dormir, ou pior, a encolher-se de medo.

A história que aqui transcrevo, passada num organismo da administração directa do Estado, podia ser contada, com outros recortes, mas com o mesmo decadentismo, numa qualquer entidade dependente do decretino ministerial, assim confirmando como vivemos em plena ditadura da incompetência. O ambiente de crise leva à destruição do nobre poder político, entendido, não como uma coisa que se conquista, mas antes como uma relação entre a chamada sociedade civil e o aparelho de poder.

Estamos em plena loucura típica de um tempo de entrada na simples patrimonialização do poder, onde um qualquer indivíduo, social ou economicamente enfraquecido, para sobreviver, trata de pedir protecção a um qualquer outro que julga social e economicamente mais forte na barganha negocial. Primeiro, começa com a simples cunha, a parte soft do feudalismo. Depois, vai alargando o absuso e pode atingir a corrupção, ou compra do poder, a parte mais hard do mesmo fenómeno da antipolítica. E entre a cunha e a compra do poder, vive-se neste ambiente de relações privadas que afectam o próprio financiamento partidário, onde o importante não é ser ministro, mas tê-lo sido.

Não tarda que surjam as sereias do moralismo populista, enquanto vão proliferando os episódios ditos da judicialização da política e as ameaças do Estado de Juízes, simples manobras de diversão que nos embaciam as lentes analíticas. A chegada a Lisboa de algumas vassouradas das investigações brasileiras sobre os furacões, os mensalões ou o sanguessugas, apenas revelam como estamos hipócritas demais, entalados entre Deus e o Diabo e não assumindo que, na prática a teoria é outra, dado que o homem tem os olhos nas estrelas da música celestial, mas anda com os pés no lodo daquele dia a dia onde o normal é haver anormais.

E, por hoje, mais não digo. Não vou contar as pequenas histórias da degradação universitária, neste ambiente de crepúsculo, quando as escolas são transformadas ao ritmo da partidocracia e da direcção-geral dos adidos e excedentes, perdendo a autonomia institucional a partir do momento em que começam a destruir a autonomia das pessoas que lhes davam vida.

Basta notar como já ninguém diz o que efectivamente pensa e que a palavra dada se não respeita, em proveito das orgias do poder pelo poder, onde quem parece ter razão no curto prazo, logo a perde no dia seguinte, quando ficamos todos a saber das chantagens e das próprias orgias, algumas delas registadas em video, ou tesemunhadas presencialmente por alguns intervenientes. O pior é que a longo prazo estamos todos mortos.
Tudo isto é kafkiano e o País parece estar a dormir, ou pior, a encolher-se de medo.

11.5.07

Que os repúblicos sejam homens livres, mas com âncora!

Muitas vezes se tem dito, e é uma verdade, que não há mais país livre sem instrução, nem um país pode ser bem governado, quando as ciências que mais contribuem para ilustrar os governantes se abandonam ao desamparo

JOSÉ JOAQUIM LOPES PRAÇA, 1868


Pediram-me os senhores estudantes da licenciatura em ciência política da minha escola para, logo à tarde, fazer um balanço de uma década de vida de tal opção. Depois de tentar resistir ao desafio, porque não gosto de falar em voz alta daquilo que tenho denunciado no silêncio dos claustros e dos capítulos, acabei por ceder, porque não gosto de continuar a ser confundido com uma função que não tenho. Nunca inspirei tal entidade, nunca a dirigi, a não ser quando, durante dois meses, há mais de um lustro, a tentei salvar da má ideia que a gerou e da teimosia dos que a fingiram dirigir, e não estou disponível para ser um falso D. Sebastião, tipo mestre-escola super-acumulador de disciplinas, para risada da comunidade académica, que talvez não conceba as ciências sociais como um universo sincrético, onde um professor, por ser director administrativo, pode acumular a coordenação de 26 disciplinas, de duas unidades de coordenação cientifico-pedagógica, do mega-centro de investigação da entidade, etc., etc., enquanto o seu número dois, vírgula um, e colega de lista ocupa 24 disciplinas, o seu número dois, vírgula dois, 21, o seu número dois, vírgula três, 11, mais quatro ou cinco cargos, e outros seus dilectos aliados de lista yes, minister mais umas séries de igual dimensão, enquanto jovens aliados boicotam aqueles que responsavelmente se dedicam àquilo que os professores responsáveis podem fazer como homens comuns, inspeccionáveis pela lei do bom senso e avaliáveis pela lei da república.

Mas estou disponível para, numa solução de salvação pública, assumir a racionalidade de natural coordenação de uma secção de especialistas que prepare as decisões em regime de efectiva igualdade de oportunidades, sem que, anticonstitucionalmente, haja perseguidos, por assumirem, em exercício público de cidadania, certas concepções do mundo e da vida, ou por se terem desvinculado de associações que pretendiam ser representativas de uma província do saber, e de que fomos fundadores, mas que acabaram por ser mero enfeite de uma universidade concordatária, na sua bela e conseguida operação de engenharia, para a obtenção de subsídios do Estado laico. Há pessoas que bem mereciam receber a carta que Otelo mandou a Vasco Gonçalves quando este ultrapassou o prazo de validade, até para os revolucionários de opereta.

Ainda ontem assisti ao espectáculo de um leilão de náufragos, dito conselho científico, onde se disputaram cadeirinhas e cadeirões ao bom estilo de RGA, sem prévia proposta fundamentada dos peritos publicamente concursados, onde ilustres e menos ilustres membros levavam livrinhos com que acenavam os seus altos méritos para esse movimento de massas de três dezenas de um concílio de pretensos deuses, numa degradação que atingiria o paradoxal se acontecesse numa escola com um milhar de doutores, como alguns dos nossos parceiros da UTL. Aliás, quando um ilustre jovem, especialista na geopolítica do Pacífico, se candidatou, sem prévia conversa comigo, a uma disciplina que há um ano me havia sido distribuída, e na qual investi algum saber e muito suor, decidi dignificar o cargo com a invevitável renúncia, para não confundir o meu conceito de saber com o restrito conceito de poder do spoil system.

Fica, no intervalo da desgraça, o meu contributo público e documentável aqui, com o suave protesto que insiro no portal, na linha de outra não esquecida perseguição de 1993, ainda em vigor, apesar de tal prestação de serviços à comunidade, mesmo com o portal em arquivo morto, ultrapassar um milhão de acessos e de ter que ser actualizado a expensas da minha própria bolsa, até poder voltar a ser um homem livre, em livre federação de resistentes, sem prévio nihil obstat do hierarquismo concentracionário da personalização do poder.

Prefiro repetir o que disse num texto sobre o balanço da área em Portugal, publicado, há uns anos, pela revista de uma unidade orgânica da concorrência, e recordar o que propus, há mais de uma década, no relatório de agregação sobre a matéria:

"Quando uma comunidade se desintegra culturalmente, desenraizando-se do húmus onde se aconchegam e vivificam os respectivos valores e, sobre um vazio de pertenças, apenas actuam os holismos de um Machtstaat - por exemplo, a exigência do imposto -, pode criar-se um aparelho de poder desligado da comunidade, ou um estado de violência susceptível de justificar eventuais actos de violência e, quiçá, a própria legítima defesa daquele individualismo que, perante um vazio de solidariedade, já não é capaz de invocar o aqui d’el rei.

Tal como há cem anos, a democracia portuguesa volta a enredar-se na secura processualista das chicanas sobre as regras do jogo, predominando a legitimação pelo procedimento sobre as raízes morais e o sentido cívico, ao mesmo tempo que um inevitável regime de porta aberta e de internacionalização, sem as fundações de uma assumida autonomia cultural, propicia formas miméticas de colonização cultural.

Esta continuidade psicológica de um povo e esta permanência dos processos de formação das elites, com as inevitáveis degenerescências classistas dos smart set e jet set, talvez impusesse que os amadores e profissionais da política à portuguesa fossem sujeitos à leitura obrigatória do Portugal Contemporâneo de Joaquim Pedro Oliveira Martins, do Vale de Josafat de Raul Brandão e dos vários volumes da Conta Corrente de Virgílio Ferreira. Pelo menos, poderia contribuir-se para a não repetição daquelas atitudes que conduzem ao ridículo ..

Neste dobrar do milénio, nós, os ocidentais, que fomos capazes de, em nome da ciência, construir uma civilização, até nem podemos ter a pretensão de a ordenar. Num tempo de velocidade, vertigem e impaciência, neste império do vazio e do efémero, continua a faltar-nos uma concepção do mundo e do homem, uma concepção da vida, que entenda o homem e o mundo como um cosmos, dotado de uma ordem que nos faça olhar para cima e para dentro. Continuam a dominar concepções do homem e imaginários típicos do iluminismo e do romantismo, bem como ideologias e ideias-feitas para séculos pretéritos, e não temos a alternativa de uma nova fundamentação para os presentes sinais dos tempos, dado que continuamos a não querer misturar o lume da profecia com a serenidade da razão.

Ao longo destes anos em que nos temos preocupado quase exclusivamente com a politologia, sempre procurámos aceder a tal província do saber de forma comparativista. Com efeito, seguindo o conselho de Almerindo Lessa, não vale a pena descobrir o que já está descoberto, nem inventar o que já está inventado. Neste sentido, não há que temer ser estrangeirado, desde que sejamos capazes de seguir o conselho de Fernando Pessoa no sentido de nacionalizarmos importadas tendências , até porque não nos parece poder haver pensamento sem pátria, porque só é possível atingir o universal, partindo do local e peregrinando pelo supra-paroquial. Aliás, como proclamava o nosso Miguel Torga, talvez o universal não passe do local sem muros, do aqui e agora das nossas circunstâncias desafiado pelas exigências da cidadania do género humano.

O caso-limite a rejeitar talvez esteja naquela forma do professor português de filosofias estrangeiras que realiza um ensino de tradução e nem sequer cuida de fazer corresponder os conceitos importados às nossas próprias palavras. Insistir nesta via é aceitarmos ser colonizados, mesmo que disfarcemos a cedência com as bonitas palavras do progresso, da modernização ou da europeização.

Da mesma maneira, seria suicida assumirmo-nos como laboratório para experiências sociológico-políticas, visando a confirmação de teorias que outros elaboraram sem nos terem em conta. Se foram tristes algumas cenas do PREC, quando nos tornámos numa espécie de potencial reserva das ideologias e das utopias de certos marginais do Ocidente, continua a ser doloroso prestarmos menagem e citação a alguns politólogos do desenvolvimentismo e da mudança política que nos continuam a comparar a um república de bananas, embora temperada por uns pretensos brandos costumes, onde até poderiam instituir-se estufas de democracia exportável para o Terceiro Mundo ou a Europa do Leste. Soa a ridículo sermos transformados em simples palco para filmes sobre golpes de Estado na América Latina ou para mimetismos sobre o fascismo italiano, nessa permanecente leyenda negra que, à maneira de certas páginas de Byron, nos imagina como um país de bárbaros latinos com dois ou três ministros e um chefe de protocolo, civilizados e polidos.

Mas, se não devemos ser província, isto é, terra vencida por um qualquer centro de saber estranho à nossa índole, seria tolo não acompanharmos o movimento geral das correntes de ideias do nosso tempo, abrindo as janelas de par em par e tirando trancas da porta, mesmo que surjam resfriados ou que fiquemos mais susceptíveis aos assaltos. Infelizmente, a ciência política em Portugal continua a padecer da nossa pequena dimensão universitária, onde, em vez de um harmónico small is beautiful, se acentuam os ancestrais vícios de uma certa guerra civil ideológica típica do Portugal Contemporâneo, do qual ainda não foi possível eliminar algumas heranças inquisitoriais, bem como os subsequentes traumatismos resultantes das rupturas revolucionárias e das ilusões construtivistas, com as suas procuras de um homem novo feitas a golpes de cacete ou de decreto, as inevitáveis doutrinas oficiais e o eventual saneamento dos que não se integram na nova ordem.

Toda essa herança do burguesismo iluminista que supôs poder o homem ser dono e senhor da natureza, dono e senhor da sociedade e dono e senhor da história, essa ilusão de revolução, de homem novo, tão negativa como o seu irmão-inimigo contra-revolucionário, adepto de uma revolução ao contrário ou de um andar para trás reaccionário.

Ora, uma das consequências habituais do estabelecimento de novas intelligentzias oficiais consiste na expulsão dos universitários que não jurem fidelidade ao novo estado de coisas e no estabelecimento, directo ou indirecto de livros únicos, conforme o modelo da reforma pombalina da universidade e dos subsequentes saneamentos de lentes liberais pelos miguelistas ou de lentes miguelistas pelos liberais, num semear de intolerância que continuou por ocasião da instauração da República, da institucionalização do Estado Novo ou do lançamento do processo revolucionário em curso dos anos de 1974-1975.

Todos estes traumatismos provocaram a falta de serena continuidade reflexiva e, consequentemente, a impossibilidade de evolução espontânea, gerando medo onde deveria estar sentido de escola e subserviência onde deveria frutificar a lealdade, ao mesmo tempo que se desenvolvia uma acrítica aceitação de construtivismos que cheirassem a moda ou revelassem sinais de força.

Mesmo na actividade intelectual, dos que formalmente deveriam praticar a necessária liberdade de cátedra, eis que, muitas vezes, surgem recônditos medos ou incompreensíveis cedências à ilusão do mediático.

Muitas vezes, fomos um país que, desprezando a continuidade das instituições históricas e o evolucionismo reformista, foi sendo sucessivamente decepado, tanto das suas raízes como dos posteriores enxertos que voltavam a radicar-se no húmus dos valores permanecentes. A atracção pelo Estado-exíguo tornou-nos numa quase res nullius susceptível de ocupação por uma qualquer minoria militante capaz de controlar a intelligentzia dependente do subsídio estadual, onde os próprios opinion makers se desligaram dos últimos redutos académicos e universitários onde se ousava pensar português. A inevitável colonização cultural e o consequente niilismo não tardaram a chegar, matando a esperança, a vontade de manutenção de uma autonomia cultural e a necessidade de um sustentado programa de formação de elites políticas, culturais e administrativas. Portugal, depois dos exageros de um pretenso Estado Ético e de uma política de espírito ficava bem mais acanhado na sua dimensão intelectual do que no tocante as respectivas dimensões territoriais, populacionais e económicas. O vazio de política levava às tentativas concretizadas de ocupação desse espaço por jornalistas e por pequenos lobbies de pequenos patrões, pequenos sindicatos e muitos outros exíguos corporativismos de grupos de amigos e de grupos de interesses.

Ainda hoje podemos dizer, como Álvaro Ribeiro, que quem não escreve em papel pautado por qualquer ortodoxia, quem não está inscrito numa congregação de elogio-mútuo, quem está disposto a lutar contra a pela sindicalização do trabalho intelectual que ameaça o pensamento livre, pela recíproca defesa das mediocridades e pela agressividade da inveja que se manifesta pela humilhação, corre o risco de nem sequer poder comunicar com outros que gostariam de fugir dos pretensos canalizadores da opinião crítica e da opinião pública.

Quando a opinião crítica quase se reduz às páginas culturais das revistas e semanários de fim de semana que vão traduzindo as últimas novidades do vanguardismo e quando a própria universidade se vai eriçando na sua concha sebenteira ou monografista, corremos o risco de mantermos um arquipélago de inúmeras torres de marfim, insusceptíveis de fecundarem a realidade e de influenciarem os movimentos sociais com um pouco de pensamento. Daí continuarmos refugiados no Vale de Lobos da ficção romanesca e no exercício lírico da poesia, da dramaturgia ou do ensaísmo, onde muitos literatos maiores e menores, apesar de tudo, conseguem transmitir uma corrente que se aproxima do sentimento geral da comunidade.

Alguns brilhantes teorizadores portugueses continuam a dividir o mundo segundo as dimensões da direita e da esquerda, mas padecendo daquela visão paroquial e demonizante de certos fantasmas da década de sessenta do século XX, segundo a qual até personalidades que se autoqualificam como da esquerda liberal passam a ser determinados como da direita democrática, para que, a partir de tal posição, não exista mais mundo polido e civilizado, mas tão-só as trevas da reacção.

Continuamos a sofrer os efeitos daquele gnosticismo típico do século XIX que irmanou cientismo, materialismo e positivismo, de tal maneira que qualquer governante dos dias que passam, ou dos imediatamente antecedentes, não deixa de invocar a Luz contra as Trevas, o Progresso contra o Atraso e a Modernização contra o Bloqueio.

Pode ter razão Gabriel Almond quando fala nas chamadas seitas existentes entre os que estudam a política, mas a respectiva qualificação de direita e esquerda, vive no mundo onde a esquerda tem a humildade de conhecer a direita e não reduz a esquerda àquele conjunto dos que nem sequer tratam de ler o que a chamada direita escreve. Assim, refere uma hard right que, no plano metodológico, é essencialmente descritiva, estatística e experimentalista, apontando os exemplos de V. O. Key, James Buchanan, Gordon Tullock e William Riker, contrapondo-a a uma soft right, marcada por uma miscelânea conservadorista que ataca o iluminismo e o cientismo e colocando Leo Strauss como chefe de fila. Na banda contrária, enumera uma hard left, onde destaca a escola dependencista representada pelo ex-Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso (sic), e uma soft left, herdeira da Escola Crítica de Frankfurt.

Contudo, se tentássemos utilizar os critérios de Almond, onde a esquerda e a direita tanto se medem pela dimensão ideológica como pela dimensão metodológica, verificaríamos que, em Portugal, não há campo possível para tal análise. Se achamos salutar que a própria dialéctica empobrecedora de um confronto entre a direita e a esquerda seja superado, sempre preferiríamos que o mesmo se mantivesse, porque o que lhe sucedeu, ou foi o domínio de um dos hemisférios, pelos esmagamento do outro, ou, pior ainda, um vazio niilista.

Diremos até que podemos perspectivar a direita e a esquerda em sentido psicológico, como disposições de temperamento. Se há quem considere que a direita prefere a injustiça à desordem, optando pelo primado da moral de responsabilidade, enquanto a esquerda tende a ser marcada pela moral de convicção, acontece que, na prática, os planos podem confundir-se, governos de direita conduzidos por temperamentos de esquerda e revoluções de esquerda feitas por temperamento de direita, para utilizarmos palavras de Jacques Maritain.

Acaba por ser mais importante o modelo dos conformismos estruturais, onde os situacionismos, sejam de esquerda ou de direita, acabam por irmanar-se, enfrentando aqueles que apelam para os valores, sejam de esquerda contra um situacionismo de direita, sejam de direita contra um situacionismo de esquerda. Acresce que a internacionalização das sociedades civis, das relações intergovernamentais e dos próprios modelos económicos, principalmente os resultantes da unificação europeia, podem levar a que governos de contraditórios sinais ideológicos acabem por confundir-se em idênticas misérias e grandezas, pelo que invocações de tribalismos internos podem assumir a dimensão do paradoxo.

As relações dos intelectuais com a reflexão política em Portugal vivem entre o reviralhismo e o modismo, categorias com que procuramos aportuguesar o againstism e o movimentism de Giovanni Sartori. Com efeito, em Portugal, mesmo as minorias intelectuais com intervenção na política não cessam de viver em rebanho, para, numa curva da estrada, caírem na tentação de serem conselheiras de um qualquer césar de multidões, como ameaçam os neopopulismos de esquerda e de direita.

A power elite à portuguesa já não circula apenas nos passos perdidos, dado que os principais factores de poder deixaram de ser manifestação interna da soberania e mesmo os que dela estão dependentes foram readquiridos por uma nova actualização da classe bancoburocrática que não se reduz apenas ao comunismo burocrático dos funcionários, gestores públicos e dirigentes partidários, entre a Linha de Cascais, a Foz do Douro e os banhos nas praias algarvias, com bisbilhotices nos semanários políticos, lidos pela snobbery dos radical chic e dos young urban profissionals.

Os antigos analistas e comentadores políticos foram substituídos pelos fazedores de uma opinião attrape tout, os quais, mesmo quando têm responsabilidades universitárias, deixam transformar-se em canalizadores da opinião política ou em simples fabricantes de má língua, uns tentando vender a democracia segundo métodos herdados da agit prop social-fascista ou anti-social-fascista, outros levando ao rubro o decadentismo de alguns salões de certa burguesia queirosiana.

O divórcio entre a razão e a emoção, ou, dito por outras palavras, entre o exagero de uma racionalidade racionalista e um global entendimento do simbólico, aberto à racionalidade axiológica, tem levado os cultores da frieza analítica à demagogia e à cedência face às legitimidades carismática e tradicional.

Por tudo isto, importa ganharmos consciência da nossa dimensão, percebermos que, mesmo integrados na União Europeia, temos de viver com aquilo que cientificamente temos e que não deveríamos viver acima daquilo que produzimos, dado que esse excedente de sociedade de abundância que por aí pulula é artificial, resultando de subsídios dos outros que, longe de significarem solidariedade, apenas constituem contrapartida indemnizatória face aos factores internos de poder que cedemos ao conjunto.

Quem não tiver consciência desta realidade, está a perder aquela fibra multissecular que nos deu o essencial do que somos. Aquilo que Herculano, muito simplesmente qualificava como a vontade de sermos independentes. Esse qualquer coisa que nos levou a ser Portugal livre, quatro séculos antes de Maquiavel ter inventado o Estado. Quatro séculos e meio antes de Bodin ter inventado a soberania. Seis séculos antes de começar a balbuciar-se a teoria do princípio das nacionalidades. Essa fibra portuguesa que suscitou 1640, 1820 ou aquela geração que tratou de cantar os heróis do mar por ocasião do Ultimatum.

Tal como sempre, o nosso actual demoliberalismo padece dos males da falta de influência dos intelectuais sobre a actividade política; das manias das falsas elites em confronto com a tentação populista e vanguardista; da falta de tradição partidária em comparação com a enraizada democracia da sociedade civil; da permanente tentação do confronto entre um pretenso Portugal Novo e um real Portugal Velho.

Por tudo isto, a ciência política tem também direito ao desencanto (à Entzaubrung de Weber), a consequência inevitável do desenvolvimento de uma perspectiva racional-normativa, marcada por uma exagerada moral de responsabilidade, num universo ainda carregado de legitimidades tradicionais e carismáticas e que só pode racionalizar-se pelo recurso ao esforço de uma moral de convicção, geradora de uma perspectiva racional-axiológica.

E aqui estamos nesta viragem do milénio, já com espaço existencialmente vivido para dizermos que todas as revoluções que aspiram à instauração de um homem novo, acabam por adiar as necessárias reformas do homem de sempre.

Assim tem acontecido em Portugal com todas as manias de um Estado Novo que, apenas fazem uma operação plástica à parte visível do inamovível iceberg do Portugal Velho. Porque, não sendo possível a criação do homem novo, a forma do político apenas se assume como o novo continente onde se derrama o conteúdo vital do português de sempre.

A fuga ao modelo do bom senso por parte dos opinion makers da actualidade tem impedido uma reflexão capaz de aprofundar as raízes da nossa democracia, onde há uma história plurissecular e a consequente democracia da sociedade civil.

Além disso, com a não ligação do mundo académico à reflexão sobre a questão política e com a liquidação dos grandes gabinetes de estudos dos partidos políticos, não foi favorecida a necessária passagem do regime da opinião ao regime do conhecimento. Curiosamente, desde que as fundações alemãs deixaram de operar em Portugal, os três grandes partidos defensores da democracia pluralista, deixaram de investir nas respectivas escolas de quadros e nem sequer têm estabelecido relações não interesseiras com os núcleos de estudos politológicos das instituições universitárias existentes. Isto é, sem termos opinião crítica, a opinião pública passou a ser usurpada pela opinião publicada, onde o poder instalado, nomeadamente nas televisões, continua a ter a ilusão demiúrgica de canalizar a liberdade de expressão do pensamento, promovendo, a partir do situacionismo, uma oposição conveniente, mas silenciando aquelas oposições que seriam incómodas, porque potenciais mobilizadoras de uma maioria moral e de uma maioria sociológica. Daí que as direitas e as esquerdas instaladas, depois de favorecerem a visibilidade de opinion makers oriundos da extrema-esquerda e da extrema-direita, aparentando pluralidade, apenas contribuíram para a ditadura do estado a que chegámos, recentemente reforçada pelo quase monopólio da reflexão tele-política por comentadores oficiosos do situacionismo.


A universidade só pode ter razão a médio e a longo prazos. Se trabalha nas coisas perenes, tem, contudo, que reflectir a partir das circunstâncias do tempo e do espaço onde se movimenta, porque as essências apenas se realizam através da existência.

Aliás, os mesquinhos detractores dos professores universitários esquecem, quase sempre, este investimento no saber pelo saber, esta consultadoria pública que não cobra honorários nem se integra em gabinetes de projectos subsidiados por fundos públicos, nacionais ou comunitários, onde muitos mercenários se escondem.

Mas quem tem como profissão, e vocação, o pensar a política, só pode procurar aproximar-se de uma qualquer dimensão científica se tentar viver a verdade, dizendo o que, na verdade, pensa. Porque a ciência, enquanto esforço racional que visa fazer ascender a opinião ao conhecimento, não tem que excluir necessariamente o compromisso da opinião, essa força vital nascida de uma concepção do mundo e da vida. Antes pelo contrário!

A autêntica ciência política, enquanto real ciência da política, pode e deve permitir que pessoas livres, com diversas e contraditórias opiniões, assentes nos mais variados subsolos filosóficos, comuniquem entre si, através dos lugares comuns do conhecimento. Mas só há diálogo quando se procuram tais placas giratórias da dialéctica que, tendo como fundações os princípios gerais do pensamento, permitem que as ideias e os valores fecundem criativamente as várias perspectivas das inevitáveis posições parcelares que cada um possui.

A principal objectividade a que podemos aceder, quando tratamos de coisas políticas, é, pois, a de assumirmos, sem disfarce, as limitações de perspectiva das concepções do mundo e da vida dos nossos tribalismos político-culturais que, quando são enraizados numa história pessoal de convicções, geram sempre as limitadoras algemas de uma certa genealogia de subsolos filosóficos e os inevitáveis compromissos das velhas lutas e dos profundos companheirismos que lhes dão identidade.

Logo, os professores que querem ser mesmo professores e não assessores do poder, em nome de um pretenso governo de sábios ou de uma gerontocracia de notáveis frustrados, não podem deixar de ser modelos de contrapoder, de espírito crítico, de homens livres, livres da finança, dos esquemas institucionais de subsídios, da tentação da imagem e da própria partidocracia.

Toda a dissolução das tais coisas que, em comum, se amam, como a pátria, a liberdade e a democracia, dessas ideias pelas quais vale a pena morrer, contribui para que a coisa pública se depublicize e se corrompa. E quando falha a res publica, tanto se quebra a communio como se rompe o consensus juris. Isto é, não há democracia se não se consolidar uma comunidade que gere comunhão, e não se aparelhar um Estado de Direito norteado pelo valor da justiça, entendida como aquela dinâmica igualdade de oportunidades que promove a meritocracia de tratar desigualmente o desigual, através de uma concorrencial competição pelo mérito que não ceda aos atavismos do privilégio e da isenção.

As alturas do poder criam um jardim das delícias democráticas onde a demagogia dos discursos de quem, por dominar o poder pensa que conquistou a palavra, faz esquecer que a burocracia do aparelho de poder pode controlar disciplinadamente o poder espiritual.

Com efeito, também entre nós se gerou a intelligentzia, essa casta de intelectuels da republique des lettres, essa espécie de ordem monástica dos nouveaux clercs, desses que se transformam numa seita e procuram monopolizar a cultura, quando não lhe atribuem até um Ministério com esse nome, e que dotada do complexo de superioridade dos vanguardistas, se assume como uma colectividade de ideologia, não económica ou profissional.

Há sempre o risco de surgir uma nova classe dos pretensos proprietários do capital cultural, desse poder intelectual, hábil na renda de bilros ideológica, onde há mais reprodutores, vulgarizadores e distribuidores de símbolos, do que criadores. Porque se despreza o conceito etimológico de inteligência, o estado de espírito daquele que sabe intus mais legere, isto é, ler por dentro, penetrar dentro das próprias coisas, captando, nessa intimidade, a essência das mesmas, através de um saber-compreender, olhando que sempre foi além do saber-fazer desses doentios consumidores do ópio dos intelectuais, porque procura olhar o mesmo mundo do ponto de vista do outro.

Importa, pois, ultrapassar a instrução e a hiper-informação dos que não sabem navegar no oceano do conhecimento e retomar a senda da verdadeira educação, aquela que vem de educere, extrair, tirar de dentro, e por dentro, das coisas, onde as coisas realmente são, a necessidade de crescermos para cima e para dentro, conforme as perspectivas do livre e solidário desenvolvimento humano.

Julgamos que importa tratar do passado como passado presente, para que possamos continuar a ter saudades de futuro, sem as ilusões vanguardistas e esoteristas do futuro presente, mas com o ensimesmamento daquele que ousa especular, ao procurar conhecer-se a si mesmo, colectivamente, olhando no espelho (speculum) da sua mente colectiva e procurando assim espiar ou esquadrinhar (speculari), nesse conhecer as causas e os efeitos, mas através daquela via kantiana de um conhecimento cujo objecto não pode ser experimentado num laboratório, mas apenas pela imaginação da sociologia histórica.

Só assim podemos reaver a esperança, enquanto tendência para um bem futuro e possível, embora incerto, para continuarmos a seguir São Tomás de Aquino, para o desejo desse bem com confiança, de acordo com os ensinamentos de São Paulo, que, à spes, deu o símbolo da âncora, dado que esta permite, a quem ousa navegar, penetrar na eternidade da terra firme".