Sobre o tempo que passa
Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...
31.10.07
Hoje não vou falar nos meandros da discussão política sobre o referendo, na tarde que ontem passei na Assembleia da República, onde, com o meu decano e outro colega, em representação de mais colegas, fomos recebidos por uma comissão parlamentar, onde expusemos a nossa sede de justiça, porque os jornais já começaram a revelar o silenciamento. Prefiro recordar o fim de semana de azeitona, perto de Vale de Lobos e continuar a procura da estrela do Norte que nos dá coisa pública.
Porque a recuperação dos mitos do processo histórico e das utopias pretensamente anti-utópicas de um fim da história não passam de meros fragmentos da eterna literatura de justificação que sustenta aqueles situacionismos que negam a força subversiva da justiça, proibindo a procura das energias libertadoras dos ideais históricos concretos, daquele direito racional de conteúdo variável que reconhece os realismos idealistas, segundo os quais as essências só se realizam na existência dos homens concretos, de carne, sangue e sonhos. Isto é, daqueles indivíduos sem os quais não há pessoas, as tais máscaras de teatro da vida, onde o nós precede o eu.
Confesso que me mantenho firme no humanismo cosmopolita de Kant, nas concepções do "Verstehen" neokantiano e nas sementes lançadas por Woodrow Wilson, para quem o direito é superior à paz dos soberanismos e dos Estados em Movimento, cuja dinâmica é susceptível de provocar a paz dos cemitérios, incluindo daqueles pós-totalitarismos e pós-autoritarismos que não põem a lei acima do regulamento, o direito acima da lei e a justiça como chave da abóbada que deve mobilizar tanto o direito como a política.
Porque sem essa estrela do Norte, as ordens estabelecidas podem ser meras desordens instaladas, sem que se permita a necessária mobilização pela justiça, sem a qual não há civismo nem sequer coisa pública. Sem essa "Grundnorm" que propicias a necessária "peace through law", para utilizar palavras de Kelsen, podemos ter Estados, mas não teremos Direito nem poderemos atingir a complexidade do Estado de Direito.
Por isso, considero que a Europa tem de rimar com liberdades nacionais, pelo que um federalista também pode ser nacionalista e um defensor da unidade da república assumir a necessidade da regionalização política. Para que se mantenha a tensão criadora da unidade e da diversidade e para que a liberdade como libertação exija o estádio de uma emergência que permita novas divergências e novas convergências.
Porque é urgente que se retome a dialéctica clássica onde não se procure aquela superação sintética onde um dos termos não tem que aniquilar o outro, quando um deles se configura como silogística tese, destinada a combater o irmão-inimigo de uma endeusada, ou diabolizada, antítese. Por isso é que fui apanhar azeitona. Num intervalo filosofante, como a fotografia demonstra.
30.10.07
De complexione quae fit concursu primae...ou mens agit molem
Um altíssimo dignitário da eurocracia, ex-comissão, ex-MNE de um pequeno Estado, o nosso, donde também foi ilustre ministro educativo e reitor de universidades, uma pública e outra privada, utilizando os axiomas da ciência exacta de que é especialista, veio decretar, do alto da suas circulações e tacadas cortesãs, que os referendos a tratados europeus não são democráticos, insinuando que quem está contra o acordo do Mar da Palha quer que Portugal abandone a União Europeia.
Recordo-me de uma conversa com ele tive, em grupo, quando ele nos comissionava em Bruxelas e não gostou das minhas provocações federalistas e nacionalistas, quase me alcunhando como tolinho que não conhecia as leis da Razão de Estado, isto é, do pensamento único e das modas que passam de moda, de que ele era, e é, um dos máximos representantes situacionistas. Na altura ainda não era do PPE, cavaquistava...
É verdade que qualquer constituição é tão complexa que sempre precisa de constitucionalistas e tribunais que possam decretar inconstitucionalidades, emitidas pelo poder. Tal como a democracia é tão complexa que há séculos a vamos teorizando, sem nunca chegarmos ao fim da história. Daí que também o seja o Estado de Direito, onde não vigora a regra segundo a qual "in claris non fiat interpretatio". Todas estas entidades, com efeito, não conseguem ser captadas pelos conceitos operacionais da ciência química. Porque esse objecto material chamado povo apenas se deixa compreender por uma complexa alquimia de conceitos empíricos e de conceitos abstractos, apenas nos deixando espaço para meros indicadores.
Para a democracia, sempre foi má conselheira a tolice da sofocracia, especialmente quando os pretensos sábios se decretam a si mesmos como aderentes a um clube de reservado direito de admissão. A democracia implica a complexidade crescente da cidadania e as repúblicas são melhores quando permitem um regime onde um mais um são mais do que a mera soma quantitativa das respectivas parcelas. Porque a mobilização da unidade e da diversidade pode fazer aumentar as forças, pela técnica do "e pluribus unum".
Quando um ministerial e reitoral catedrático de laboratoriais provetas nos quer dar música sobre o tratado do Mar da Palha, apenas podemos concluir que a respectiva palha propagandística é típica desses intermediários representativos que, ao assumirem-se como os monopolistas da voz da Europa e do nosso próprio futuro, deveriam ser despedidos por justa causa, porque o representado sempre foi superior ao representante. Os erros filhos da pauta podem dar origem a desagradáveis fífias.
Especialmente quando o representante procura, com silogismos, transformar os cidadãos em inferiores homens comuns, os tais que não podem aceder ao que qualifica como complexidade, mas que não passa de mero segredo da Razão de Estado, só porque alguns supranacionais políticos dizem deter os mecanismos da "inside information", nomeadamente por conversas e telefonemas que dizem manter com chefes de governo.
Porque nunca de forma tão despudoradamente antidemocrática tinha sido emitida esta opinião que decreta a "vox populi" como inimiga da "vox dei", prenunciando um projecto de governação de um rolo compressor, pelas pretensas elites que como tal se assumem só porque circulam provincianamente pelas corredores dos grandes deste mundo. Aliás, basta consultarmos um artigo publicado no D.E. por um consultar de Barroso, para ficarmos esmagados: quem defende os referendos é adepto de Hitler... (aliás, como Hitler também começou por ser eleito em democracia e se dizia o máximo representante do povo, para a construção de uma certa Europa, podemos dizer que todos os democratas, todos os povofílicos e todos os europeístas só não serão hitlerianos se obedecerem aos conselheiros que estão no poder de Bruxelas...).
Porque não parece que só alguns donos do poder invisível possam decretar como passíveis de punição herética todos os que duvidem da justeza da respectiva iluminação. Porque o povo, como um todo, institucionalmente posto em referendo, não pode ser algo de inferior aos representantes do todo, quando eles, depois de serem escolhidos para o cumprimento de um determinado programa, viram o bico ao prego.
Pelo menos, Sócrates ainda não disse tudo. Apenas argumentou que o respectivo compromisso eleitoral se baseou noutras circunstâncias. Resta saber se o "sic rebus, sic stantibus" o levará a concluir pelo habitual "lixem-se os dedos dos princípios, para que salvemos os anéis das negociações diplomáticas".
Os habituais adversários da democracia são precisamente os que consideram o povo incapaz de decidir altos assuntos do estadão, especialmente quando o mesmo povo pode não aceitar as regras do jogo da ditadura dos perguntadores de um referendo. Como se não estivesse em causa o destino da nossa casa comum, uma questão vital que não pode ficar dependente do clube de reservado direito de admissão, onde se sentaram certos tecnocratas disfarçados de políticos.
Não me parece que o antigo sucessor do Professor José Júlio Gonçalves na reitoria da Universidade Moderna tenha pergaminhos de formação académica que o habilitem para a condição técnica de internacionalista ou de constitucionalista. Ele apenas acedeu à tal complexidade do tratado do Mar da Palha como profissional da política, esse especialista de assuntos gerais que percebe de tudo um pouco, embora não tenha que perceber nada de nada. Não passa de mero homem comum elevado a representante de um povo pouco apto para questões complexas, mesmo que tenha passado a beber do fino, mas que não o exime de poder ouvir do grosso, dos tais homens comuns que, se têm o poder de sufrágio, não podem receber do eleito o arrogante do desprezo.
29.10.07
Para voltarmos a ser povo, com coluna vertebral!
Depois de mais um fim de semana de apanha da azeitona, lá para o Vale de Santarém, com memórias de Alexandre Herculano, regresso à pesquisa das novas do dia. Noto que, na Argentina, volta a ser eleito para a presidência um candidato peronista, Cristina Kirchner, assim continuando vivo um "pós-fascismo", tão pouco politicamente correcto quanto a beatificação de 498 mártires espanhóis da guerra civil, tão mártires quanto os milhares e milhares de mártires do outro lado, que uns chamam "rojos" e outros, "republicanos", tal como os vencedores se dizem do "grupo nacional", ou são demonizados simplesmente como "fascistas", como se todos estes nomes correspondessem às coisas nomeadas, especialmente quando continuam as guerras civis frias.
Por cá, reparo que, na sexta-feira, foram reabertas as feridas não saradas da pedofilia que gravita em torno do escândalo da Casa Pia, com intervenções de Pedro Namora nas televisões. Namora é um comunista ortodoxo, tal como Balbino Caldeira é um militante da direita do PSD. Ambos costumam colocar Sócrates e a esquerda do PS como inimigos principais das suas causas globais. Tal como Catalina Pestana, na sequência de José Maria Martins, sofrem de velhos complexos anti-maçónicos, enquanto Felícia Cabrita mantém o estilo de jornalismo MRPP.
Todos denunciam uma conspiração pedófila que se estruturou como rede, embora todos tenham variadas origens e contraditórias concepções do mundo e da vida. Todos invocam uma moralidade, a que qualquer homem de boa vontade adere, seja comunista, direitista, maçon, católico, socialista, social-democrata ou liberal. Quase todos vivem em desencanto, quando reconhecem que os mecanismos policiais e judiciais do Estado a que chegámos não consegue escrever justiça por linhas tortas. Porque nem sequer ainda conseguiu vislumbrar com recortes de eficácia as pontas visíveis do "iceberg" da pedofilia.
Por mim, apenas reparo que seria bem melhor não inventarmos o que já está inventado nem descobrirmos o que já está descoberto. Seria mais prudente passarmos os olhos por processos paralelos, ocorridos no nosso tempo, por outros universos político-culturais um pedacinho mais pluralistas e mais liberais. Por exemplo, a atitude tomada por certos segmentos da Igreja Católica norte-americana, onde a resposta moral da sociedade e o reconhecimento institucional da Igreja foram bem além da resposta judicial, sem contabilizarem tantas manobras dilatórias, habituais nos processualismos, e sem deixarem de enfrentar os casos formalmente prescritos.
Também por lá, os grupos de pressão denunciantes exageraram em teorias da conspiração. Só que, nessas paragens, a sociedade civil não esperou que a culpa morresse solteira. Indignou-se e utilizou a moral social para colmatar as lacunas do juridicismo, do policiesco e do judiciesco, não deixando que tais atentados contra a dignidade concreta das pessoas concretas caíssem neste ambiente de hipocrisia e de "voyeurismo", onde muitos se excitam com os "vícios privados" dos que ostentam "virtudes públicas".
Por outras palavras, temos os polícias e os magistrados que merecemos, tal como temos um governo adequado ao povo que o elegeu. Porque pedimos ao direito que faça moral e aos políticos profissionais que monopolizem a opinião pública. A culpa não morre solteira. O culpado somos nós, o tal povo que não se indigna. Nem sequer exige a alguns políticos, eleitos metapoliticamente, como o Presidente da República, que, federando homens de boa vontade, impulsione a sociedade dos homens livres, para a criação de uma espécie de comissão de honra, verdade e inteligência que exercesse missão idêntica às que, outrora, emitiram relatórios sobre as sevícias, abrangendo todas as instituições afectadas pelas redes pedófilas, laicas ou eclesiásticas, da direita ou da esquerda. Para voltarmos a ser povo, com coluna vertebral.
26.10.07
Pensar a escola livre, em dia de cimeira russo-europeia
O Braga empatou, Putine faz cimeira com a UE em Mafra, e a nossa sondajocracia mostra que o PPD da liderança tricéfala já está em empate técnico com o PS de Sócrates, que atinge a pior marca de sempre nos últimos dois anos. Grão a grão, a galinha da alternância vai enchendo o papo da revolta, apesar dos êxitos da política externa e do esquecimento do complexo de Churchill. Ainda ontem, senti esse ambiente na sessão do Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado, para a qual fui convidado a proferir uma comunicação, onde versei o problema do micro-autoritarismo subestatal e onde tive a honra de recordar que fiz parte da geração fundadora da mesma entidade.
Tal como esta semana, nas andanças da reforma da Universidade Técnica de Lisboa, voltei a notar como cresce a reacção contra as intenções reformadoras de Mariano Gago. Lá assumi a minha função discursiva de senador eleito, por entre a floresta dos inerentes e foi-me dado concluir que as boas intenções da lei, porque não foram recebidas, em confiança, pela comunidade dos académicos, vão cair nas teias reaccionárias do neocorporativismo e do neofeudalismo. Darei mais pormenores quando a procissão sair do adro das jogadas politiqueiras e das manobras de RGA, mas, desde já, se nota que Gago não vai conseguir o estatuto de Veiga Simão e não conseguirá a "révolution d'en haut", pelo menos na sua universidade que, por acaso, também é a minha.
De facto, na minha casa, a única universidade que veio da sociedade civil para o Estado e que antes de receber o decreto estadual criador já existia no terreno, nalguns casos há quase cem anos, como a Escola de Veterinária, verifica-se como o célebre RJIES se mostra totalmente incompatível com instituições não pombalinas, onde deveria cultivar-se a atitude federalista e o efectivo pluralismo. Governar entidades complexas com ditaduras maioritárias de grandes eleitores, marcados pela hierarquia das potências, onde nem sequer há equilíbrio das relações em eixo, pode ser transformar as pequenas e médias escolas em mera margem que sofre os efeitos das lutas de facções da que replica a ideia de república imperial, porque é efectivamente a superpotência que resta.
Entre a unidade e a diversidade, entre a convergência a divergência, um dos termos não tem que eliminar o outro, se assumirmos a complexidade crescente das emergências criativas. Sempre desconfiei dos decretos estaduais, incluindo os despachos e os regulamentos assentes em deliberações de febris RGAs, aliás idênticos aos baseados na peritagem de uma eventual junta de pensadores de regime, dado que as escolas livres sempre se mostraram rebeldes face aos modelos pombalinos e napoleónicos.
Porque é boa a escola que nasce de uma experiência da sociedade civil, para responder a desafios da realidade que afecta a própria existência da entidade política portuguesa. Desafio a que a universidade clássica às vezes não dá resposta, porque as circunstâncias correm mais depressa que os conceitos captados pelas enciclopédias do saber oficial ou oficioso, de matriz essencialmente juridicista.
Uma escola livre é marcada por esta ideia fundacional, desde que assum um reformismo gradualista, mais baseado nas circunstâncias do que nas iluminações de um centralismo oficiosamente reformador.
E se a escola livre quiser ser uma escola portuguesa, tem de ser fiel ao velho programa dos portugueses de Quinhentos, sempre procurou nacionalizar as tendências importadas. Isto é, se não quis inventar o que já estava inventado nem descobrir o que já estava descoberto, recorrendo aos estrangeirados, sempre os procurou integrar numa estratégia portuguesa, onde o crescimento tem de ser feito não só para o adiante, em termos quantitativos, mas também para cima e para dentro, em termos qualitativos, conforme o lema teilhardiano.
Por outras palavras, uma escola livre é a que sempre se praticou um reformismo gradualista e um crescimento a partir das circunstâncias, visando dar resposta aos desafios da realidade, principalmente do emprego. Mas crescendo a partir da base, isto é dos doutores disponíveis, da investigação praticada, do corpo docente gerado maioritariamente a partir da cultura organizacional da escola, de maneira a que a identidade própria da instituição fosse capaz de adequar-se à mudança.
Uma escola tem que ser uma efectiva instituição, dotada de uma ideia de obra, de regras próprias de processo e contando com uma efectiva adesão dos próprios membros. Vive-se uma comunhão de crenças, acredita-se numa identidade. Isto é, no âmbito de uma universidade, entendida como efectiva universitas scientiarum, procura-se o interdisciplinar e aquela aliança metodológica, que vai além da tradicional disputa entre as chamadas ciências da natureza e as chamadas ciências da cultura, naquilo que alguns qualificam como aliança metodológica meta-departamental.
Aliás, Portugal perderia se desaparecesse a concorrencialidade entre modelos de ensino, caso se optasse pela uniformização dos curricula, eliminando as diferenças, pelo recurso ao livro único de um modelo pombalista ou napoleónico. Uma boa instituição, tal como ideia de obra que lhe dá alma, tem de transformar-se numa criatura que se desenvolve através de uma lógica própria, adaptada às circunstâncias, num modelo de autonomia, com memória e com identidade, que a fez libertar dos próprios criadores.
É a partir desta experiência, do núcleo básico de desenvolvimento com autonomia, que a reforma tem de ser desencadeada, a fim de se garantir autonomia na própria área científica das relações internacionais. Isto é, um dos objectivos fundamentais da necessária reforma passa pelo reforço deste núcleo, sem que se exclua o recurso ao sociológico, ao antropológico, ao jurídico e ao económico. É o que tem sido feito. É o que pode ser incrementado.
O modelo português de universidade tem a ver com a estrutura e conjuntura do Estado e da Sociedade dos portugueses, no contexto da integração europeia, da globalização e da sociedade civil internacional. Somos um pequeno Estado e não podemos copiar os modelos dos médias e grandes potências. Aliás, se fizermos uma análise comparativa curricular, com entidades políticas próximas da nossa dimensão, encontraremos curiosas coincidências, da Áustria à Irlanda, da Finlândia à Catalunha e de muitas prestigiadas universidades norte-americanas.
O estilo das escolas universitárias que não se assumem como escolas de regime e que atendem essencialmente aos nichos de mercado não pode ser igual à das que pensam seguir a perfeição modélica. O Estado e a Sociedade dos portugueses são atípicos e os respectivos desafios só podem ser assumidos pela diferença. A Sociedade portuguesa, isto é, a vida concreta dos homens concretos, talvez não admita um profissional de relações internacionais idêntico ao que é produzido pelas grandes escolas das médias e grandes potências e das sociedades civis liderantes do processo da globalização. Outras são as circunstâncias portuguesas. Outras terão de ser as respostas curriculares.
A necessária reforma universitária, sem esquecer os princípios, também deve reconhecer que toda a racionalidade é complexa, que as essências só se realizam na existência e que os princípios só têm sentido quando são capazes de diálogo com as circunstâncias do tempo e do lugar.
25.10.07
Entre Putine e Gomes Freire, com tratantes à mistura
Passados os espumantes vapores da cimeira do Mar da Palha, onde os "tratantes", como lhes chama o meu amigo Augusto Vilela, nos trataram, regressámos a um quotidiano politiqueiro, onde quase todos glosam o chamado saneamento dos barrosistas pelos lopistas, com o PAR a perder o mais gamista dos sociais-democratas, o deputado José Luís Arnaut.
Com efeito, a tal Europa a que chegámos não passa de mera política internacional, onde os diplomatas são mais importantes do que os políticos e onde os tecnoburocratas controlam os próprios diplomatas. Melhor: é política internacional higienicamente afastada dos povos, talvez porque os chefes sabem que os povos já não confiam nos políticos, para que os políticos desesperem dos diplomatas, os quais, por seu lado, se pensam os únicos políticos profissionais, mas para que todos temam o excesso de poder dos funcionários.
Ficam os Gamas, os Arnaut e os Canas, pelo que a Europa deixou de ser um sonho, convertendo-se numa espécie de circuito integrado de alguns tratadores e tratantes, numa espécie de modo de vida neomaquiavélico, entre eurocratas, grupos de pressão e subsidiados, todos esquecidos da política como religião secular. É portanto natural que Putine chegue hoje a Lisboa e venha ao Palácio da Ajuda inaugurar a bela exposição dos czares no nosso Palácio da Ajuda, entre Pedro, o Grande, e Nicolau II, sem que trate de fazer "jogging" com o nosso Zé Sócrates, que bem lhe poderia oferecer um combate de judo em pleno Terreiro do Paço, ou uma colecção de escutas e recortes de jornais sobre as memórias sovietistas da política lusitana, com uma nota pé-de-ouvido sobre os meandros do afastamento da deputada Luísa Mesquita das bancadas de confiança política do PCP, comentadas pelos deputados do PSD Pedro Pinto.
Política internacional é não darmos todos os recortes da recente visita de Jaime Gama a Badajoz, onde deu um curso sobre "Imprensa e Política - De poder a poder" no âmbito do "Ágora - O Debate Peninsular", promovido pelo Gabinete de Iniciativas Transfronteiriças da Junta de Extremadura, mas onde não consta que tenha estado uma só autoridade política espanhola. Política internacional também seria José Sócrates oferecer a Putine uma biografia de Gomes Pereira Freire de Andrade e Castro (1752-1817), com textos de Raul Brandão.
O tal que tendo alcançado licença para servir no exército de Catarina II, em guerra contra a Turquia, partiu para a Rússia. Em São Petersburgo conquistou as maiores simpatias na corte e da própria imperatriz. Na campanha de 1788-1789, comandada pelo príncipe Potemkin, distinguiu-se nas planícies do Danúbio, na Crimeia e sobretudo no cerco de Oczakow, sendo o primeiro a entrar na frente do regimento quando a praça se rendeu em 17 de Outubro de 1788, depois de cerco prolongado. Praticou muitos actos de bravura, sendo aos 26 anos recompensado com o posto de Coronel do exército da imperatriz, que em 1790 lhe foi confirmado no exército português, mesmo ausente.
Política internacional seria Sócrates dizer ao novo czar que o mesmo Gomes Freire, foi um dos principais líderes da célebre "Légion Portugaise" de Napoleão e que esta também esteve na malograda entrada do usurpador na Rússia. E contar-lhe que, em 1816, o mesmo Gomes Freire, a quem chamávamos o general russo, foi eleito Grão-Mestre da Maçonaria portuguesa e tornou-se a «alma» de uma conspiração contra o Marechal Beresford, oficial que administrava Portugal sob mão de ferro e com a ajuda de um primo do grão-mestre, Miguel Pereira Forjaz , como se tratasse uma colónia inglesa, despertando grande descontentamento junto dos oficiais e intelectuais portugueses.
A 25 de Maio de 1817, em estado avançado dos preparativos da insurreição contra Beresford, Gomes Freire foi preso conjuntamente com outros 11 conspiradores, por denúncia de três maçons (três traidores, como na Lenda do 3.º grau...), José Andrade Corvo de Camões, Morais de Sarmento e João de Sequeira Ferreira Soares. Gomes Freire de Andrade foi enforcado por ordem do Marechal Beresford no cadafalso na Torre de S. Julião da Barra e os demais no Campo de Santana, hoje denominado, em sua memória, Campo dos Mártires da Pátria. Segundo narra Borges Grainha, um dia antes da execução um coronel inglês, Robert Haddock, visitou o Grão-Mestre na cadeia e ofereceu-lhe como irmão a oportunidade para a fuga. Gomes Freire recusou a oportunidade!
23.10.07
Querem que os conceitos se transformem em preceitos...
A manhã vai chegando à cidade. A rua está despertando. Abre o primeiro café. Passam os primeiros apressados. O tempo parece ameno. Vamos ter mais um dia de sol. E lá vou passeando pelos fragmentos do tempo que passa, sobretudo entre sinais que me dão semente de revolta. Por isso, pouco me importam os manifestos da liderança tricéfala do PPD, os barulhos que afectam o meu telemóvel, ou a entrevista que o director da PJ deu a um diário madrileno. Luís Amado já se manifestou contra o referendo.
São assim os noticiários do dia, em dias que não têm notícias. Quase todas as parangonas apenas esperam que as remetam para o armazém dos desperdícios. Porque a hiper-informação gera o vício da super-procura, entre a criação artificial de pretensos factos históricos e o consumismo deste império do efémero que é um império do vazio. Enquanto alguns produtores da informação criam as tais necessidades artificiais, muitos outros preferem ocultar a inside information, desviando as fontes vitais da dita para os rios subterrâneos, cuja rota controlam, ou ocultam, encenando soundbytes, com que se vai deleitando o Estado Espectáculo.
Apenas noto como os donos do europês começam a decretar que os defensores do referendo são uns perigosos anti-europeístas, só porque os engenheiros e arquitectos da super-estrutura institucional do OPNI (objecto político não identificado, na definição de Jacques Delors) querem que as regras processuais do mesmo sejam superiores às manifestações de comunhão dos cidadãos e à própria ideia de Europa como instituição. Por outras palavras: querem tapar com a peneira das cimeiras de chefes de Estado e de governo, precedidas pelas reuniões do PPE e do PSE, o sol das liberdades nacionais e a voz directa dos cidadãos. Querem que os conceitos se transformem em preceitos, nesta super-democracia sem povo que visa remediar as péssimas soluções da defunta convenção.
Desta forma, os grandes eurocratas correm o risco de lançar, para as garras do populismo anti-europeísta e para os manipuladores do descontentamento, segmentos fundamentais do eleitorado. O paradigma bismarckiano vencedor na cimeira do Mar da Palha, intrumentalizando a revolta gaullista do oui par le non, contra a Europa confidencial, gerou esta partidocracia global que corre o risco de levar os intermediários cimeiros das representações nacionais a perderem a legitimidade, embora mantenham a legalidade, nesse palco de abstracções, suceptível de se reduzir a mera teatrocracia de um império oculto.
Qualquer sondagem demonstra que a maioria dos povos europeus gostaria de pôr a funcionar a voz da Europa dos cidadãos, referendando os seus próprios destinos. A maioria dos seus governantes e comissários apenas quer conservar o poder pelo poder e chama a isso pôr a Europa a funcionar segundo o modelo dos Estados em Movimento. Para que os povos não venham a colocar inesperadas areias nas engrenagens, porque assim o murganheira poderia não fluir nas gargantas ao som de um restrito hino da alegria...
22.10.07
Da despolitização do Estado à democracia sem povo
Sócrates, o gajo porreiro que trata o presidente da comissão europeia pelo portuguesíssimo pá, tem que voltar a enfrentar as chatices domésticas, as tais que metem financiamentos partidários enevoados por irregularidades, fatinhas de felgueiras e toda uma federação de micro-autoritarismos subestatais que vão difundindo essa cultura de medo que sitia o estado de direito, o qual deixa de ser a necessária religião secular, passando a mera bola de bilhar que vai sendo arremessada pelo acaso dos poderes fácticos dos sempiternos donos do poder. Hoje, depois dos vapores da murganheira, já voltámos ao "day after" da falta de mobilização comunitária que não aguenta a liderança tricéfala do PSD (não esquecer as homílias semanais de Marcelo) nem entende a vitória dos meus irmãos liberais na Polónia.
Acontece que a unidade do Estado, em vez de federar a diversidade, fragmenta-se em neofeudalismos e neocorporativismos, directamente proporcionais à própria despolitização do Estado de uma democracia sem povo e de um direito sem justiça. Fica a pirâmide verticalista da máquina do poder pelo poder que não respeita os espaços de autonomia das sociedades imperfeitas que perdem a plenitude das matérias que dizem respeito à respectiva natureza, da família à universidade, passando pelos espaços associativos daquilo que se designa por sociedade civil.
Mais do que isso, os vários grupos se, pelo lado superior, caem nas teias do concentracionarismo, também se deixam enredar, pelo lado das bases, no antipolítico do regresso ao doméstico. Logo, é inevitável que se confunda autoridade com autoritarismo e superioridade hierárquica cm centralismo arrogante, assim se liquidando as necessárias autonomias das sociedades complexas.
Veja-se esta multiplicação de políticas (policies), sem que assentem numa pensada macropolítica, geradoras de uma desconexão fragmentadora, impossível de ser curada por celestiais planos construtivistas de um livro único de reforma estadual, como pretendeu configurar-se o PRACE.
Porque não pode reformar-se o Estado sem uma ideia de Estado. Porque não pode pensar-se o Estado sem uma ideia de sociedade. A mera aritmética quantitativista do menos ou mais Estado, ou do menos ou mais Sociedade, com que confundem liberalismos e socialismos, é péssima conselheira. Nenhuma destas caricaturas se compadece com a necessidade de, em primeiro lugar, se repolitizar o Estado, retirando-o da inércia moluscular em que se encontra.
Porque o corpo político, pleno de gorduras, bem precisava de um tratamento intensivo que lhe aumentasse a agilidade dos nervos, sustentando-o numa arquitectura flexivelmente óssea, principalmente pela estruturação da coluna vertebral.
Com efeito, a política quantitativa do menos Estado não pode transformar-se numa receita dos que atiram pela janela fora algumas missões do dito, para, depois, as deixarem entrar, de forma pouco transparente, pelos sótãos e alfurjas da avençologia, da consultadoria e da subsidiocracia, com muito "outsourcing" de clientelismo e barganha.
Mesmo um liberal empedernido não pode negar o intervencionismo do Estado como cérebro social nos domínios da economia e da sociedade. Só que não podemos ser conservadores face às antiquadas respostas dadas à velha questão social. Especialmente quando importa aplicar o fim da justiça a novas circunstâncias, muito principalmente quando somos desafiados pela nova questão social.
21.10.07
Domingo, com mais de vinte graus de temperatura máxima e um mundo de olhos em bico
O Presidente da República afirmou que só vai pronunciar-se sobre a forma de ratificação do novo tratado europeu depois de conhecer a posição do Governo e do Parlamento. Viva o PPE! Viva o PSE! O Fátima ganhou ao Sporting e o portuguessíssimo Benfica só no último meio minuto empatou em casa com os sadinos.
Alguém terá dito: "O Ministério Público é um poder feudal de condes, viscondes, marqueses e duques". Não foi Alberto João Jardim. Foi o próprio Procurador Geral da República. Luís Filipe Menezes, desvalorizou eventuais polémicas e afirmou que Pinto Monteiro tem conseguido manter um equilíbrio entre um "excesso de protagonismo" do passado e um "apagamento" igualmente indesejável. "É uma pessoa sensata, que sabe conduzir a forma como exerce as suas funções, e tem tido uma postura excepcional na dignificação da justiça portuguesa".
Noutras paragens sociais-democratas, pode notar-se: Mikhail Gorbachov, o último líder da União Soviética (URSS), foi eleito máximo responsável da União Social-Democrata.
O Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês (PCC), o mais importante acontecimento político na China que só se realiza a cada cinco anos, terminou hoje com a adopção do conceito de "Desenvolvimento Científico", numa vitória do Presidente Hu Jintao. Mariano Gago não foi convidado a apresentar o plano de reforma da coisa e Durão Barroso continua ocupado com o Tratado Reformador. Na primeira página do "Diário do Povo", na galeria de fotos, além do timoneiro de Pequim, vem uma foto de Socolari em destaque...
O "Desenvolvimento Científico", que passa agora a ideologia oficial dos comunistas chineses, é um conceito que visa corrigir os excessos do crescimento económico sem limites que vigorou durante os mandatos de Jiang Zemin, antecessor de Hu à frente da China e do partido - uma e mesma coisa, uma vez que os comunistas mantêm o monopólio do poder político no país desde 1949. O "Desenvolvimento Científico" visa reduzir as desigualdades entre as regiões urbanas e litorais (mais prósperas) e as regiões rurais, proteger o meio ambiente do desenvolvimento selvagem e reduzir o fosso entre os rendimentos dos mais ricos e dos mais pobres da China.
O vice-presidente da república, Zeng Qinghong, Wu Guanzheng, chefe da Comissão de Disciplina do PCC - agência que lidera a luta crucial contra os políticos corruptos - e Luo Gan, que liderava o sistema judicial, a polícia e as forças de segurança do país, ficaram de fora das listas para o Comité Central e saíram assim do Comité Permanente do Politburo do partido, o mais poderoso órgão da Chia, que tem na actualidade nove pessoas.
Contudo, leio no JN: "Em pleno centro de Braga, uma mãe viu o seu filho ser “arrancado” do baloiço onde brincava, porque o pai de outra criança achou que o seu rebento tinha “mais direitos” que o outro. Por uma questão de pigmentação. Da pele. Djariatú Mané ficou confusa, ofendida e revoltada, porque em parte os insultos racistas e agressões “foram presenciados por dois agentes da PSP, de forma relutante”, diz a queixosa. A queixa só foi formalizada 18 dias após as ocorrências".
Parece que a maioria dos europeus quer o tratado referendado: 76% dos inquiridos alemães, 75% dos britânicos, 72% dos italianos, 65% dos espanhóis e 63% dos franceses (via Portucale Actual). Por cá, Menezes já disse o que pensava, Cavaco insinuou, Sócrates adiou.
20.10.07
Contra os actores políticos que não cumprem a palavra dada ao povo
Acabo de ouvir as decisões da primeira reunião da nova direcção do PSD. No "day after" à coroa de glória dos "zés-pás", esses representantes do bloco central multinacional do PPE e do PSE mostram assim a verdadeira face do edifício propagandístico do estado a que chegámos, elevado às alturas da arquitectura pós-moderna do tratado reformador. Na foto ilustradora do poder europeu, o PSD aparece cortado, no palanque da extrema-esquerda desta foto de famílias...
Mas o que é bom para o "euronews" pode não ser tão entusiástico para o "zé povinho". Assim se demonstra como o dito tratado, que apoio, tem traseiros domésticos prenhes de pés, troncos e braços de barro. E não há nenhuma propaganda de qualquer "action man" que consiga disfarçar o desencanto.
Não me admira que Menezes tenha cedido ao rolo compressor do pensamento único das duas principais multinacionais partidárias da Europa, que condicionaram a cimeira dos senhores Estados, realizada no chamado Parque das Nações. Afinal, a agenda oculta desses donos do poder determinou que os povos não podem ser directamente ouvidos, em nome do argumento de uma Realpolitik, segundo a qual "é preciso pôr a Europa a funcionar". O PSD pode assim ser bem visto no concerto dos grandes do PPE, que transformaram Menezes num novo "bom aluno" que, desta forma, pensa livrar-se da acusação de populismo, a mesma que levou o CDS de Monteiro e Portas a ser expulso do PPE.
Sócrates agradece. Já tem mais uma desculpa para não cumprir uma inequívoca promessa eleitoral. Mas ambos poderão cometer um clamoroso erro: ajudam ao défice democrático das instituições europeias. E, pior do que tudo, não cumprem a palavra dada, em nome de uma conveniente superveniência que não passa de uma desculpa de mão pagador das ofertas eleitorais.
19.10.07
Habemus Tractum! Foi "porreiro, pá!"...
Hoje, pela madrugada, a Murganheira jorrou pelas gargantas, celebrando o acordo. Mais uma vez, na Europa, ganhou o sim pelo não. O Tratado de Lisboa, que vai além de Maastricht e Nice, quase se aproxima dos Tratados de Paris e de Roma. Se tem o "champagne" da convenção valéria, isso é por homenagem ao maçon Jean Monnet, que era produtor da bebida. Julgo, sem equívocos, que estamos de parabéns, como Portugal Político, e que essa homenagem tem nomes: José Sócrates e Durão Barroso. De forma manifesta.
Sócrates soube escolher uma boa equipa para o processo. De Lobo Antunes a Luís Amado, sem Freitas do Amaral. De António Vitorino a Maria João Rodrigues, com muitos outros, sobretudo jovens peritos. E os deuses todos ajudaram. Barroso, um pouco mais acima, também fica para os anais. E a boa conjugação que, através dos dois, se estabeleceu entre o PPE e o PSE. O cenário do Parque das Nações e do Pavilhão Atlântico, com São Pedro e São Martinho a ajudarem, foi perfeito. Portugal ganhou, aqui, à beira Tejo, de olhos postos na partida Atlântico fora. Como Sócrates sintetizou nos "apanhados" da conferência de imprensa, dirigindo-se a Barroso, no abraço final, "porreiro, pá!". É natural que o nosso primeiro se sinta "um político realizado..."
No plano doméstico, é que a realização se vai engasgando. Porque também ganharam Carvalho da Silva, Jerónimo de Sousa e os duzentos mil que se manifestaram na rua, em nome da pluralidade política e social. Estive com os manifestantes e com os artistas da representação instritucional cimeira, deste novo Congresso de Viena, com a sua hierarquia das potências, onde Portugal, gerindo dependências e interdependências, deu provas de estar vivo, como grande potência espiritual, onde, nalguns segmentos, até estamos nos dois primeiros lugares das hierarquias fundacionais.
Bem recordo do último trabalho universitário em que cooperei com Barroso e da disciplina que ele sempre insistiu em reger: teoria da decisão em política externa. Agora levou à prática aquilo que sempre ensinou. E, na prática, a teoria não foi outra. Noto a faceta planeamentista de Sócrates e a respectiva teimosia. Quando aplicada em objectivos diversos do semear de micro-autoritarismos subestatais, ela pode ser útil ao país. Aos dois, obrigado!
Mas discordo frontalmente da manobra com que alguns pretendem evitar os referendos. Mesmo que concorde com a retórica de Vitorino sobre a não constitucionalidade do tratado reformador, julgo que há promessas que se devem cumprir, por razões substanciais, sem desculpas silogísticas. O povo não pode apenas ir à manifestação da CGTP, tem de ir à urna e que ser mobilizado pela maioria das nossas pluralidades. Por mim, que, na hipótese do outro referendo, logo participei na campanha do "não", estou, hoje, disponível para ir para o "sim". Vamos a ele. É a hipótese que temos de dar democracia ao Tratado de Lisboa.
18.10.07
Em dia de Sã Cimeira e de retiros espirituais por cumprir
Hoje é dia um de Sã Cimeira, com trânsito condicionado, carros de reportagem, discursos, barganhas, apertos de mão, fotografias de grupo e o antecipado verão de São Martinho até parece a ajudar Sócrates e Barroso, que assim podem ficar nos anais da Europa. Que a Senhora de Fátima e todos os outros deuses os ajudem e nos ajudem, porque, se calhar, só daqui a treze anos e picos é que poderemos voltar a ser presidentes desta união que ainda não chegou a acordo comercial com a Rússia de Putine. Na véspera, em dia de Makukula cazaquistanense, o lusitano governo, propagandeando-se, em nome da Europa, disse que, dela, vamos receber milhões e milhões por dia, mas que, desta, é que os vamos gastar como deve ser, assim confirmando oficialmente que, antes, eles, os subsídios, foram efectivamente uma oportunidade perdida, dado que os gastámos por gastar, para não termos de os devolver.
Entretanto, anuncia-se o resultado destas três décadas de governação de preconceitos de esquerda e de fantasmas de direita: somos o país da Europa com mais disparidades sociais, com cerca de dois milhões de pobres, velhos e novos, assim se demonstrando que de boas intenções socialistas e sociais-democratas está o nosso inferno cheio. Os ricos são cada vez menos e cada vez mais ricos. Os pobres, cada vez mais e cada vez mais pobres. Para que os ricaços discursem arrogantemente. Para que os pobres caiam no engodo de pensar que se acaba com a pobreza, acabando com os ricos.
Vale-nos que chega mais um orçamento, dizendo que desta é que vai ser. Ao mesmo tempo, um conhecido e afamado banqueiro declara que não cometeu nenhuma irregularidade jurídica, quando o banco que controla emprestou dinheiro ao respectivo filho, para, depois, não lhe cobrar a dívida. Como se o problema fosse apenas dessa artificialidade chamada direito, onde não há relações de vida, mas apenas relações jurídicas.
Mesmo banqueiros anarquistas e cristãos têm que assumir as regras da ética protestante do capitalismo. Por outras palavras, devem assumir outro padrão, tanto no tocante ao exame de consciência, como relativamente ao exemplo social que representam. Porque não basta o presidente do respectivo sindicato desculpá-lo com a teoria da conspiração.
Um cristão diria que ele deveria amar ao próximo como a si mesmo e não fazer aos outros o que não queria que lhe fizessem a ele, nomeadamente quanto à cobrança de juros. Um confuciano repetiria tal regra das religiões universais. Até um kantiano acrescentaria que, da respectiva conduta, se deveria extrair uma norma universal. Só o sapateiro de Braga concluiria que não havendo moralidade, todos devem comer. O homem não é naturalmente mau e não actua apenas movido pela necessidade. Qualquer retiro espiritual aconselhará esse paradigma a arrepender-se e a dar bons exemplos. De outra maneira, o Zé Povinho continuará a fazer seu gesto feio de homem revoltado.
17.10.07
Para transformarmos as vulnerabilidades em potencialidades e evitarmos que as potencialidades se transformem em vulnerabilidades
José Sócrates tem uma semana agitada pelos desafios representativos que lhe são movidos. Apenas lhe desejo boa sorte para que o acaso negocial nos permita uma janela de oportunidades no contexto europeu. Não bastavam os polacos e os kosovares, os russos e os gaienses, todas essas incómodas borbulhagens que nos fazem irritante incómodo. Afinal, a formosa e diâmica modernização desta pátria que vivia no obscurantismo, antes da coabitação dos presentes "action men" da esquerda moderna, parece desequilibrada. Agora é Santana que regressa, Jerónimo que sobe ao palco e tantos outros que pareciam perdidos nas notas pé-de-página da história. E nem a inauguração da igreja trinitária das treze portas e as benzeduras por reflexo condicionado nos valem.
Afinal, os funcionários públicos podem voltar a autodespedir-se com quinze anos de trabalho, Rui Pereira vai propor nova lei sobre manifestações, os operadores judiciários vão preparar alternativas ao novo Código do Processo Penal, Jardim Gonçalves consegue resposta jurídico-formal às acusações de Berardo e até o presidente do Tribunal Constitucional se transforma em actor politiqueiro, vindo a público comentar o discurso do novo líder do PSD, antes de um eventual comunicado do palácio belenense sobre a matéria.
Por outras palavras, bastou que um, ou dois, perturbadores estratégicos entrassem na liça politiqueira, para que se tornasse patente o vazio de estratégia que marca a actual encruzilhada. Isto é, tanto a ideia de Portugal como a ideia de democracia estão dependentes do actual modelo de gestão de dependências e interdependências e falta uma reflexão mais profunda sobre o elenco das nossas potencialidades e das nossas vulnerabilidades. Falta, sobretudo, uma adequada forma de transformarmos as vulnerabilidades em potencialidades e de evitarmos que as potencialidades se transformem em vulnerabilidades.
Sócrates, o representante da secção nacional do Partido Socialista Europeu, pode ter confiança em Menezes em matéria de política europeia, porque este também é o representante da secção nacional do Partido Popular Europeu. E ambos estão dependentes dos programáticos globais destas duas multinacionais políticas sobre a matéria. Uma vulnerabilidade que, bem gerida, pode transformar-se em potencialidade.
Tal como as histórias de Jardim Gonçalves, o criador do principal banco privado português, podem transformar essa potencialidade numa vulnerabilidade que pode afectar todo o sistema bancário português, porque a personalização do poder é um perigo que só o bem senso do Banco de Portugal tem conseguido driblar, depois das sucessivas perturbações do nosso candidato a Soros, assim se demonstrando como com tantos socialistas e sociais-democratas, ainda vivemos em regime de sociedade de casino.
16.10.07
Uma frase apenas, de Passos Manuel
Quem governa é parecido com um muro pintado de branco, onde os próprios garotos escrevem o que lhes vem à cabeça...
14.10.07
O discurso de Menezes, um outro olhar de benigna independência, sobre as linhas de Torres
Começou a era menezista e, nos primeiros passos, ei-la que foge aos parâmetros estabelecidos pelos analistas que se fiam nos fantasmas e nos preconceitos dos "opinion makers" e nos comentadores do situacionismo, principalmente dos que são oriundos do PSD e que estão tradicionalmente comprometidos com antigos e actuais processos internos de luta pelo poder. E tudo passa pelo fantasma conceitual que nos costuma obcecar o raciocínio: o Bloco Central.
Porque se uns ainda reduzem o conceito à velha aliança do PS com o PSD, na fase soarista e pré-cavaquista da nossa democracia, poucos reparam na emergência de um novo bloqueio situacionista, gerado pelo cavaquismo governamental e, depois, pela presente coabitação do cavaquismo presidencial e do socratismo governamental. Porque estas são as duas faces da mesma moeda do situacionismo...
Quando Menezes ousou entrar em dissidência com o discurso presidencial, tanto directamente, no caso das autonomias regionais, como indirectamente, com a proposta de nova constituição, ou de regresso à regionalização do continente, lançando para a incineração a vaca sagrada da simultaneidade, temos apenas de observar que surgiu, finalmente, no espaço partidário, uma directa contestação do programa presidencial. Seria fácil dizer-se que se trata do resultado da pressão de Jardim.
Julgo que a questão é mais funda, tendo a ver com as forças vivas que marcam o nosso corpo autárquico, de que Menezes é um paradigma, como antes o foram Jorge Sampaio e Pedro Santana Lopes, três dos raros políticos cimeiros da nossa praça, com mais experiência política na representação autárquica do que nas tarefas da governação.
Será melhor notarmos que o discurso de Menezes foi marcado por esse experimentalismo da política vivida a nível do poder local. Talvez por isso é que, na primeira grande encenação de macropolítica, ele tentou fugir do populismo, preferindo uma metralhada de micropolítica, para demonstrar a popularista oferta interclassista de tudo a todos.
Por isso, decidiu atacar todas as "policies" socrateiras, não deixando em paz quase nenhum ministério. Por outras palavras, foi tão desconexo quanto a falta de conexão da própria política governamental, anunciando o lançamento do oposicionismo todo o terreno.
Tudo depende do que desenvolver sobre a ideia de Portugal e a ideia de democracia, bem como dos prometidos protagonistas sectoriais que possa mobilizar para o respectivo governo-sombra, onde até pode copiar as habilidades do PS nos "estados gerais" e nas "novas fronteiras", pelo recrutamento de independentes.
Por isso, sorrio ao verificar como quase todos os analistas "on line" do congresso das linhas de Torres morderam o isco do tabu Santana Lopes para líder parlamentar, permitindo a gestação de um artificial facto político que acabou por ser uma excelente manobra de diversão. Por isso, escaparam às previsões algumas nomeações de certos hierarcas de Menezes, como Luís Fontoura, Duarte Lima, Fernando Seara ou Zita Seabra, os quais não podem, de maneira alguma, ser incluídos na quota santanista.
Aliás, algumas destas figuras nem sequer são históricos do velho PPD ou do antigo précavaquismo. Um deles foi secretário-geral do CDS e outro, figura marcante do PCP, com mais clandestinidade do que Jerónimo de Sousa. Por outras palavras, não falta legitimidade de "agit prop" à nova liderança laranja. Como também são indisfarçáveis as ligações da nova equipa a uma história profunda do partido laranja, bem representada pelas anteriores lideranças de Emídio Guerreiro e de Nuno Rodrigues dos Santos, assim se eliminando a pretensa guerra civil que algumas catalinárias tentaram agitar contra o PS.
Eliminam-se, sobretudo, as manobras dos promotores do estúpido confronto entre o humanismo cristão e o humanismo laico. Vale-nos, até, que um bispo da dimensão de D. Manuel Clemente já tinha posto água institucionalmente benta nalgumas fervuras exaltadas de certas arremetidas catolaicas, também assumidas por eclesiásticos resignatários, desses que têm uma incompreensível tendência para agitar os conflitos entre a política e a religião, com prejuízo da democracia.
Contra os colectivismos morais que, somados, abusam da nossa paciência
Li o "Sol" desta e da outra semana. Guardei-me para sentir o todo daquilo que começou por ser uma pedrada no charco e reparei que o arremesso se volveu em "boomerang". Fui ler latinadas, passei por Palmela, lembrei-me o treinador Octávio e acabei em Cícero: Quosque tandem abutere Catilina patienta nostra? Reparei que Manuel Maria Carrilho vai para embaixador na UNESCO, abandonando a curiosa reflexão que começava a fazer sobre a reforma cultural dos partidos lusitanos. Notei que Berardo continua de candeias às avessas com Jardim Gonçalves, onde o Pai e o Filho não assistiram à inauguração de uma controversa igreja modernista. Reparei na nova direcção do PSD. E decidi terminar as reflexões do dia com uma outra citação, de Orwell, mas em inglês: The Catholic and the Communist are alike in assuming that an opponent cannot be both honest and intelligent. Qualquer semelhança com a realidade não passa de mera coincidência de acasos procurados pela teoria da conspiração.
12.10.07
PPD, a revolta que vem de baixo...
O velho PSD vai virar mais uma curva do seu caminho, varando as suas linhas de Torres. Por outras palavras, a partir da próxima semana pode emergir um Partido verdadeiramente Popular Democrático que retome a luta da província contra os capitaleiros, mesmo que tenha uma das suas principais bases na cidade capital de Portugal, até porque Lisboa sempre foi feita por subscrição nacional. Por outras palavras, chegou o mais autárquico, regionalista e futebolítico dos grandes partidos portugueses.
A questão é, aliás, clássica na história do PPD/PSD, bastando recordar a causa da dissidência de Sousa Franco, quando denunciou a fractura entre os urbanos e os rurais, acusando estes de se acantonarem no sá carneirismo. Agora, o homem de Gaia, além de ser do Sporting, ameaça tornar-se no bombo da festa de certas castas pretensamente urbanóides que pensam ter o monopólio do modelo cristão, polido e civilizado da democracia, só porque as mesmas se identificam com as classes A e B das análises de "share". Não são capazes de reconhecer que o Dien Bien Phu das directas do PSD derrotaram os tais "elitistas, sulistas e liberais".
Daí que não seja de estranhar que sportinguistas dêem as mãos a dragões, como o homem de Arcozelo, habituado aos milagres de Maria Adelaide, e a águias, como o meu amigo autarca de Sintra. Todos estes ingredientes autarcóide, mediáticos e futebolíticos, com o profissionalismo das novas agências de comunicação, serão um novo desafio para o socialismo situacionista do modelo socrateiro, se conseguirem enredá-lo nos preconceitos e fantasmas de certo Bloco Central, o que assume a imagem da aliança entre a esquerda moderna e a direita dos interesses.
Por outras palavras, os velhos manuais do argumentário político que garantiam a Sócrates mais um tranquilo passeio eleitoral, para nova maioria absoluta em 2009, podem ter que ser revistos nalguns dos respectivos dogmas, assim se confirmando como o estilo oposicionista do "ganda nóia" era, até agora, um aliado objectivo do PS. Daí que também seja fecundante vislumbrar qual vai ser a manobra que Paulo Portas vai desencadear, dado que não parece possível vê-lo retomar o investimento metapolítico de Ribeiro e Castro, quando este procurou reanimar os últimos redutos de autenticidade democrata-cristã do velho CDS.
Por mim, apenas confirmo que o lançamento deste grande Partido Popular, sob a aliança de Menezes e Santana, é coisa que não me entusiasma civicamente. Apenas confirma a falta de mobilização do novo centro excêntrico, radicalmente defensor da independência nacional, da efectiva justiça social e da imaginação dos grupos sociais excluídos por este Bloco central de interesses...
11.10.07
De boas intenções, continua o inferno científico cheio... Menezes que se cuide!
Só há pouco tempo me foi dado ler o salvífico discurso presidencial do 5 de Outubro, onde o heterónimo de certo político, que também se chamou João de Deus Pinheiro, Roberto Carneiro e Manuela Ferreira Leite, veio agora denunciar as consequências daquilo que foi um dos principais causadores. Preferi continuar a ler Montaigne e o tradicional exercício sobre a preferência das letras às armas, incluindo as politiqueiras, porque, num tempo em que algumas luminárias pretenderam constituir uma ordem dos cientistas, reparo como continuamos subsidiários dos grandes armazéns de um terceiro mundo pretensamente esclarecido, numa espécie de arquipélago de oficinas "outsourcing", contratadas a recibo verde, pelos adjuntos das multinacionais do "hardware".
Vem isto a propósito das pouco noticiadas ocorrências de certos meandros universitários em processo de aplicação da lei Gago, dado que os mesmos parecem ter menos relevância mediática do que o conflito de uma frase de José Rodrigues dos Santos contra a administração Morais Sarmento da televisão pública, ou do que o conflito de propagandismos entre os sindicatos da CGTP e o "agenda setting" do nosso Primeiro, quando ambos mobilizam segmentos de povo para o palco dos acontecimentos televisivos. Uns com o militantismo, outros com excursões de aposentados de província; uns com o activismo dos "amanhãs que cantam", contra o "regresso do fascismo", outros com figurantes de agências de "casting", ou com actores profissionais recrutados para cerimónias de pretensa ocupação partidária da ideia de república, mas ambos exagerando no espectáculo, isto é, gastando-se pelo mau uso.
Por outras palavras, a borbulhagem de pequenos nadas que precede o Congresso do PSD e a entrada de Luís Filipe Menezes no palco dos horários nobres tem sido ensombrada pelas manobras de certa contra-informação, onde a pedrada no charco da ex-provedora Catalina recebeu uma inusitada fúria verbal do blogue do Professor Vital Moreira, através de Ana Gomes, que, abordando a nebulosa da pedofilia, até referiu o caso de dois ex-ministros de eventuais maus costumes, cujos nomes todos cantarolam no "boca a boca" das elites e que, a confirmar-se, impõe que a moral social consiga varar os rígidos limites da prescrição, para que não continuemos a lavar as mãos como Pilatos.
Daí que possa parecer de somenos a "inside information" que corre pelos corredores e "mails" da minha universidade, onde consta que a passagem a fundação da jóia da coroa de Mariano Gago teve um pequeno obstáculo quando, num plenário do IST, a facção ministerial foi derrotada pela facção reitoral por uma escassa meia dúzia de votos. Por outras palavras, Menezes ficou com uma castanha quente, dado que, neste caso, recebe a pesada herança de ter que gerir uma oportunista aliança entre o engenheiral PCP e o não menos engenheiral PSD, o que até pode reforçar a frente antigaguista, liderada pelo reitor da Universidade de Coimbra e pelos seus "compagnons de route" do Conselho de Reitores.
Os jogos politiqueiros que transformaram a universidade portuguesa num sucedâneo de partidos em degenerescência, onde facções brincam a slogans da velha unicidade e a manobras de serôdia RGA, mostram como se abriu a caixa de Pandora de sucessivos grupos de pressão e grupos de interesse, com o consequente neofeudalismo, contrário a reformas e reaccionariamente incrustado no pior dos conservadorismos: o apego ao poder dos que querem conservar o que está, mesmo que decorem a nudez desta verdade com os diáfanos mantos da música celestial, tipo "viva a escola pública!". O antigo manobrador intelectual de RGAs, agora sentado na cadeira ministerial do Estado de Direito, tem uma tarefa árdua nesta sua saga de criar dois ou três exemplos de fundações universitárias públicas. E Menezes tem que responder ao desafio de não admitir que alguns dos repectivos eleitos deixem de ser a inesperada correia de transmissão de certo neo-reaccionarismo de saudades prequianas, numa santa aliança que até pode ter enredado certos deslumbramentos gestionários, feitos daquelas boas intenções de que o inferno está cheio...
9.10.07
O democratismo socratista e a exaltação "racha-sindicalista"
Andam muito agitadas as hostes situacionistas e oposicionistas, principalmente depois de uma alegada e inspeccionável actuação policial preventiva junto de um sindicato que prometeu, e tem praticado, protestos contra Sócrates, mas que este tem qualificado como insultos, vindos dos comunistas. Outros, mais exaltados, falam do regresso do fascismo e até o secretário do Estado, José Magalhães, quebrou o jejum de bela retórica no "forum" da TSF, fazendo um paralelismo, pouco adequado, com os criminosos ataques ao cemitério dos judeus portugueses, esquecido que não está dos seus tempos de porta-voz do cunhalismo.
Por mim, não me aflijo com esses bailados discursivos, onde já participou Menezes, e julgo que a coisa tem mais a ver com o estilo do nosso Primeiro, dotado de um temperamento que o faz aproximar de um dos mais insignes democratas do século XX: Afonso Costa. O tal que, apesar de, demagogicamente, chegar a citar Karl Marx, em plena revolta dos abstecimentos de 1917, foi generosamente cognominado pelos activistas operários da época como o "racha-sindicalistas". Julgo que não estamos nesse ano de fome, pneumónica e grande guerra, até porque não parece que voltem aparições em Carnaxide ou na Serra de Aire, nem que um dos partidos da oposição democrática prepare um qualquer golpe dezembrista que leve Sidónio Pais ao presidencialismo, apesar dos apelos de Medina Carreira e dos relatórios do SIS sobre as infiltrações do alvará do partido eanista no partido de Manuel Monteiro. Em 1917 ainda não havia secretas dessas, detectando que o latifundiário Fernandes, do tal partido de Brito Camacho, subsidiava um golpe anti-afonsista...
As invocações do fantasma repressivo do salazarismo não passam de mera literatura de justificação de situacionistas e oposicionistas, e não se vê rasto de uma qualquer Legião Vermelha, com o seu Bela Kun, a promover atentados contra o chefe da polícia republicana, o coronel com familiares de hoje na Lusoponte que há-de lançar a secreta do 28 de Maio e ter como adjunto um tal Agostinho Lourenço, o célebre institucionalizador da PVDE, exactamente o mesmo que veio da democracia para a ditadura, porque era um bom tecnocrata destes meandros. Isto é, de uma democracia irritada, quando as forças vivas lutavam contra o governo e o proletariado ia aplaudi-lo ao Terreiro do Paço, enquanto a classe média ficava entalada entre o camartelo daqueles milionários e a bigorna do proletariado (Rocha Martins, o jornalista monárquico manuelino, que a partir do "República", se torna no "fala o Rocha, fala o Rocha, o Salazar está à brocha..."). A PIDE é do pós-guerra, já aliada dos aliados, e até começou por prender os nazis que aqui estavam exilados...
Estas comparações da intimidade da nossa história contemporânea que me vieram das imagens televisivas são certamente provocadas pelo trabalho de casa que vou fazendo, porque, no próximo sábado, estarei na Biblioteca Municipal de Sintra, a ter que apresentar uma tese sobre a relação de Salazar com o pensamento político da direita desse tempo, em confronto com o Professor Doutor António Reis, que vai fazer a apresentação inversa, na relação com o pensamento de esquerda. Vale-nos que nas campanhas de Quintão Meireles, Norton de Matos e Delgado, pensadores políticos de direita e de esquerda estiveram juntos contra um regime que não era de direita nem de esquerda, mas que nos suspendeu a política durante meio século. Por mim, não quero repetir as causas que o geraram. Nem com novos democratíssimos e racha-sindicalistas. De outra maneira, o primeiro secretário-geral do PCP, Carlos Rates, ainda pode vir a aderir ao Estado Novo dos viracasacas e dos troca tintas...
Por isso, ouvi atentamente o meu amigo José Miguel Júdice, ontem na SIC-Notícias, já na qualidade de tão independente como eu, embora me tenha libertado do compromisso, depois de brevíssima ilusão de coisa nova, já lá vão três anos, recindindo-a pela justa causa que hoje se torna patente. Confesso que o compreendi, apesar de antiquíssimas divergências. Sempre preferi a revolta à revolução e a tradição à ideologia, mas nem por isso deixei de saudar os primeiros dias de Abril, embora sem ter as ilusões dos grupos que, então, se foram gerando. Só voltei a acreditar e a aderir a um quando o Francisco Lucas Pires teve a ilusão de refundar o CDS, para logo o largar quando voltou o Diogo. Por isso relativizo esta fúria de menezistas e socrateiros e continuo a assumir a revolta para servir a tradição, longe dos neoliberais que não são comunitaristas, e dos neoconservadores que se tornam reaccionários, ou clericalistas.
Morreu o Fausto de Coimbra
Morreu o Fausto. Tínhamos a mesma idade. Éramos da mesma pequena pátria e fomos colegas na escola primária pública do Arco de Almedina, por baixo do Palácio de Subripas. Andámos no mesmo liceu e nunca os acasos da vida nos permitiram voltar a conversar nos últimos trinta anos, apesar de comungarmos em muitos valores. Eu que era um dos seus leitores, no velho Despertar, guardo para mim a pequena alcunha que lhe dávamos na escola do professor Ildefonso. Prefiro dizer que não morrerá o Fausto de Coimbra. Prefiro alinhar com os que querem que o programa de Fausto se cumpra, mobilizando vontades e, sobretudo, os coimbrinhas no exílio. Transcrevo o que proclamava num dos seus últimos artigos, contra o declínio político de Coimbra - cidade, concelho, distrito e região ...Coimbra tem pela frente marés de dificuldades. Mas este é o momento, se bem aproveitado, para abrir janelas de oportunidades. Esta é uma verdade inquestionável. E a nossa aposta. Que desejamos não seja optimista...
PS: A cadeia de amizade e de eterno que o "galinha" gerou foi impressionante. Desde o Zé Mateus aos mails que se foram trocando, mais uma vez se demonstra que os exemplos de vida têm mais força do que os tratados e os discursos. Deixo algumas palavras de um deles: Também eu não me cruzei com ele durante os 30 anos após o liceu. Minto, excepto numa cerimónia pública aquando da sua passagem pelo governo. Um abraço, só isso. Não sendo da mesma turma, como sabes, era um adversário do futebol no campo do recreio do liceu. E foi num desses jogos de turma contra turma, com o galinha à baliza, que o Couceiro, se não me engano, sem querer, lhe partiu uma perna. E de muletas lá andou por muito tempo. Mantivemos uma relação de cumplicidade política nos anos finais do liceu. Eu tratava de lhe arranjar “livros proibidos” da “Grijalbo”, da “Maspero” “D. Quixote” da “Moraes” ou da “Zahar Editores”. Era um assíduo da minha cave no ... Mas isso era no tempo, como dizia o outro, em que estávamos todos vivos. Paz à sua alma.
O situacionismo sempre foi um casamento de conveniência entre a esquerda moderna e a direita dos interesses
Voltando às pedradas no charco, posso observar que quando Cravinho estabelece a clássica lei do preconceito de esquerda, segundo a qual uma governação liberal, mesmo que neo, ainda por cima assumida por governantes socialistas e sociais-democratas, promove a corrupção do chamado bloco central de interesses e trata de apelar ao regresso à ideologia, identificando-se com o socialismo de esquerda, acaba por entrar em mera retórica de um vicioso silogismo.
Em termos de linguagem de comadres, bem doméstica, eu poderia sublinhar que, desde os inícios da democracia pós-revolucionária, o situacionismo sempre foi um casamento de conveniência entre a esquerda moderna e a direita dos interesses, com a segunda a entender que os seus melhores feitores são os políticos mais à esquerda do estado a que chegámos, da mesma maneira como os interventores da CIA durante o PREC sempre preferiram instrumentalizar os MRPPs. Não me apetece ir por aí.
Prefiro notar as estatísticas comparadas da "Transparency International" e observar que quanto mais consolidadamente demoliberal é um regime, menor é o indíce de percepção da corrupção e mais eficaz é a punição judicial do corrupto. Porque melhores são a prevenção e a repressão de tais actividades de compra do poder.
Do mesmo modo, quem ocupa os lugares da cauda são os regimes onde os antigos partidos únicos marxistas-leninistas passaram a liberais globalizadores pelo discurso, mas a cleptocráticos na prática, mesmo que o ministro, que foi estagiário do KGB, tenha agora dois seminários de transição para a democracia e quatro conferências de Hayek e Von Mises.
Com estas bicadas, não queremos desvalorizar a coragem analítica do antigo governante de Vasco Gonçalves e do PS, também antigo e distinto colaborador da governança tecnocrática de Marcello Caetano e autor de pós-revolucionários projectos proteccionistas de substituição das importações na fase pré-europeia e pré-globalizadora da nossa democracia, rigorosamente vigiada pelo FMI. Por mim, se aceito alguns dos erros que ajudou a cometer, nomeadamente certos elefantes brancos que nos continuam a agravar o défice, nem por isso deixo de louvar as suas bem intencionadas estratégias de investimento público. Tal como louvo a sua attaliniana conversão à economia de mercado.
Apenas pretendo recordar que não há apenas liberalismos processuais e por mera conclusão bancária. Há também concepções liberais do mundo e da vida, feitas de normas morais, princípios e valores, que tanto rejeitam um Estado de Favores como rimam com a Justiça, combatendo efectivamente os processos de compra do poder. Especialmente em espaços políticos com um pedacinho mais de autenticidade do que aquele nosso universo bem caseirinho, onde, na prática, os socialistas e sociais-democratas transformaram a prática na teoria do nem carne nem peixe, com alguma água benta de seita catolaica ou leninista à mistura.
PS: O mapa da verdade, mostra quem são os verdes dos menores índices de percepção da corrupção. Fora dos factos, só literatura de justificação e música celestial...
8.10.07
Duas pedradas neste charco que nos vai desesperando
O Benfica lá voltou a ganhar, Sócrates, depois de duas boas inaugurações, entre fábricas biológicas de peixinho e pilhas de hidrogénio, irrita-se com as correias sindicais de transmissão de Jerónimo de Sousa, o Gato Fedorento entou na rotina da fama que levou à decadência de Herman e Marcello transforma os seus brilhantes comentários em direito de resposta. Por isso, releio as entrevistas de Cravinho e de Catalina, progressistas, socialistas e ex-hierarcas do socialismo no poder, onde confirmo a indisfarçável degenerescência do regime.
Com isto, não subscrevo a alarmista tese dos que proclamam a falta de autenticidade de toda a presente classe política. Apenas observo, com algum realismo, a existência de amplas zonas de incompetência. E que a principal causa deste desassossego está na evidante falta de educação das elites e da consequente desorganização do trabalho nacional, conforme denunciava o seareiro Ezequiel de Campos. E que radica na crescente incapacidade de justa avaliação do mérito individual, com o quantitativo a destruir o qualitativo.
Cravinho reconhece que não temos um Estado-Estratego, mas antes um Estado de Favores. Catalina, expondo factos indesmentíveis, envergonha o sistema de administração da justiça em nome do povo. Cravinho tem toda a razão quando proclama que o problema da corrupção não pode ser monopolizado pelo policiesco e pelo judiciesco. Por outras palavras, ambos reconhecem que o país está moralmente desarmado.
Infelizmente, cada um deles continua a alimentar os fantasmas de direita e os preconceitos de esquerda que nos têm embargado. Cravinho retoma a diabolizante cláusula geral do neoliberalismo, invocando uma nebulosa egotista que confunde com a ideologia esquerdista. Catalina continua obcecada pela serôdia e maniqueísta divisão de progressistas contra conservadores. Como se não houvesse socialistas corruptos e esquerdistas pedófilos.
De qualquer maneira, as duas análises foram inteligentes e corajosas pedradas no charco que nos vai desesperando. Tornaram indisfarçável a podridão que vai corroendo os nossos aparelhos de poder, presas fáceis de neofeudalismos, neocorporativismos e populismos.