Sobre o tempo que passa
Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...
29.2.08
Hoje, este dia está a mais no normal dos calendários. Talvez por isso é que um deputado da Nação acabou por revelar como sectores do situacionismo interpretam alguns dos indicadores incluídos no critério da “dimensão ética” da avaliação dos senhores professores. Eis a proposta de ficha denunciada: “Verbaliza a sua insatisfação/ satisfação face a mudanças ocorridas no Sistema Educativo/ na Escola através de críticas destrutivas potenciadoras de instabilidade no seio dos seus pares”. Os governamentais terão respondido que tal ficha não passou de mera proposta e daí lavaram as mãos, sem reconhecerem que são a causa do ambiente que permitiu tal violação de princípios constitucionais, num ministério onde continua uma qualquer DREN e onde altos dignitários dizem certas coisas nos bares de Lisboa.
Por mim, apenas declaro que não conheço pessoalmente nenhuma dessas sumidades. E acrescento, face a "mails" recebidos, que também não sou familiar ou ex-familiar de outros portadores do nome "maltez", desde a senhora que recebeu, também hoje, uma condenação, a um célebre capitão de policiescas memórias. O meu patronímico apenas tem a ver com agricultores e artesãos dos campos do Mondego, alguns deles originários de habitantes da ilha de Malta que, no século XVIII, passaram a Gibraltar e para a região portuguesa que vai do Ribatejo a Cantanhede. Isto é, apesar do carimbo nominal, desses avoengos, apenas devo ter qualquer coisa como dois por cento da carga genética, através dos quais posso ter primandade distante com homónimos do Ribatejo e do Alentejo, eventualmente relacionados com os ditos cujos, acima referidos. Brincar a insinuações deste género implicava, aliás, que se estabelecesse um paralelo de parentesco do célebre capitão, cujo último nome era Soares, com um antigo presidente da república da nossa democracia.
28.2.08
Esta ilusão da reforma pela reforma, produzida por uma serôdia ideia de tecnocracia e pela teimosia leviatânica do Estado em movimento
De Bruxelas, confirma-se que, no parlamento europeu, a roubalheira conseguiu institucionalizar-se, nas curvas e contracurvas das assessorias aos senhores super-deputados. Por cá, a pátria lá tem que aturar a nova lei da disfunção pública e que assistir aos devaneios do ministério da avaliação, com a consequente literatura de justificação dos discursos do primeiro-ministro que, sim, senhor, diz que é preciso reformar e que é preciso avaliar, mesmo sem dizer quem é, donde vem e para onde vai, ou o deixam ir...
O nosso querido primeiro-ministro, que aprendeu a subir ao vértice da pátria no manual da co-incineração, especialmente quando esmagou, num debate televisivo, o "guru" Boaventura, tenta, agora, dar uma imagem de teimosia reformista, meio cavaquistanizada, talvez para se poder revoltar, mui freudianamente, contra a pantanosa dialoguice dos tempos do chefe Guterres.
Reconhecendo este pano de fundo, nada tenho de irritabilidade contra a senhora professora doutora em sociologia das organizações que o grande chefe colocou no cume da avenida cinco de outubro. A cara colega podia ser uma tão excelente secretária de estado do simplex, quanto a doutora Manuela Leitão Marques poderia assumir a liderança da autoridade nacional da concorrência, ou o meu amigo director da ASAE poderia passar para secretário de estado da reforma pública.
O ministro não tem que ser um pensador. E aqui e agora, sem filósofos ditadores, basta-lhe assumir o estilo da presente viradeira, com o vigor e a compaixão de um qualquer intendente, para que o chefe finja que é Sebastião José, às segundas, Rodrigo da Fonseca, às terças, António Maria, às quartas, Afonso Augusto, às quintas, e Aníbal Cavaco, às sextas, descansando ao sábado, logo que chega a hora do "jogging" à Sarkosy, e ao domingo, quando vai aos filmes dos óscares, à Obama.
Daí que eu assuma, por dentro, a revolta dos professores. Não contra a eventual má imagem da senhora ministra da avaliação, mas contra o erro de que ela é mera agente. Essa ilusão da reforma pela reforma, produzida por uma serôdia ideia de tecnocracia e pela teimosia leviatânica do Estado em movimento, onde o argumentário manda que os governantes pareçam determinados na determinação, só porque procuram o confronto com uma qualquer ordem profissional, contra a qual se insinuam eventuais privilégios corporativistas, interesses imobilistas e outras tretas.
Foi assim com Correia de Campos, até que o povo saiu à rua, não para se aliar ao vértice do Estadão, mas para dizer que estava farto de providências cautelares. Infelizmente para Sócrates, já não pode ser assim com Maria de Lurdes Rodrigues. Porque teria de ser assim com muitos outros ministros. Mesmo que Menezes somado a Portas não ultrapassem o chefe nas sondagens, algo vai apodrecendo cada vez mais nesta Parvónia... Por tudo isto, também irei para a rua, no dia da marcha nacional dos professores.
27.2.08
Éramos mandados, somos hoje governados. Contra as ideias que tendem a apoucar o indivíduo e a engrandecer a sociedade
Ouvi dizer que, ontem, em plena Assembleia da República, o chefe do grupo parlamentar do principal partido da oposição terá dito: é necessário que se organizem dois partidos, somente; um – mais ou menos conservador, e outro – mais ou menos avançado. Considerou também progressiva a tendência para a bipolarização, porque estamos cansados do regime dos pequenos partidos e desejosos do sistema das maiorias.
Já um desses intelectuais, vencidos da vida, continua a proclamar estupidamente que o país encerra um povo exausto de seiva moral, marcado pelo morbo gaulês da centralização. Defende que as leis se afiram pelos princípios eternos do bom e do justo, e não perguntarei se estão acordes ou não com a vontade de maiorias ignaras. Porque tão ilegítimo acha o direito divino da soberania régia, como o direito divino da soberania popular... Que a tirania de dez milhões, amotina-se contra a conversão do homem em molécula e as ideias que tendem a apoucar o indivíduo e a engrandecer a sociedade, temendo o republicanismo democrático que serve de prólogo ao cesarismo.
Um departamento de uma escola pública obrigou um professor a fechar dois jornais humorísticos, onde se satirizava a Igreja e alguns políticos, porque o conteúdo era "desprestigiante" para a escola. O Conselho de Departamento (…) deliberou, numa reunião, que estes meus projectos na blogosfera tinham que ser encerrados. Segundo argumentam, desprestigiam a minha própria imagem, a imagem do departamento e, acima de tudo, a imagem da universidade. Além disso, (…) dizem que eu faço lá coisas que não têm nada a ver com a minha profissão e que um docente universitário não pode ser escritor criativo nem humorista. Portanto, proibiram-me também de participar em eventos ligados ao humor.(...). O visado diz que não recorreu a outros órgãos da Universidade porque essa foi uma decisão tomada em família. Sou casado, a minha mulher não tem emprego, tenho um filho pequeno para criar e preciso do ordenado para pagar a dívida da casa, para pagar o carro e por aí fora.
Outro escritor decadente terá dito: Há em Portugal quatro partidos: o partido socialista, o social-democrata, o porteiro, e o comuna. Há ainda outros, mas anónimos, conhecidos apenas de algumas famílias. Os quatro partidos oficiais, com jornal e porta para a rua, vivem num perpétuo antagonismo, irreconciliáveis, latindo ardentemente uns contra os outros, de dentro dos seus artigos de fundo
Em certo blogue é anunciado o programa das Conferências do Largo da Praça, pretendendo ligar Portugal com o movimento moderno, procurando que se adquira a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa, e agitar na opinião pública as grandes questões da filosofia e das ciências do século XXI. Segundo o jornal situacionista, O Projecto, os conferencistas não passam de meia dúzia de indivíduos desvairados pelo filosofismo dissoluto. Há dias começaram as conferências, com um discurso de Anacleto Pinto sobre O Espírito das Conferências. Ontem foram proibidas. Porque, conforme as palavras do despacho ministerial de António José da Cunha, nelas se expõem e procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam os valores e as instituições políticas do Estado ofendendo clara e directamente as leis do país e o código fundamental da União Europeia.
Entre o senhor rei de então, e os senhores influentes de hoje, não há tão grande diferença: para o povo é sempre a mesma servidão. Éramos mandados, somos agora governados: os dois termos quase se equivalem (Antero de Quental).
Tudo o que aqui se relata aconteceu no ano de 1871, aqui. No primeiro parágrafo, está José Luciano de Castro. No segundo parágrafo, Alexandre Herculano. O terceiro tem a ver com a Universidade do Minho, mas aqui e agora. O quarto é Eça, também em 1871. No quinto, onde está Anacleto, leia-se Antero e o ministro podia ser Maria de Lurdes Rodrigues e a DREN, ou Santos Silva e as jornadas parlamentares da Guarda.
Estou assim porque participei activamente em espírito na manifestação de ontem dos professores, pelas ruas de Coimbra, e porque também tenho um blogue e já fui publicamente denunciado pelo que aqui escrevo em pleno Conselho Científico da minha escola ... pública. Não comento o major e os árbitros, nem portas contra o ministro agrícola. Apenas digo que em 1871, o governo não era de direita, mas o regime já estava cansado e ainda iria durar meio século, porque teve a hipótese de se entreter com a construção de um império colonial, aproveitando os vazios de poder que em África nos deixaram as grandes potências da Europa. Agora, apenas somos um pouco maiores do que o Kosovo e fiamo-nos na virgem... do Obama.
Por outras palavras, este é o país onde o ministro da cultura, ligado aos direitos humanos e à empresa do Gato Fedorento, deve ver, ouvir e ler, fazer um discurso de revolta contra esta opressão, ou assobiar para o lado, assumindo a vergonha do ávila. Juro que Fernando Pessoa resistiu aos comentários literários que lhe foram movidos em meados da década de trinta pelo político José dos Santos Cabral.
26.2.08
Contra un pudridero colosal, lo más positivo, lo más importante, es la resistencia que uno ofrece a la irreversible descomposición
Algo se passa aqui ao lado, em Espanha, com o aparecimento da Unión Progreso y Democracia (UPyD) e com o anúncio do livro "Política razonable", escrito por Mário Vargas Llosa, Fernando Savater, Rosa Díez, Álvaro Pombo, Albert Boadella y Carlos Martínez Gorriarán, onde Llosa diz não se sentir representado "en las actitudes conservadoras reticentes, por ejemplo, al laicismo, a la separación de la Iglesia y el Estado, a la creación de una sociedad laica".
Porque "como liberal, creo que medidas como la despenalización del aborto, los matrimonios gays y el derecho de las parejas homosexuales a adoptar niños, son medidas de progreso que aumentan la libertad y los derechos humanos en España, y por tanto, no me puedo sentir representado por un partido que rechaza esas reformas". Até porque o seu companheiro de aventura, o filósofo Fernando Savater, afirma que está "en contra de que se planeen huérfanos. El erotismo es un invento humano, la procreación no. Todo el mundo tiene derecho a la filiación, y la filiación es por parte de un padre y de una madre [...] La filiación es un fundamento natural y simbólico de la especie humana", qualificando a adopção por parte de casais homossexuais de "inmoralidad".
Porque, como, no livro, salienta Albert Boadella: La política se ha caracterizado siempre por ser un pudridero colosal, donde lo más positivo, lo más importante, es la resistencia que uno ofrece a la irreversible descomposición. Por isso, admiro que um aluno meu tenha decidido estudar mesmo ciência política: foi para o centro do debate. Talvez se liberte das teias do nosso "pudridero" e compreenda como Vargas Llosa não poderá ser citado pelos que, por cá, continuam no velho congreganismo que pensa deter o monopólio da moralidade. Talvez pela importação desta racionalidade, nos livremos da tripla sócrates-menezes-portas, dos anúncios de inquéritos da PGR que dão em arquivo, dos apitos doiradinhos que dão em agressões marialvas e volte a liberdade do homem revoltado. Por mim, continuo a querer ajudar a fundar o próximo UPyD, mesmo que não tenha votos ou mesmo que os reaccionários de sempre continuem a infiltrar-se naquilo que sempre foi a via dos radicais do centro, à maneira de Alain, do "cidadão contra os poderes", para que se reconstrua a cidade.Porque, se inventámos a política para deixarmos de ter um dono, temos que, agora, a reinventar contra os muitos donos dos poderes que fragmentaram a cidade em micro-autoritarismos domésticos, económicos, fradescos, policiescos ou sub-estatais.
25.2.08
Um herói do nosso tempo...“Olá, viva, trago-lhes aqui uma reforma educativa de calibre doze”
Recebi, de um conhecido blogueiro e meu antigo aluno, um curioso comentário ao meu postal de hoje. Não divulgo o nome do meu correspondente, a não ser que ele publique a coisa aqui na blogosfera, mas não posso deixar de a reproduzir:
... A propósito do post de hoje no no "Sobre o tempo que passa" tomo a liberdade de lhe enviar a tradução (bastante livre) que fiz de um artigo escrito por um dos meus autores preferidos precisamente sobre os professores. Um abraço do ...
O tipo continua ali. Ainda não se transformou num mercenário empedernido, dos que entram na sala como se tudo fosse irrelevante. Talvez porque ainda é jovem, ou porque é optimista, ou porque teve um professor que acalentou o seu amor pelas letras e pela História, acredita que há sempre justos que merecem salvar-se mesmo que chova granizo vermelho sobre Sodoma. Por isso, em cada dia, apesar de tudo, continua a vestir-se para ir para as suas aulas de Geografia e de História no liceu com a mesma decisão com que os seus admirados heróis, os que descobriu nos livros entre versos da Ilíada, colocavam a loriga brônzea e o capacete tremulante, antes de lutarem por uma mulher ou por uma cidade sob as muralhas de Tróia. Dito em três palavras: ainda tem fé.
Ainda não passou a desprezá-los: sabe que a maior parte são bons rapazes, com vontade de agradar e de brincar. Têm falhas de ortografia e uma pobreza de expressão oral e escrita assustadoras e também uma arrepiante falta de educação familiar. No entanto, merecem que se lute por eles. Está certo disso, ainda que alguns sejam bárbaros rematados, ainda que os pais tenham perdido todo o respeito pelos professores, pelos seus filhos e por si próprios. “Vou ter que ponderar tirar-lhe a televisão e a play-station do quarto”, comentava uma mãe há poucas semanas. Determinada, por fim, depois de lhe ter dito pela enésima vez que o seu filho estava num beco sem saída, a ponderar sobre o assunto. A boa senhora. Preocupada com o seu filho, claro. Inquieta, até. Era o que mais faltava. A cidadã exemplar.
Mas, como digo, não os despreza. Ainda o comovem as expressões que fazem de cada vez que lhes explica alguma coisa e eles compreendem, e batem com o cotovelo uns nos outros, e pedem aos destabilizadores que deixem o professor acabar o que está a contar. Fazem-no estremecer de júbilo os olhares cúmplices que trocam entre eles quando alguma coisa, um facto, um personagem, chama realmente a sua atenção. Aí tornam-se no que ainda são: maravilhosamente apaixonados, generosos, ávidos de saber e de transmitir o que sabem aos outros.
Há ocasiões em que, claro, lhe cai a alma aos pés. O “o que é que fazemos com ele em casa todo o dia”, como única reacção de uns pais face à expulsão do seu filho por vandalismo. Por sorte, nunca nenhum rapaz o encarou, nem foi ameaçado com um par de estalos, nem nunca lhos deram, o aluno ou os pais, como a outros colegas. Tampouco leu ainda o texto da nova lei da Educação, mas tem a certeza que os alunos que não abram um livro vão continuar a ser tratados exactamente como aqueles que se esforcem, de modo que as ministras correspondentes, ou quem quer que seja, possam afirmar imperturbáveis que aquilo do relatório de Pisa não tem importância, e que apesar dos alarmistas e dos agoireiros, os estudantes espanhóis sabem fazer perfeitamente o O com um canudo. Muito melhor, até, que os desgraçados de Portugal e da Grécia, que ainda estão pior. Etc.
No entanto, quando sente a tentação de apresentar-se no ministério ou delegação regional correspondente com uma espingarda e uma caixa de chumbos – “Olá, viva, trago-lhes aqui uma reforma educativa de calibre doze” – conforta-se pensando no que vai conseguindo. E então recorda a expressão dos seus alunos quando lhes explica como Howard Carter entrou, emocionado, com uma vela na câmara funerária do túmulo de Tutankhamon; ou como uns monges valentes roubaram aos chineses o segredo da seda; ou como venderam caras as suas vidas os trezentos espartanos em Termópilas, fiéis à sua pátria e às suas leis; ou como um impressor alemão e um conjunto de letras móveis mudaram a história da humanidade; ou como uns rústicos cabeçudos, com uma borracha de vinho e uma guitarra, puseram em cheque às portas da sua cidade, lutando casa a casa, o maior e mais imortal exército que se passeou por terra europeia. E assim, depois de lhes contar tudo isto, de fazer com que o relacionem com os filmes que viram, com a música que ouvem e com a televisão que vêem, considera uma vitória cada vez que os ouve discutir entre eles, desenvolver ideias, situações que ele, com paciente habilidade, como um caçador antigo que arma a sua armadilha com infinita astúcia, foi dispondo ao seu ritmo. Então sente-se bem, orgulhoso do seu trabalho e dos seus alunos, e vê-se ao espelho à noite, quando lava os dentes, pensando que talvez valha a pena.
Tradução (bastante livre) do artigo "Un héroe de nuestro tiempo" de ARTURO PÉREZ-REVERTE (El Semanal, 25 de Junho de 2006)
Quando o poder ameaça destruir a independência do saber e os professores correm o risco de extinção
Raul, o estalinista de sempre, sucede a Fidel, para que a revolução continue, porque um bom revolucionário nunca pode ser um humanista. Já na ilha de Chipre, um comunista de sempre torna-se no primeiro presidente de um Estado da União Europeia, talvez para condizer com o ex-maoista que se encontra na presidência da comissão.
Por seu lado, na feira das quinze marcas da modernidade das novas fronteiras obamizadas, Sócrates mobiliza os pastéis de nata das elites situacionistas, mostrando o ex-mandatário de Cavaco, João Lobo Antunes, o sexólogo Júlio Machado Vaz e os lentes coimbrinhas Vital Moreira e Gomes Canotilho, enquanto acusa o PSD de faltar à palavra dada, para que Menezes brinque ao efeito boomerang. No dia seguinte, o Sporting perdia e o Benfica empatava em casa, talvez por causa da entrevista televisiva de Pinto da Costa na véspera, sobre como funcionam as alcovas da nossa administração da justiça em nome do povo.
Por outras palavras, o melhor das elites situacionistas não é chamado para a selecção nacional do governo, tal como o melhor das elites históricas do PS e da esquerda humanista se passou para a oposição, ao estilo de António Barreto, enquanto outros preferem os blogues ou a última fila do parlamento, numa situação paralela à que ocorre no PSD e no CDS, onde qualquer Menezes é capaz de fazer um discurso contra os "barões" que não querem dar a cara. É a isto que chamo decadência. Quando a nobreza deixa de cumprir a sua função e passa a bola aos filhos de algo, assim se confirmando a necessidade de estudarmos a genealogia das oligarquias, dos padrinhos e das famílias que nos levaram ao estado a que chegámos.
Com efeito, na revisão do meu último trabalho, quase no prelo, tive que confrontar algumas biografias de parlamentares lusitanos, aproveitando a feira de descontos da livraria parlamentar. Comprei, por um euro apenas, uma das mais recentes recolhas das "Biografias dos Deputados" e, passando os olhos pelas ditas, apenas confirmei que cerca de noventa por cento da fauna nem sequer ficará a nível das notas de pé de página da história, mesmo que alguns se esforcem por transformar os "curricula" no tradicional doutorismo das boas intenções. Até encontrei um que tem como habilitações literárias, há mais de duas décadas, um "doutoramento em... (em realização)", para não falar nos que dizem que são "professores", sem nunca terem dado uma aula nos últimos trinta anos, só porque não têm a coragem de assumir que são "políticos profissionais".
Nada de estranhar. Confrontando os dados com as equivalentes biografias do século XIX e do século XX, feitas realmente por jovens assistentes, exageradamente fichadas pelo recurso aos enciclopedismos do "quem é quem", com muita cedência às autocontemplações curriculares dos biografados e ao sindicato de citações mútuas dos biografantes oficiosos e subsidiados, onde, algumas vezes, se confundem as produções literárias e científicas dos filhos com as dos pais, só porque têm o mesmo nome, ao contrário do que fazia o beneditino Inocêncio, que nunca deixaria de fora dos registos coisas como os "Aphorismos" de Alberto Morais de Carvalho, cheguei à conclusão que mantemos alguns dos defeitos típicos da falta de seleccionadores de elites, incluindo nas biografias sistémicas dos gestores das escolas de regime.
Tal como ontem, a presente democracia não consegue dar o salto para a meritocracia e para a consequente organização do trabalho nacional. Porque a incompetência vem do mau exemplo dos que estão em cima, nos lugares de distribuição do poder, incluindo as verbas para a investigação científica e as academias estadualizadas. E quando os hierarcas do estadão caem na tentação de confundir o poder com o saber, pode acontecer-nos até a destruição dos bons fragmentos de ensino, de investigação e de educação que ainda resistiam.
Basta reparar como a universidade pública, marcada pela positivista "révolution d'en haut", parece sucumbir ao politiqueirismo, sob o nome de avaliação e reforma, onde os avaliadores e reformadores são nomeados pela mesma fauna que escolhe os distribuidores dos subsídios, ou os amigalhaços que podem fazer registos de "curricula". Verifico, infelizmente, que o mesmo método vérmico ameaça agora os professores dos ensinos pré-universitários, suceptíveis de liquidação pela formidável e kafkiana mentalidade dos "pracistas" que se alimentam do regime de classificação de serviço na administração pública hierarquizada, em "outsourcing". Onde também ninguém avalia os avaliadores e reformadores, chegando, por exemplo, à conclusão que só pode ser avaliada uma peça da máquina se for possível avaliar a máquina, o engenheiro que a concebeu, o capataz que a controla ou o feitor que lhe dá combustível.
O "big brother" do pensamento único ameaça, agora, confundir o saber com o poder e destruir as últimas ilhas que nos permitiam avaliar o mérito, com aquela profunda justiça que sempre foi tratar o desigual desigualmente. Ao fazerem entrar no sistema normalizado da decadência um dos últimos lugares onde se podia cultivar o centro excêntrico da descoberta dos criativos, pode acabar de vez o culto da imaginação ao poder, mesmo que seja o poder dos sem poder, a que, desde sempre se chama autoridade, a tal que vem de autor, e não de mero actor ou de simples auditor, com que, por vezes, confundimos os totais responsáveis pela assinatura dos inestéticos projectos de obras que nos vão desfeando.
Não tarda que um qualquer senhor director de escola, ou de universidade, receba cunhas da tia da prima da antiga sopeira, metendo influências e pressões por um qualquer sobrinho e criticando o eventual rigor de justiça deste ou daquele professor, para que o quinzinho, esse filho de algo, possa enquadrar mais um lista dos "yesmen" deputáveis da nossa praça. E eu a pensar que a última cena desse género a que assisti foi numa dita universidade privada, plena de passarinhos, quando o padreca administrador entrou em plena prova oral, para dizer ao examinador que tratasse bem daquela menina. Para não falar de outra, ainda mais privadíssima, onde um genial aluno foi chumbado numa prova escrita só porque sabia mais do que o dito professor que o avaliava...
Quem julgar que a história real dos dias que passam anda longe desta ficção feita de circunstâncias bem efectivas, basta ver, ouvir ou ler, como eu, testemunhos fidedignos, daqueles que nenhum processo de investigação judicial sobre a corrupção consegue registar, mas que, também de vez em quando, levam a que ministros tenham que se demitir, só porque o facto real passou a notícia de jornal e fez com que a vergonha enlameasse aquele que diz que "l'État c'est moi".
PS: A fotografia cimeira deste postal podia ser do meu amigo Mário, que, todos os dias, circula pela rua, onde também um justo candidato a prémio Nobel, também quase todos os dias, leva o seu carrinho de compras na mercearia, carregado dos manuscritos do próximo romance. Porque ambos seriam avaliados como doentes da cabeça pelos doidinhos da "black box", que não têm a lucidez da "docta ignorantia". O Mário, ao que consta, já foi professor, mas descompensou e, agora, entre belíssimos fragmentos de discursos e um charro, vai pedindo um cigarrinho ou uma moedinha. Olho, todos os dias, o perigo de estar perante uma fotografia prospectiva da minha classe professoral, depois de ser avaliada pelos subsidiáveis do sindicato das citações mútuas e pelos biógrafos dos políticos profissionais que sempre tivemos, incluindo os engenheiros de subsídios e os mandarins politiqueiros que comandarão as escolas, quando perdermos os últimos restos de vergonha...
22.2.08
Contra a ameaça da balcanização interna....
Anteontem foi o bastonário da Ordem dos Advogados, ontem o general Leandro, agora a velha SEDES: sente-se hoje na sociedade portuguesa um mal-estar difuso, que alastra e mina a confiança essencial à coesão nacional. Nem todas as causas desse sentimento são exclusivamente portuguesas, na medida em que reflectem tendências culturais do espaço civilizacional em que nos inserimos. Mas uma boa parte são questões internas à nossa sociedade e às nossas circunstâncias. Não podemos, por isso, ceder à resignação sem recusarmos a liberdade com que assumimos a responsabilidade pelo nosso destino...
Ao nível político, tem-se acentuado a degradação da confiança dos cidadãos nos representantes partidários, praticamente generalizada a todo o espectro político....
Outro factor de degradação da qualidade da vida política é o resultado da combinação de alguma comunicação social sensacionalista com uma justiça ineficaz. E a sensação de que a justiça também funciona por vezes subordinada a agendas políticas. ..
A criminalidade violenta progride e cresce o sentimento de insegurança entre os cidadãos. ..
O mal-estar e a degradação da confiança, a espiral descendente em que o regime parece ter mergulhado, têm como consequência inevitável o seu bloqueamento. E se essa espiral descendente continuar, emergirá, mais cedo ou mais tarde, uma crise social de contornos difíceis de prever.A sociedade civil pode e deve participar no desbloqueamento da eficácia do regime – para o que será necessário que este se lhe abra mais do que tem feito até aqui –, mas ele só pode partir dos seus dois pólos de poder: os partidos, com a sua emanação fundamental que é o Parlamento, e o Presidente da República.
Esperemos que, dentro de dias, surja idêntica análise da Conferência Episcopal Portuguesa ou do Grande Oriente Lusitano, para não falarmos de uma declaração conjunta das duas centrais sindicais ou de outras forças morais e sociais. Porque vão ardendo embaixadas em Belgrado e não satisfaz a explicação neo-realista, segundo a qual importa comprar a Albânia e o Kosovo para que tais sítios se não transformem num narco-Estado ou numa base do fundamentalismo terrorista. Porque quem vai pagar a crise somos nós todos, mesmo que continuemos a ter um ministro do "deficit" como ministro da reforma daquilo que deveria ser um cérebro social. Por mim, apenas não me quero balcanizar. O governo de José António Maria da Silva e Sócrates não é causa da crise. Não passa de mero sintoma...
Quando o poder instalado recusa o "vemos, ouvimos e lemos", apenas porque certos senadores dizem que ele se deve fiar na virgem do não haver alternativas ao que está, tanto no PS como no país, só porque o resto se chama menezes, portas e quejandos, talvez seja necessário o ovo de Colombo da imaginação no poder. Por exemplo, a extinção do município de Lisboa e a urgente instauração de uma nova forma de governação autárquica e regional nesta área metropolitana, à semelhança de coisas equivalentes na Europa. Infelizmente, preferimos continuar a demonstrar que um burro sobe mais depressa a Calçada do Carriche do que um Ferrari e continuamos a não poder dar um mergulho nas poluídas águas do Tejo, a não ser que se utilize, como princípio da subsidiariedade, um desses pareceres dos ilustres administrativistas que servem os interesses de Stanley Ho...
PS: Mestre Harold Laski continua a dizer-me em surdina: o problema central da política é o problema da autoridade e da liberdade, a tensão entre a soberania do Estado e a obrigação moral de resistir, porque o poder somente é válido quando recebe, daqueles que lhe estão sujeitos, a livre anuência à autoridade que ele procura exercer.
21.2.08
Todos continuamos enredados no neofeudalismo absolutista da engenharia das cunhas, da subsidiocracia, do amiguismo, do nepotismo e do clientelismo
Em momentos de decadência, há certos dias em que sentimos, na pele, os riscos vingativos de certa canalha de unhas aduncas que subocupou os interstícios do poder dito democrático, confirmando como continua a mentalidade da persiganga, mesmo quando a facada é comandada a partir dos sofás de coiro dos altos gabinetes. Os descendentes dos moscas, dos formigas e dos bufos continuam a não compreender que o poder dos sem poder, o tal que alimenta a saudável desobediência individual e que há-de sublimar-se em resistência, não é passível de distribuição de cima para baixo. O poder antipoder, do cidadão contra os poderes, apenas se vai semeando, de centro a centro, de consciência a consciência, através da permanente corrente da libertação, daqueles que acreditam que o desenvolvimento impõe que se cresça não apenas pela estatística, mas sobretudo que se cresça para cima e por dentro.
Ainda ontem, em dia em que circunstâncias da vida pessoal e familiar me obrigaram a não poder comparecer num acto público, tive que recordar que, aqui e agora, não há o maniqueísmo do público contra o privado, que alguns traduzem como conflito entre liberais e socialistas, mas antes, as águas pantanosas da chamada economia mística, daqueles que seguem o dito de Ramada Curto, segundo o qual gostamos de nacionalizar os prejuízos e de privatizar os lucros.
O acórdão do Tribunal Constitucional condenatório da Somague e do PSD permitiu que se iluminasse uma zona da nossa vida pública que, há mais de um quarto de século, permanecia na clandestinidade, enrodilhando a democracia em zonas pouco transparentes, onde, por trás das cortinas, circula o caciquismo, o pato-bravismo, os autarquinhas, os politiqueiros partidocratas e até os futebolíticos. Aliás, só recentemente se começaram a ver as pontas do "iceberg" do enredo da mulher de César.
É evidente que a democracia que temos é um péssimo regime político, mas o menos mau de todos os que, até agora, tivemos. Daí podermos dizer que todos os líderes, históricos ou presentes, do PS, do PSD e do CDS, os tais partidos "catch all" que regem o nosso centrão, todos esses líderes donde nos vem a reserva de recrutamento dos primeiros-ministros, dos ministros, dos presidentes da república e dos deputados, todos eles, para poderem ascender dentro da máquina partidária, ou por entre os corredores e gabinetes da luta interna pelo poder, tiveram que fazer pactos com o diabinho dos caciqueiros, ficando, posteriormente, condicionados.
Assim, todos ficámos enredados no neofeudalismo da engenharia das cunhas, da subsidiocracia, do amiguismo, do nepotismo e do clientelismo. A partir desta infra-estrutura mental, gerou-se uma rede de pactos de silêncio e de cumplicidade que nenhum jornalismo de investigação pode descobrir, até porque quase ninguém consegue descodificar as vastas empresas ditas de consultadoria e de "outsourcing", ou os mecanismos da parecerística. Uma "network" que, depois, se refinou pela engenharia da alta finança e das sociedades inter-estaduais de tráfego de influências, tornando-se transnacional e diluindo-se em mais vastas formas da tradicional pirataria global dos colarinhos brancos e dos "yuppies", onde até D. Sebastião e os seus pretensos teóricos só anseiam pela prebenda da sociedade de casino.
Estes caldos de cultura, que partiram do velho caciquismo de regeneradores e progressistas, e, depois, passaram ao "adesivo" do republicanismo e ao "virasacas" do salazarismo, chegaram, mais recentemente, à modernidade da integração europeia e da globalização, gerando o verdadeiro estado a que chegámos. O tal que não é de esquerda nem de direita, nem socialista nem social-democrata, nem democrata-cristão nem conservador, nem republicano nem monárquico, nem miguelista nem pedrista, nem salazarento nem abrileiro, mas mero efeito da própria cultura de mestre-escola do tal senhor director que não passa de um tiranete vingativo, à maneira do intendente policiesco da viradeira, alimentado por relatórios de espiões de costumes e de pretensas traições à barriguinha dos interesses que usurpa o nome de pátria.
É toda uma sucessão de chefes e subchefes de um micro-autoritarismo sub-estatal que enxertaram a incompetência no corno de cabra politiqueira, disfarçando-os em adornos tecnocráticos com que vão pintalgando a aparente modernidade tecnológica. Contudo, os tiranetes não passam de analfabetos funcionais que nada sabem do "hardware", que mandam comprar, e do "software", que contratualizam a recibos verdes. Mas gostam de ser fotografados ao lado de um écran de PDA, com que confundem o promontório dos séculos.
Muitos deles irão, depois da inevitável queda da cadeira, ser revelados, em seus pés de barro, na barra de um tribunal, talvez por causa de um qualquer negócio de intendência e economato, mas, por enquanto, continuam a comandar o aparelhismo típico dos sargentos verbeteiros e ainda esperam que os chamem para as alturas gabinetais da mesa do orçamento, ou para o sucedâneo de um lugar de administrador, por cunha do Estado, numa qualquer empresa de economia mística.
Nenhuma dessa gentalha gosta da cultura do antes quebrar que torcer, da lusitana antiga liberdade, e por isso, contra a autenticidade da cidadania, o poder nu, das instituições sem ideia de obra, manifestações de comunhão entre os seus membros e total desrespeito das regras do Estado de Direito, continua a mobilizar toda a herança do inquisitorialismo, com a permanecente procissão dos bufos que sonham, todos os dias, com os autos de fé da terra e dos corpos queimados...
20.2.08
Entre as delícias do mar e os toucinhos do céu
ASAE apreende cinco toneladas de delícias do mar fora do prazo de validade. Esperemos que, em breve, chegue ao toucinho do céu, dado que o Tribunal Constitucional acabou de condenar o PSD por financiamentos eleitorais ilegais e o Tribunal de Contas chumbou o grande empréstimo alfacinha. Por outras palavras, há micro-instituições subestatais que começam a dizer que funcionam, em dia de comemoração de três anos de socratismo, efeméride para a qual já dei o meu contributo blogueiro, bem como comentários esparsos na comunicação social, como hoje no "Público" e ontem no "Diabo" e no "Meia Hora".
Não comento a encenação de um político cubano que disse retirar-se de cena. Apenas recordo que foi educado pelos jesuítas antes de se licenciar em direito. E que a partir de Julho de 1958, fracassada a ofensiva de Batista para o suprimir, ele os seus rebeldes ocuparam a parte oriental da ilha e lançaram a sublevação geral. Os comunistas aderem ao movimento apenas em Outubro desse ano. Surgem várias colunas rebeldes, vindas dos campos para as pequenas cidades, destas para as capitais de província e, finalmente, destas para Havana, num processo em espiral. O chamado foquismo triunfava. Batista foge no dia 1 de Janeiro de 1959, vem para o Estoril, e Castro torna-se primeiro ministro em Fevereiro. Já no crepúsculo este cubanogalego será visitado solidariamente pelo galegocubano Manuel Fraga Iribarne, porque as culturas, as confrarias e as identidades são mais importantes do que as ideologias.
Em 13 de Janeiro de1959 chegou a declarar: nem eu, nem o movimento são comunistas. Os grandes jornais norte-americanos que o transformaram em herói, romântico e barbudo, exultaram. Dois anos depois, em 2 de Dezembro de 1961, já proclama: serei marxista-leninista até ao último dia da minha vida. A versão latina do esquerdismo universal ganhava um chefe e muitos passavam a esquecer as realidades quotidianas de uma crua ditadura, assente em fuzilamentos, e de um totalitarismo feito de polícias de pensamento único. Não há toucinho do céu que sempre dure, mas, às vezes, as delícias do mar fora do prazo de validade duram décadas e décadas, continuando mesmo depois da personalização do poder cair de uma cadeira...
PS: Imagem do pinamanique de tal déspota iluminado, saboreando a bela água choca do imperialismo
19.2.08
Um político nunca respeita a palavra dada, pois a posterior avaliação que o mesmo faça dos altos interesses do país lhe dá autorização para a revogar
Já passou a tempestade, mas ainda não chegou a bonança. Ontem foi quase uma hora daquele tipo de propaganda calmante a que, dantes, se chamava conversa em família, onde o chefe da governação demonstrou, diante dos discursos do bastonário Marinho e do general Leandro, que é um excelente "public relations" para o homem massa da multidão solitária, dado que tem perfeito conhecimento dos "dossiers" da economia, da saúde e da educação, pois foi capaz de os reduzir a meia dúzia de linhas e de percentagens, assim confirmando como um bom político é o tal especialista em assuntos gerais que percebe de tudo um pouco, sem perceber nada de nada, entre furacões, casapias e apitos dourados. Quando a palavra pública se gasta pelo mau uso, ela pode correr o risco de se prostituir pelo abuso.
Claro que a política geral ficou reduzida a cinco minutos de quase uma hora de conversata e nada ouvimos de Europa, de política externa ou de outras questões das funções tradicionais da soberania, coisas que, normalmente, não são chamadas às pré-campanhas eleitorais, quando o velho principado, herdeiro do absolutismo, do "Estado ser ele", dá um breve passeio pela república, onde o Estado devíamos ser "nós todos". Ontem, diante de São Expresso, convinha fazer política com um ar engenheiral de tecnocrata, mas, lamentavelmente, nem sequer houve meia dúzia de segundos para uma reflexão solidária sobre as vítimas da tempestade que se abateu sobre a capital, como o deveria fazer o antigo responsável pela política do ambiente e da construção de edifícios e equipamentos urbanos em vales de cheias, coisas que existiam antes de os patos bravos e os corruptos iniciarem o permanente cerco de Lisboa, como se mostra na imagem.
Ficámos a saber que um político nunca respeita a palavra dada, pois a posterior avaliação que o mesmo faça dos altos interesses do país lhe dá autorização para revogar promessas. Até pode mudar de ministro para melhor poder defender as reformas que o mesmo ministro estava a fazer, no momento em que compreenda que as pessoas começam a perder confiança no sistema que o mesmo hierarca representa e vêm para a rua bater nos tachos, seringas, mocas de Rio Maior, sebentas e aspirinas.
Pior foi quando proclamou que as instituições precisam de liderança, reduzindo esta à existência de um qualquer senhor director, especialmente quando reconheceu que todas as grandes máquinas podem cometer injustiças e continua a valer a lei maquiavélica de o melhor para o país ser mais importante que a palavra dada, num país onde a história do orçamento ser a história do "deficit". Porque também reconheceu que não há mais abusos do Estado do que aqueles que existiam no passado, e que o mal está nas pessoas que se queixam por excesso democrático, mesmo que sejam os 719 000 subscritores dos certificados de aforro. Foi em democracia que nasceu Péricles, o primeiro demagogo que também era estratego. Hoje, quando à demagogia falta a estratégia e já não há Péricles, até a democracia se confunde com a não-democracia.
Por mim, apenas confirmei, através de uma adequada análise de conteúdo, que nunca foram usadas palavras como civismo, democracia, participação, patriotismo ou Estado de Direito, quanto mais socialismo, cosmopolitismo ou europeísmo. Este "public relations" da abstracta governação podia ser propagandista de outra qualquer governança sem governo, de outro qualquer sistema geral de pilotagem automática, ao serviço da melhoria de uma qualquer balança teconológica, onde se confirmasse que o calçado e o têxtil melhoraram e que aumentámos para 35% os cursos profissionalizantes na educação, tendo mais alunos com menos dinheiro, dado que ainda podemos crescer 2,5% ao ano, conforme consta das cábulas postas em bloco, com marcador grosso...
Quando a rotina esmaga a aventura, há sempre contas de somar que continuam contas de sumir e ninguém ainda nos explicou que os problemas económicos apenas se resolvem com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas...
18.2.08
Esse sucedâneo de "big stick" que passa pela criação de protectorados, agora com a NATO como procuradora
Com a tempestade a desabar sobre Lisboa e o Presidente entre os lugares da guerra e os lugares santos que, sem ser por acaso, são na mesma terra, lá continuo perdido na revisão da minha biografia do pensamento político, sem ouvir as glosas da senhora ministra da educação sobre as reformas que a farão entrar na história ou as justificações de Santana Lopes sobre os acordos de Arnaut com os representantes de Stanley. Prefiro notar Kosovo, o mais jovem Estado do mundo, depois de Ramos Horta ser submetido a mais uma intervenção cirúrgica.
Penso como português, de uma nação de antes de haver nacionalismo, de antes de haver Estado, de antes de haver soberania. Reparo nas centenas de nações sem Estado que existem no mundo. Nas muitas que se querem integrar noutros Estados, nas que querem unificar Estados, nas que querem desintegrar-se de Estados. Reparo como a República Imperial, num preconceito anti-sérvio que esconde uma vontade anti-russa, volta a brincar às independências, como o fez com Cuba, nesse sucedâneo de "big stick" que passa pela criação de protectorados, agora com a NATO como procuradora. Confirmo como não há política externa europeia. Fico triste.
Bruxelas não deveria balcanizar-se, interferindo entre as pretensões da Grande Sérvia e as pretensões da Grande Albânia, tal como a República Imperial não deveria brincar a nova Guerra da Crimeia, mais uma vez com religião à mistura e muita força a fazer o desequilíbrio. Por outras palavras, o direito cosmopolítico continua a ser música celestial para o regime do governo de espertos em que se enreda o crepúsculo da superpotência que resta, face ao vazio de Europa. Em 2008, tal como em 1389, os sérvios voltam a ter a sua Alcácer-Quibir. Os defensores do Estado de Direito que estão no poder em Belgrado não mereciam esta afronta.
15.2.08
As andorinhas que não trazem a primavera...
Totalmente mobilizado pela revisão de mais um livro que vai entrar no prelo e com intensos trabalhos académicos, desde arguições ao normal da análise das provas de frequência de caloiros, tem-se ressentido o blogue, mas não a observação das presentes circunstâncias, como transparece dos comentários que me têm sido solicitados pela comunicação social, alertada pela mudança dos planos de "agenda setting" do situacionismo governamental, onde as andorinhas da remodelação fingem que chegou a primavera, depois da ofensiva da propaganda de Menezes que, aliás, começa a ser repetitiva nos seus tiros de pólvora ressequida.
Cada vez mais me convenço que parte significativa do tal eleitorado flutuante que vai votando PS e PSD é capaz de não dar a maioria absoluta a nenhum dos figurantes deste Bloco Central, desta pilotagem automática de uma governação sem governo, típica daqueles países onde a maioria dos factores de poder já não é nacional e onde a independência é crescentemente uma gestão de dependências e de interdependências. A encruzilhada em que tropeçámos, onde a decadência rima com certos recortes de ditadura da incompetência, não vai ser vítima de qualquer implosão social, mas antes de uma qualquer crise importada do ambiente internacional onde nos inserimos, donde também nos virá uma eventual regeneração moral.
Daí que muitos cidadãos estejam mais interessados nos meandros da campanha eleitoral norte-americana do que nos discursos anti-corrupção de Pedro Santana Lopes e de Paulo Portas, assim se confirmando como dependemos dos balanços que acontecem na república imperial, quando deveríamos pensar na dita, mais na perspectiva do interesses mundiais, europeus e portugueses. Por mim, que não sou norte-americano, bem gostaria que deixasse de haver uma superpotência que confunde os respectivos interesses nacionais com os interesses mundiais, com autenticidade ingénua, e que se começasse uma transição não isolacionista.
Por cá, sinto que nos enredamos na falta de sinais de mobilização para o bem comum e não vejo brumas de regeneração, dado que os discursos do bastonário e do general, infelizmente, apenas têm uma dimensão meramente pedagógica. Não são causas são meras consequências, tal como também não têm dimensões terapêuticas, dado que apenas contribuem para uma eventual liga de profilaxia social...
12.2.08
Contra os "grandes interesses" e o "centrão dos interesses", que alimentam as negociatas e, às vezes, as roubalheiras...
Porque estava totalmente mobilizado para tarefas académicas, fechado sobre uma dissertação e sobre o tempo mental em que tinha que viver, não li nem ouvi notícias. Só ontem, no comboio, de regresso a Lisboa é que me deram novas sobre Timor, apercebendo-me como, vivendo no tempo que passa, me posso abstrair de certas circunstâncias e não ouvir, não ver nem ler. Por isso, compreendo algumas afirmações que os jornais de hoje reproduzem. Com João César das Neves, fiquei a saber que o PS tem uma de três escolhas: poder ser " socialista, reformador ou sequer maçon", mas que Sócrates fugiu do esquema e "é só corporativo". Pobres socialistas, nem com Guterres lhe deram alternativa para também poder ser "católico"...
Com o artigo de Mário Soares no DN, debruçado sobre a intervenções de um general e de um bastonário, tudo se me iluminou: a culpa é do sistema neoliberal, que está esgotado, ... Só passarão, quando e se os Estados Unidos, após as próximas eleições presidenciais, mudarem radicalmente de política... O ano 2008 não vai ser fácil. Nem para a Europa nem, consequentemente, para Portugal. Não são de esperar grandes melhorias. Não dependem de nós. Mas o que está na nossa mão é evitar que as desigualdades sociais se agravem e que o Estado se mostre implacável relativamente aos mais desfavorecidos e dê a impressão de ser complacente perante os "grandes interesses" e o "centrão dos interesses", que alimentam as negociatas e, às vezes, as roubalheiras...
Já o general Leandro volta à carga: Há um grupo, uma elite dominante que controla a componente político-partidária e económica que vive noutro País e com rendimentos, benefícios e mordomias que não têm nada a ver com a grande maioria da população... Há novos partidos que estão a tentar organizar-se. Eu já fui contactado por dois. Além de vir a existir o eventual novo partido do doutor Manuel Alegre.
Por isso, recordo comentadores de palavra fácil que se soltaram nas opiniões televisivas das nossas febres de sábado à noite e logo reparo como permanecem os fantasmas de direita e os complexos de esquerda nalguns pretensos intelectuais da burguesia capitaleira. Uma deles até transformou capitães de Abril em alferes do 28 de Maio, indo além da sua chinela de brilhante escritora que, afinal, ao querer levar a sua carta a Garcia, confundiu o Leandro com o Santos, esquecendo-se que este não é apenas o da Junta Autónoma das Estradas, mas também o do quartel da Pontinha.
Outro, de quem não tive tempo para ligar a cara ao nome, comentando as eleições norte-americanas, decidiu insultar Eanes, para elogiar Soares, dizendo que este último era viajado e que o primeiro era um grunho provinciano por ainda falar à maneira de Alcains, talvez sem saber que ele passou grande parte da sua vida activa entre Macau e África, acabando doutorado, sem ser "honoris causa", por Navarra.
Apenas concluo como, trinta e picos anos depois , os eternos clérigos, a partir dos seus novos púlpitos, brincam à demagogia, sem o mínimo de "docta ignorantia", decretando que "todo o mundo" é "o ninguém" das suas próprias opiniões que, afinal, não têm a humildade desse esforço assente na comunhão dos que pensam de forma racional e justa e preferem o conhecimento modesto sobre coisas supremas, em vez do conhecimento supremo sobre banalidades das noites da má língua.
E assim dominam os pretensos antidogmáticos carregados de neodogmatismo e os pretensos tolerantes prenhes de antitolerância e até de racismo social, só porque confundem a luta de classes na teoria com a velha luta de invejas. E quase todos reconhecem que as velhas nações da velha Europa estão dependentes da campanha eleitoral que grassa na república imperial, acreditando no D. Sebastião Obama ou no sucedâneo da Hilária. Por mim, diz-me a história, que, no dia seguinte, pode acontecer novo desembarque frustrado na Baía dos Porcos ou a "tarefa-força" de uma "Blitzkrieg" no neovietname, como diz um guru kissingeriano e talleyrandista que por aí nos lobiza...
11.2.08
Contra os que ameaçam transformar a democracia numa democratura
De guia de marcha para Coimbra, onde irei, de tarde, fazer uma arguição doutoral, apenas confirmo que há inúmeras semelhanças entre o aqui e agora e as vésperas do 28 de Maio.
Não por causa da tropa e dos golpes de Estado à procura de autor, mas porque o sitema partidário continua enredado entre bonzos, endireitas e canhotos, mas com o permanecente imobilismo sistémico, de partidos de Estado num Estado de Partidos, com uma classe média entalada, entre a bigorna das forças vivas e o martelo da explosão social. As forças vivas, marcadas pelo poder banco-burocrático, continuam à procura de feitores de ricos.
Os aparelhos de Estado, enredados pela ditadura da incompetência, vivem dos restos da tensão entre o partido dos fidalgos da partidocracia e o partido dos tecnocratas, com o partido dos becas à espreita e o partido da tropa já sem balas. Poucos reparam que nunca poderia haver 28 de Maio, 5 de Outubro ou 25 de Abril.
A maioria dos factores de poder já não são nacionais e falta o messianismo da pátria em perigo. Descansem, pois, partidocratas, burocratas e patrões.
A presente decadência tem todas as condições para manter o situacionismo por mais largos anos, sem qualquer explosão social. Entre fantasmas de direita e preconceitos de esquerda, lá iremos sem cantar nem rir, porque a maioria dos meus concidadãos, apesar de ter a bala do voto, sabe que apenas a pode meter naquelas espingardas onde o tiro sai pela culatra.
Porque, entre Sócrates e os oposicionistas feitos à respectiva imagem e semelhança, venha o Diabo e escolha.Porque não vale a pena continuarmos a escolher o "do mal, o menos". vale mais dizermos, com toda a frontaldade, que não nos revemos nestas alternâncias que ameaçam transformar a democracia numa democratura.
Não por causa da tropa e dos golpes de Estado à procura de autor, mas porque o sitema partidário continua enredado entre bonzos, endireitas e canhotos, mas com o permanecente imobilismo sistémico, de partidos de Estado num Estado de Partidos, com uma classe média entalada, entre a bigorna das forças vivas e o martelo da explosão social. As forças vivas, marcadas pelo poder banco-burocrático, continuam à procura de feitores de ricos.
Os aparelhos de Estado, enredados pela ditadura da incompetência, vivem dos restos da tensão entre o partido dos fidalgos da partidocracia e o partido dos tecnocratas, com o partido dos becas à espreita e o partido da tropa já sem balas. Poucos reparam que nunca poderia haver 28 de Maio, 5 de Outubro ou 25 de Abril.
A maioria dos factores de poder já não são nacionais e falta o messianismo da pátria em perigo. Descansem, pois, partidocratas, burocratas e patrões.
A presente decadência tem todas as condições para manter o situacionismo por mais largos anos, sem qualquer explosão social. Entre fantasmas de direita e preconceitos de esquerda, lá iremos sem cantar nem rir, porque a maioria dos meus concidadãos, apesar de ter a bala do voto, sabe que apenas a pode meter naquelas espingardas onde o tiro sai pela culatra.
Porque, entre Sócrates e os oposicionistas feitos à respectiva imagem e semelhança, venha o Diabo e escolha.Porque não vale a pena continuarmos a escolher o "do mal, o menos". vale mais dizermos, com toda a frontaldade, que não nos revemos nestas alternâncias que ameaçam transformar a democracia numa democratura.
6.2.08
A ortodoxia da heterodoxia, a fé da heresia criativa e o dogma do antidogmatismo.
Chegou ao fim de um certo princípio o blogue de um companheiro de muitas ideias e outros tantos combates que sempre preferiu manter o anonimato e que, por isso mesmo, nunca me permitiu que, neste espaço, com ele dialogasse, porque o não faço com heterónimos nem com teorias da conspiração, em nome daquilo que considero ser a deontologia da blogosfera. Claro que o companheiro em causa que, depois de muitas insinuações, acabou por ter a honradez de se me revelar, vai, dentro de pouco tempo, mudar de heterónimo, ou mostrar o nome próprio, porque, mesmo com o registo civil ou baptismal que transportamos, podemos ter uma sobrelinguagem. Apenas acrescento, como tu sabes, que és daquela meia dúzia de pessoas a quem eu, na quotidiana vida social e profissional, trato mesmo por tu.
Por isso não serei dos que, ao heterónimo anónimo, lhe fazem o discurso fúnebre da despedida, bastando um mero adeus, até a um breve regresso. Há uma certa comunhão de coisas que se amam, nomeadamente uma certa ideia de Portugal, que impõe sujarmos as mãos no risco do combate pelos valores, sem sectarismo e sem a habitual sucessão dos congreganismos. E mesmo os ortodoxos têm a angústia de não conseguirem ser, com nome próprio, ortodoxamente heterodoxos. Por outras palavras, os sucessores da pátria de Vieira só têm a ortodoxia da heterodoxia, a fé da heresia criativa e o dogma do antidogmatismo.
"Le refus de la politique militante, le privilège absolu concédé à la littérature, la liberté de l'allure, le style comme une éthique, la continuité d'une recherche" não pode ceder aos congreganismos e aos seus irmãos-inimigos anticongreganistas, meu caro "Je mantiendrai". E nós que, em termos de carimbo, estamos em aparentes campos inimigos, sabemos que somos irmãos naquilo que vai além das confrarias. Até porque nos cabe a missão de servir, sem procuraramos aquelas honrarias que matam a honra e aqueles academismos que matam a academia. Porque ainda há quem, sendo jovem, quer continuar a viver como pensa, sem pensar sequer como depois vai viver. E é para essas correntes que nos ultrapassam que temos o dever de servir as instituições que têm ideia de obra, regras de Estado de Direito e manifestações de comunhão.
Claro que o meu companheiro me acusa de milenarista, tal como eu te poderia acusar de seres mais católico do que cristão, como diria Comte, nesta pátria onde os ortodoxos acabam, quase todos, como o ex-anarquista, ex-republicano e futuro monarquista autoritário, Alfredo Pimenta, a sofrerem notas pastorais do Cardeal Cerejeira, onde cada um deles vai lendo a última pé-de-página do manual daqueles inquisidores que levaram Filipe II a ter que mandar o Santo Ofício condenar o padreca, autor daquele sermão que, do púlpito, pediu mais absolutismo para o filho de Carlos V. Só que, aqui e agora, não vale a pena discutir o sexo dos anjos, quando a cidade já está sitiada nas suas entranhas.
Se eu tivesse influência, nomear-te-ia para, ontem, fazeres um discurso sobre o nosso irmão Vieira, o do quinto-império, neste tempo de bebedeira dos poderes sem autoridade e dos autoritários empaturrados em salamaleques. Até te convidaria para que secretariasses o ministerial encontro do novo ministro dito da cultura com todos os antigos ministros do Antigo e do Novo Regime que ocupam os cadeirões daquilo que dizem a alta cultura institucional, e que são quase todos da estirpe dos buissidentes, dos tais que não compreendem que "vencer é ser vencido" e que só vencem os chamados "vencidos da vida" que ousam "a esperança dos desesperados".
P.S. Repara como, hoje, vai ser difícil ao habitual espião de serviço, cumprir a habitual folha do carreirismo, levando a fotocópia deste "postal" ao "big brother", no seu pidismo de altas esferas congreganistas...
Contra os que acreditam nas regenerações vindas da cavalariça ou da sacristia...
Por razões profissionais, isto é, na preparação de uma arguição de doutoramento, tenho voltado a analisar pausadamente o ambiente de decadência que tanto levou ao assassinato da monarquia como ao suicídio da república, dado que o Estado Novo, porque nunca existiu, sempre esteve dependente de uma constipação mal tratada e acabou por cair com o simples estatelar de uma cadeira, numa varanda voltada para o mar. Por outras palavras, o artigo de Garcia Leandro já foi muitas vezes escrito, muitos anos antes da morte por dentro dos regimes. O reconhecimento da imoralidade de algumas circunstâncias da plutocracia e da incapacidade de autoregeneração dos nossos bonzos, endireitas e canhotos faz parte da rotina analítica dos que não bebem do fino, que constituem a maioria das nossas elites.
Tal como nas vésperas do 5 de Outubro, do 28 de Maio e do 25 de Abril, um quarto de hora antes de morrer, o nosso querido regime ainda está vivo, ainda é uma espécie de magazine. Só que pode continuar vivo por largos anos. A monarquia ainda viveu de 1891 a 1910. A Primeira República, desde a Noite Sangrenta de 1921 ao 28 de Maio de 1926. E o Estado Novo, desde as eleições de Delgado de 1958 até aos cravos de 1974. Agora, a coisa vai ser mais longa, até porque a maior parte dos nossos factores de poder já não são nacionais.
E ninguém espere que, da cavalariça, possa emergir um qualquer general. Ou que, da sacristia, nos possa ser remetido um qualquer cardeal, com a sua ditadura das finanças. Os últimos dois benzidos que, da finança, nos vieram, um deu em jardim com caruncho da madeira e outro foi-se, em aposentadorias, para presidente da ... causa monárquica.
Vale-nos que Zé Miguel Júdice veio alertar-nos para a possibilidade de Marinho Pinto ser o candidato presidencial dos canhotos contra Cavaco, a não ser que ele próprio, também na qualidade de ex-bastonário, se apresente pelos endireitas, mas com o apoio dos bonzos de Sócrates, contra Marinho. Até porque o primeiro-ministro deste nosso desgraçado país onde ninguém a ninguém admira e todos a determinados idolatram (Almada dixit), depois de ter reparado que a luta de invejas substituiu a luta de classes, tratou de copiar os actos do Casino do Estoril, que comprou dois pareceres contra a Direcção-Geral de Saúde, e recorreu a mais um dos catedráticos de direito administrativo, para pedir parecer sobre os respectivos mamarrachos arquitectónicos, já que os doutos de Coimbra parece que tinham sido mobilizados pelo LNEC, para a questão do aeroporto de Alcochete.
Consta que o Ministro das Universidades já mandou a Procuradoria-Geral da República investigar sobre a possibilidade de acumulação desta parecerística com o subsídio sobre a exclusividade de funções docentes. Até porque Manuel Alegre continua a produzir livros de poesia em idênticas circunstâncias...
4.2.08
Mais um justo indisciplinador: o general Garcia Leandro
O modo como se tem desenvolvido a vida das grandes empresas, nomeadamente da banca e dos seguros, envolvendo BCP e Banco de Portugal, incluindo as remunerações dos seus administradores e respectivas mordomias, transformou-se num escândalo nacional, criando a repulsa generalizada.
É consensual que o país precisa de grandes reformas e tal esforço deve ser reconhecido a este Governo (mesmo com os erros e exageros que têm acontecido).
Alguém tinha de o fazer e este Governo arregaçou as mangas para algo que já deveria ter ocorrido há muito tempo. Mas não tocou nestes grandes beneficiários que envergonham a democracia, com a agravante de se pedirem sacrifícios à generalidade da população que já vive com muitas dificuldades.
O excesso de benefícios daqueles administradores já levou a que o próprio Presidente da República tivesse sentido a obrigação de intervir publicamente.
Mas tudo continua na mesma; a promiscuidade entre o poder político e o económico é um facto e feito com total despudor.
Uma recente sondagem Gallup a nível mundial, e também em Portugal, mostra a falta de confiança que existe nos responsáveis políticos deste regime.
Tenho 47 anos de serviço ao Estado, nas mais diferentes funções de grande responsabilidade, sei como se pode governar com sentido de serviço público, sem qualquer vantagem pessoal, e sei qual é a minha pensão de aposentação publicada em D.R.
Se sinto a revolta crescente daqueles que comigo contactam, eu próprio começo a sentir que a minha capacidade de resistência psicológica a tanta desvergonha, mantendo sempre uma posição institucional e de confiança no sistema que a III República instaurou, vai enfraquecendo todos os dias.
Já fui convidado para encabeçar um movimento de indignação contra este estado de coisas e tenho resistido.
Mas a explosão social está a chegar. Vão ocorrer movimentos de cidadãos que já não podem aguentar mais o que se passa.
É óbvio que não será pela acção militar que tal acontecerá, não só porque não resolveria o problema mas também porque o enquadramento da UE não o aceitaria; não haverá mais cardeais e generais para resolver este tipo de questões. Isso é um passado enterrado. Tem de ser o próprio sistema político e social a tomar as medidas correctivas para diminuir os crescentes focos de indignação e revolta.
Os sintomas são iguais aos que aconteceram no final da Monarquia e da I República, sendo bom que os responsáveis não olhem para o lado, já que, quando as grandes explosões sociais acontecem, ninguém sabe como acabam. E as más experiências de Portugal devem ser uma vacina para evitar erros semelhantes na actualidade.
É espantosa a reacção ofendida dos responsáveis políticos quando alguém denuncia a corrupção, sendo evidente que a falta de vergonha deve ser provada; e se olhassem para dentro dos partidos e começassem a fazer a separação entre o trigo e o joio? Seria um bom princípio!
Corrija-se o que está errado, as mordomias e as injustiças, e a tranquilidade voltará, porque o povo compreende os sacrifícios se forem distribuídos por todos.
(Artigo do semanário "Expresso", há pouco traduzido para televisão, numa entrevista dada à SIC; é evidente que o meu general não só está bem informado como também não costuma sofrer da solidão da revolta... )
Revisitando o sonho dos jovens turcos, longe das procissões do Liechenstein
Tadic vence na Sérvia e, na Turquia, os ocidentalistas resistem, enquanto por cá tememos os Bai-tu-lá. Também o Sporting perdeu no Restelo e o Benfica empatou no que foi Luz, com lenços brancos para Camacho. Porque já ninguém discute a remodelação que levou ao poder mais um grão de areia da ala câncio do socratismo. Coisa que é directamente proporcional às manifestações misseiras neomonárquicas, parecidas com as nostalgias do principado do Mónaco ou os filmes a preto e branco de uma passagem de modelos na capital do Liechenstein. Todos continuam a confundir o povo com a criadagem e a caridadezinha, à boa maneira da secção gente fina do Clube de Fãs dos Gato Fedorento, que se diverte em jantaradas da classe A e B-alta da linha do Estoril.
A esquerda caviar e a direita neomonárquica adoram os que conseguiram sucesso negocista nos meandros da banca e do bolsismo, aqui e além enquadrados pela velha ortodoxia dos estalinistas e dos congreganistas, onde as obras e os retiros espirituais moderaram os vapores dos exaltados republicanos, ou dos extremistas revolucionários. Entre esta esquerda triunfante e esta direita ortodoxamente vaticana, há sempre ex-ministros de Estado, sejam de Salazar ou de Santana, ilustres advogados de negócios internacionais, ou comemorativos reitores e fardados académicos, para que se gaste tinta de caneta romba, entre pretensos cronistas-mores do congreganismo anti-reaccionário e do reaccionarismo anti-congreganista.
Fica sempre sem direito à moderação a larga planura dos cidadãos de bom senso, os tais que se sentem indiferentes perante as encenações do ódio e da teoria da conspiração, porque a realidade são ministros assinando trezentos despachos na véspera da saída do gabinete e outros tantos carregando toneladas de fotocópias submarinas. É por isso que, por estes dias, quase todos foram escrevinhadores feitos à imagem e semelhança dos sucessivos anais da revolução nacional, em espectáculos revisionistas. Porque as facções continuaram o tiroteio da guerrilha civil fria que nos continua a enregelar. Quase todos amealharão reais expectativas de melhor sustento nesta engenharia de cunhas, entre corretores e agências de viagens, com untado acesso e água benta nos restos das aposentadorias do sistema Metternich. Por isso, prefiro revisitar e apoiar o sonho dos jovens turcos...
1.2.08
Hoje, sinto-me incomodado com o funéreo dos comemorativismos
Hoje, sinto-me incomodado com o funéreo dos comemorativismos e o ridículo das bandas militares, onde não tem faltado o regresso à guerra civil historiográfica, revoltando-me os facciosismos, com tipos de esquerda, que a querem confundir com os republicanos, e tipos de direita, que a querem confundir com os monárquicos. Portanto, o que me apetece desabafar põe-me de mal com os monárquicos, oficiais e oficiosos, por amor da república, e de mal com os republicanos instalados, por amor do rei.
Porque, primeiro, continuo monárquico, sem precisar de pedir autorização aos candidatos a bobos da corte e aos habituais aristocretinos. Segundo, porque, para poder ser constitucional e liberalmente monárquico, tenho que ser republicano. Por outras palavras, primeiro está o pacto de associação, ou de sociedade ("pactum unionis") e só depois vêm os pactos de constituição e de governo, ou de sujeição. Primeiro, está a república, o Portugal dos Portugueses, e só depois vêm os acidentais regimes e as consequentes facções e partidos.
D. Carlos é mais do que a comissão oficial dos neocarlistas, encabeçada por republicanos de há mais de meio século militante, papistas oficiais, e banqueiros selados pela obra, grupo que é necessariamente parecido com a comissão oficial que prepara o centenário do 5 de Outubro. Aliás, grande parte dos notáveis poderia coincidir nas duas comissões, dado que muitos parecem exagerar em disputas sobre as literaturas de justificação dos respectivos situacionismos e dos subsequentes revisionismos históricos das autobiografias em prelo e prelaturas.
Por mim, acho que o rei e o príncipe real mereciam que, a propósito do respectivo assassinato, não enterrassem mais uma vez a monarquia, à imagem e semelhança da primeira decisão do governo presidido por Salazar, quando determinou funerais de Estado para D. Manuel II. Recordemos, sem facciosismo:
Na habitual recepção de gala no Paço, não comparecem os marechais regeneradores e progressistas (1 de Janeiro de 1908). O rei, em Vila Viçosa, caça; o João Franco, em Carnide, dorme com a casa cercada de polícia. Fala-se em conspirações, na tropa, em transferências de oficiais e sargentos. Chegam alguns a dizer: venha tudo, venha o pior, venha o diabo do Inferno que nos livre disto (Raul Brandão). Reunião dos marechais progressistas, tendo em vista a escolha das listas de deputados (dia 6). Reunião dos marechais regeneradores (dia 11). Aquilino Ribeiro consegue evadir-se da cadeia do caminho Novo, onde se encontrava detido, condenado ao presídio de Timor (dia 12).
Começa a circular o livro de António de Albuquerque, O Marquês da Bacalhoa, com insinuações reles sobre a Rainha D. Amélia (15 de Janeiro). O autor, de família miguelista, perseguida pelos pedristas, terá aderido aos republicanos como vingança, segundo a técnica dos extremos que se tocam.
D. Carlos visita Évora. Várias prisões de jornalistas, acusados de conspiração, nomeadamente de França Borges e João Chagas. Suspenso um jornal progressista na Guarda (21). Prisão de António José de Almeida (26). Consta publicamente que a revolução vai estalar dentro de dois dias. Um polícia aliciado pelo João Chagas, denunciou a revolução; o juiz, ao ler o depoimento do António José de Almeida, exclamou: Ora até que enfim encontro um homem! (Raul Brandão).
Partido Republicano emite um manifesto, redigido por Bernardino Machado, onde, reconhecendo o ambiente de sobre-excitação, apela contra a ditadura, em nome da alma livre e heróica do povo português (dia 27).
A atmosfera é eléctrica...toda a gente espera acontecimentos. O boato corre de ouvido em ouvido...Há nervos na atmosfera. A questão dos adiantamentos levantou todo o País contra o rei. Há muito que D. Carlos é visado, discutido e injuriado. Atribuem-lhe todos os males...E, no entanto, a vida segue o seu curso habitual: todas as noites enchentes nas revistas...Todas as noites o mesmo falatório no Rossio, o mesmo formigueiro humano seguindo as suas manias, as suas ambições, os seus interesses (Raul Brandão).
Jugulada conspiração que se conjugara entre dissidentes progressistas e republicanos. São presos vários líderes da revolta como Luz de Almeida, Afonso Costa, Egas Moniz, Pinto dos Santos, Ribeira Brava e João Chagas, nas dependências do ascensor do largo da Biblioteca.
A Carbonária mobiliza cerca de oito mil membros em Lisboa e dois mil na Outra Banda, tendo entrado em contacto directo com o PRP a partir do Outono de 1907 (28 de Janeiro). Luz Almeida é particularmente eficaz quanto à organização dos bombistas, a chamada artilharia civil; António José de Almeida tem entendimentos com o exército e até com os anarquistas.
Decretada a prisão de José de Alpoim e João Pinto dos Santos. Suspensos cinco jornalistas, mas apenas um é republicano (29 de Janeiro de 1908). Alpoim e o visconde de Pedralva (Francisco Coelho Amaral Reis), depois de se refugiarem em casa de Teixeira de Sousa, fogem. Alpoim vai para Espanha, instalando-se em Salamanca. A revolta é jugulada graças à acção do general Malaquias de Lemos. Chega a haver desordens no Largo do Rato.
Os jornais franquistas Diário Ilustrado e Jornal da Noite dão conta dos acontecimentos, referindo que João Franco degolara um novo 31 de Janeiro. O ministro Teixeira de Abreu parte para Vila Viçosa, onde tem um encontro com D. Carlos. Regressará a Lisboa na madrugada do dia 1, antes do rei, a fim do rei assinar um decreto com medidas excepcionais de luta contra a subversão, onde se prevê, nomeadamente a expulsão do reino e a deportação para o Ultramar de quem atente contra a segurança do Estado..
Está uma tarde linda, azul, morna, diáfana... O rei e a rainha detiveram-se uns minutos, com o João Franco e o Vasconcelos Porto, que queria mandar vir um esquadrão de cavalaria para acompanhar o rei. D. Carlos opôs-se. O carro descoberto partiu a chouto, com toda a família real junta... (Raul Brandão).
D. Carlos e D. Luís Filipe são assassinados numa esquina do Terreiro do Paço, depois de desembarcarem no cais das Colunas, vindos de Vila Viçosa, donde saem às 11 horas do dia 1 de Fevereiro. Os executantes são Manuel Buíça e Alfredo Costa. D. Maria Pia acusará João Franco de ser o coveiro da monarquia. Júlio de Vilhena logo declara querer um armistício na luta política dos partidos. Os tiros no rei e no príncipe real matam o próprio sistema político e anunciam o fim da monarquia. O jogo rotativista conduzira à tragédia. O salto em frente de João Franco acelerara o processo. Começa em tragédia o breve reinado de D. Manuel II. Entre os pistoleiros que premiram o gatilho e o ente, individual ou colectivo, que mandou matar ficará para sempre a distância do sigilo e eventuais razões se seita, partido, Estado ou potência. Sempre aquela lógica terrorista que proclama haver actos de violência que são menos violência que certos estados de violência.
O monárquico Carlos Malheiro Dias, na revista Ilustração Portuguesa, considera que quem criou a revolução foi, de facto, o Governo. O problema político era puramente administrativo. O governo, imprudentemente, transformou-o numa questão de princípios. Uma ditadura à Mouzinho da Silveira podia tê-lo resolvido. O Governo fez uma ditadura à Costa Cabral. Tendo por si a força, não lhe seria desairoso contemporizar. Em vez de acalmar as paixões, excitou-as...
Se os republicanos dispararam as espingardas, quem as carregou até à boca foram os rotativos (José Agostinho). Como vai reconhecer, depois, Machado Santos, tal acto foi levado à prática por estes homens, por um acto de abnegação espontânea. Se soubesse, a tempo, o que os dois haviam feito, tê-los-ia secundado à frente do corpo de marinheiros, mas só o soube quando todas as precauções se haviam tomado no quartel (artigo de 21 de Janeiro de 1911, publicado no Intransigente).
Nesse domingo, Lisboa tornou-se num túmulo e num deserto, a monarquia sangrentamente ferida e a república sinistramente desacreditada (José Agostinho). Raúl Brandão observa: se seis tambores fossem rufar para diante do Paço, a monarquia acabava ali mesmo. Como observa Lopes d’Oliveira, estaladas as raízes levarão ainda algum tempo a apodrecer no sangue e na lama... a Monarquia, se vive, é como prisioneira da República.
José Luciano declara que convinha agora é a paz e a união dos partidos. Júlio Vilhena secunda a ideia de um governo de concentração monárquica. Todos dizem querer acalmar o espírito público. Mas como depois vem a reconhecer o último, a união de todos em volta do trono é a política do medo... Essa política prevaleceu sempre no Paço até ao dia 5 de Outubro.