a Sobre o tempo que passa: setembro 2008

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.9.08

Neste Portugal dos pequenitos com a mania das grandezas, custa muito ser homem livre...



No dia seguinte à pequena Grande Depressão, o capitalismo global vai nacionalizando através da injecção de fundos no rabo da banca, numa terapêutica sem prévia vacina. Os utópicos que, dantes, discursavam sobre a chegada da felicidade globalizadora, mudaram o bico ao prego e proclamam agora o fim da história de uma era dita liberal. Por mim, apeas me apetece saudar a democracia norte-americana, onde os partidos não obedeceram a presidentes, governos, candidatos a presidente e directórios partidários. Obedeceram aos mandatos que receberam do povo, mesmo que tenham cometido erros. Julgo que na democracia da América ainda vigoram alguns dos princípios básicos das revoluções atlânticas, entre os quais se inclui o de poderem os cidadãos criticar o chefe de Estado, o chefe de governo, o chefe de partido, bem como todos os que ascenderam ao poder em disputa democrática. Em muitos segmentos da nossa Bielochina, quem lá chega acima, pela concorrencialidade de opções eleitorais, mesmo que seja o pequeno poleiro de uma capoeira de quintal, tem o dever de copiar as regras da democracia do todo. Infelizmente, esquecem-se que o hábito não faz o monge e que nenhuma cultura totalitária o deixa de ser só porque meteu um verniz emprestado pela vontade de poder, o tal  poder pelo poder, onde há actores que, para o exercerem, admitem o assassinato do outro.

No dia em que o semanário O Diabo publica uma entrevista que já aqui divulguei, tenho de tomar pessoalíssimas decisões de encruzilhada, das tais que podem marcar o resto dos meus dias, nos quais quero continuar a viver como penso e onde, neste tempo de homens lúcidos, quero continuar a ter a lucidez de ser ingénuo, sem pensar como, depois, irei viver. Neste Portugal dos pequenitos com a mania das grandezas, custa muito ser homem livre, à maneira dos estóicos, dos franciscanos ou do humanismo, renascentista ou iluminista, desses que vivem cada momento como se ele fosse o último. Tentarei ser fiel àquela ética de convicção que sempre foi inimiga da dita ética de responsabilidade dos neomaquiavélicos e quejandos..

29.9.08

Liberdade de expressão nas nossas bielochinas...

O meu exemplo

A nau ainda não foi ao fundo

Peregrinando pelas circunstâncias

Hoje estou num destes lugares do Leviathan

28.9.08

As várias Cortes daqueles animais que são todos iguais, mas onde há alguns mais iguais do que outros

Neste tempo de tudo ser véspera, as novas são o decadente mais do mesmo, com Sócrates a receber Hugo Chávez e muitas outras pequenas notas de rodapé de um dia a dia que nem registos deixará no médio prazo. Politicamente, interessa-nos mais o Obama do que a Manuela Ferreira Leite e o Bush, do que o Jerónimo de Sousa, dado que talvez não mereça hermenêutica o livro de Marques Mendes ou os esporádicos artigos de Menezes de Gaia. A medida da falta de autenticidade deste poder tem a ver com as casas para pobrezinhos com a autarquia capitaleira brindou a Corte das várias Cortes daqueles animais que são todos iguais, mas onde há alguns mais iguais do que outros, nos "jobs for the boys", nos "boys for the jobs" e agora na rica casinha de renda limitadíssima para amigos e amiguinhos, incluindo artistas e jornalistas, assim se elevando a cunha à categoria de pouca vergonha. Porque não se trata de PS contra PSD, ou de CDS contra outros tantos, mas de todos contra esses alguns que continuam a mais clássica das privatizações de bens públicos, à boa maneira dos devoristas.

Julgo que é quase impossível construir um Estado de Direito neste permanecente feudalismo, onde quem pensa ter conquistado o poder o vai fragmentando em muitas quintarolas, onde a lei é uma para os amigos e outra para os adversários e os indiferentes. Vale-nos que temos uma expedita administração da justiça em nome do povo que vai imediatamente procurar crimes quando eles já estão prescritos, e continuamos sem assumir que a questão é, acima de tudo, moral e cultural, numa terra onde continua a vigorar o bem pregas frei tomás e a moral do sapateiro de braga, porque enquanto o pau vai e vem folgam as costas...

23.9.08

Tenho consulta do viajante daqui a bocado...

Durante mais alguns dias, o meu silêncio apenas tem a ver com preparativos burocráticos e sanitários, para poder cumprir um projecto que, por meias palavras, já aqui anunciei. Reparo que o registo de "links" teve uma súbita erupção por causa dos meus amigos do queijo, especialmente o José, que deve ser pseudónimo. Como eu escrevo com nome de baptismo, não vou, por enquanto, polemizar e até nem tenho tempo útil. Mandei-lhe um mail privado sobre a luz do sol, a minha pertença às concepções do mundo e da vida de Kant e até as coincidências organizacionais que, em sua memória, procuro honrar. Quem quiser procurar a posição que, há anos, mantenho sobre o caso Pedroso, basta pesquisar neste blogue. Até subscrevi um apelo a um procurador-geral passado sobre a matéria, juntamente com os meus companheiros do movimento cívico Intervenção Radical. Tenho consulta do viajante, por causa das vacinas, daqui a bocado...

18.9.08

Cuf, ou a economia privada sem economia de mercado


Para comemorar o 175º aniversário da CUF, fui chamado para um comentário no Rádio Clube Português, onde divaguei sobre o nome português do capitalismo que se foi chamando devorismo, cabralismo, fontismo, economia de guerra, condicionamento industrial e privatizações de Soares e Cavaco. Tudo começou com o tal devorismo, quando se confirmou Proudhon, para quem a propriedade, incialmente, sempre foi um roubo. Seguiu-se o cabralismo, com a técnica do "enrichez, vous" da sociedade de casino e atingiu-se o fontismo, a grande coligação com a mesa do orçamento, donde derivou a casta banco-burocrática que ainda hoje nos governa. A 1ª República, morreu com a inflação da economia de guerra e fez nascer os gaioleiros e os patos bravos, bem como gente como o Alfredo da Silva, quando este antigo franquista se meteu no financiamento da política e da jornalada, nomeadamente no radical "Imprensa da Manhã" que teve algumas relações com a Noite Sangrenta de 1921. Vivia-se então a questão do pão político, com a guerra entre os moageiros e os latifundiários e quem acabou por ganhar foram os adubos, especialmente quando, com a Ditadura, se lançou a Campanha do Trigo, de Linhares de Lima. Enquanto isto, os capitalistas menos industriais e comerciais, iam começando a lançar o regime dos patos bravos, semeando-se os chamados "gaioleiros", quando a quebra de rendimentos das propriedades agrícolas obrigou as elites rurais a passarem para as grandes cidades que lançaram as suas avenidas novas, feitas de prédios que começaram a desabar.

O salazarismo foi o tempo do grande "gentleman's agreement" entre os barões feudais das grandes famílias e o Estado, onde os primeiros consideravam os ministros como meros "feitores dos ricos", susceptíveis de despediamento, quando a economia mística da nacionalização dos prejuízos e da privatização dos lucros não funcionava de vento em popa. E assim se confirmou o  nome português do capitalismo que nunca foi liberal, mas antes uma economia privada sem economia de mercado. As nacionalizações revolucionárias do 11 de Março de 1975 foram um logro típico deste capitalismo a retalho, porque nacionalizaram eventuais empresas falidas, para, depois os patrões receberem as chorudas e justas indemnizações, em tempo de privatizações dos lucros.

Só recentemente, o capitalismo começou a ter alguma racionalidade, face ao regime de sociedade aberta promovida pela integração europeia e pela globalização. Mas a memória dos grandes cavalheiros da casta banco-burocrática continua a fazer com que, em Portugal, o importante não seja ser ministro, mas tê-lo sido, a fim de garantir a reforma dourada numa dessas companhias que o ex-ministro anteriormente tutelava. Basta recordar que só nos anos oitenta do século XX se revogou um diploma do primeiro pós-guerra (a de 1914-1918) que estabelecia um regime de lucros excessivos, que todos queriam porque ninguém o cumpria, mas não admitia uma lei da concorrência...

Mais um dia de 925 milhões de pessoas com fome no mundo...




Mais um dia de 925 milhões de pessoas com fome no mundo, segundo a FAO, enquanto o pinífero ministro vai declarando, hoje, o contrário do que disse anteontem, e o tesouro norte-americano trata de injectar fundos e de emprestar "money" nas grandes companhias que ameaçam falir e que não se fundem com o rival da véspera. Que isto do capitalismo e da globalização tem as suas agruras e não apenas lojas dos trezentos. Até a Rússia demonstra que não há guerra fria nem regras antigas das sebentas de economia, neste bater de asas de uma dessas bebedeiras de Wall Street que põe o Kremlin em sobressaltos. E lá vem o tempo das vacas magras que costuma marcar as ressacas posteriores às euforias das sociedades de casino que não conseguem transformar as fichas da especulação em efectiva riqueza. Enquanto isto, os caçadores de fortunas tratam de mergulhar nas águas chocas deste pantanal, ao mesmo tempo que reabre o parlamento cá da parvónia, provisoriamente instalado na sala da câmara dos pares. Porque alguns deles são tão vitalícios e hereditários quanto os do defunto devorismo, o tal regime que fundou o Supremo Tribunal de Justiça, com o ministro proponente da instituição a nomear-se presidente da coisa, um pouco à imagem e semelhança de outro ministro da I República, muito ético, que, enquanto ministro das finanças, até criou uma faculdade de que se assumiu como professor e director, porque também então as vacas magras ameaçavam e o discurso da ética republicana era o do bem pregas frei tomás...



17.9.08

Subscrevo Baptista-Bastos no DN de Hoje

Propuseram ao ex- -presidente o recebimento dos retroactivos. Recusou. Eu não esperaria outra coisa deste homem, cujo carácter e probidade sobrelevam a calamidade moral que por aí se tornou comum. Ele reabilita a tradição de integridade de que, geralmente, a I República foi exemplo. Num país onde certas pensões de reforma são pornográficas, e os vencimentos de gestores" atingem o grau da afronta; onde súbitos enriquecimentos configuram uma afronta e a ganância criou o seu próprio vocabulário - a recusa de Eanes orgulha aqueles que ainda acreditam no argumento da honra.

Devoristas....ou a criadagem de seita e reverência que nos ocupou


Há dias foi o Lehman Brothers, agora, anuncia-se que a AIG pode ser, se Bush não a nacionalizar. Mas abundam os discursos de justificação, com o mesmo Bush a dizer que a economia americana está bem, com Pinho a replicar que boa mesmo boa é a europeia, sobretudo a portuguesa, com Cavaco a colocar a cereja no bolo, dizendo que teria muito a dizer, mas que, por enquanto, o não queria dizer, porque, por estes dias, só disse coisas sobre planos governativos para a educação e planos governativos para a justiça. Por outras palavras, o presidente engatilhou o intervencionismos e nota-se que começa a sentir o prazer de marcar a agenda. Logo, a governança que se cuide. Acabou o passeio tranquilo que a parecia conduzir à reposição da maioria absoluta.

A governança que se cuide com os talleyrand do costume e a respectivas sociedades de corte que continuam a abusar da nossa paciência, espatifando todas as bonecadas institucionais em que se metem. Porque tanto são salazaristas, democratas-cristãos ou socialistas convictos, quando tratam de ascender ao trono ministerial, como logo passam a coveiros de salazaristas, democratas-cristão e socialistas, quando os despedem. Eles são a infra-strutura desta fauna decadente que ocupou os palácios da cidade e vai repartindo pela criadagem da seita e da reverência tanto os penduricalhos das honrarias, como, sobretudo, as postas e prebendas que da mesa do orçamento vai roubando.

E como os Estado de Direito continua enregeladamente dependente do hipócrita princípio da legalidade, o mesmo que permitia aos pides torturar, desde que, depois, elaborassem a acta, continua o otomano governo dos espertos, onde quem conquistou o poder e, principalmente, os micropoderes sub-estatais, vai jogando ao pau e à cenoura, porque enquanto o pau vai e vem folgam as costas.

Não conheço exemplos de detecção de abuso de poder enquanto tais poderosos permanecem no poder. Os donos do poder só no "day after" é que são auditados, denunciados e processados. Porque os que podem auditar, denunciar ou processar têm a lógica cobarde de valer mais um pássaro de "outsourcing" na mão do que muitos valores a esvoaçar. Aliás, para esta canalha dourada, a palavra não passa de um instrumento de retórica barata que um qualquer desses sofistas desempregado consegue transformar em alegação.

A palavra gastou-se pelo mau uso dos discursos de música celestial ou seminarista. E prostituiu-se pelo abuso da compra do poder e da compra do voto, levada a cabo por estes devoristas, hábeis manipuladores dos curtos-circuitos do micro-autoritarismo, para onde regressaram coisas equivalentes a favoritas e a eunucos, todos abichando os restos da comezaina e da orgia, em ritmo de regabofe de curto prazo.

Porque, por dentro das coisas é que as coisas continuam vertebradamente salazarentas. Mudaram as moscas, mas não a pouca vergonha dos dejectos que as alimentam. Infelizmente, os direitos são concessões que se agradecem aos que estão lá em cima, como se fossem caridadezinha, enquanto os deveres são motivo para lamentações pelos sacrifícios que o chefe faz pelo bem comum, exibindo o trejeito sacrista da falta de sentido dos gestos.

Conheço alguns dos pais desta criatura. Personalidades autoritárias de raquíticas morais, a algumas das quais cheguei a ouvir apelos a enxurros de porrada a outras personalidades com quem agora mostram públicas cumplicidades. Eles usurparam a ideia de bem comum, ungidos por este sistemismo orgânico marcado por uma canalha reles e devorista, para quem o crime tem efectivamente compensado.

12.9.08

Uma imagem vale mais do que mil palavras. Ou de como a moralidade deve superar a legalidade



Prestes a quase poder cumprir, entre os Jaus, o exemplo de vida de Luís Vaz de Camões, vou captando muitos sinais de um sistema em curto-circuito, onde algumas imagens valem mais do que imensos discursos analíticos. Felizmente, alguns magistrais jornalistas conseguem lançar, através das redes radiotelevisivas, paradigmas de uma geração que nos vai enredando em palavras que não reflectem as lições de um Pascoaes, de um Cortesão, de um Pessoa, ou de um Agostinho da Silva, das tais palavras de um discurso de justificada resignação que talvez não correspondam à pátria de Camões ou de Fernão Mendes Pinto. É por isso que um profundo impulso me manda procurar Portugal fora de Portugal.

Com efeito, as nossas magistraturas tiveram, ontem, depois do jantar, direito a mediáticas intervenções. Assisti integralmente a uma, a da quarta figura do Estado, depois de Aníbal, que não é Barca, e depois de Gama, que não é Vasco, e até apanhei a parte final de outra cimeira do Ministério Público, a que não é Cândida. Fiquei sumamente esclarecido e profundamente preocupado, principalmente depois de ler outros magistrais, mais presos ao chão dos processos. 



Um dizia que não falava em filosofia do direito porque preferia a ideologia da corrente filosófica pragmática e que só se preocupava com os factos, segundo a corrente filosófica de Comte, mas quando começou a enredar-se na especulação logo caiu na filosofice da conversa de viagens de quem foi a Paris, para, depois, dizer que os povos da Europa do Sul, da tal honra mediterrânica, donde vieram Platão, Aristóteles e Cícero, não enraizaram a autoridade,  autoridade vinda de auctoritas que eles inventaram e que nunca teve nada a ver com a Ordnung que as brumas do norte fizeram degenerar. Não deixou mesmo de acrescentar que tal se devia a não ter havido recepção do "imperativo categórico kantiano". Mário Crespo, tentando descodificar a imensidão abstracta, logo o interrogou sobre o que era isso. O interpelado reagiu com alguma irritação e disse que não estava a fazer um exame. Mas logo se recompôs e misturando a palavra ética com qualquer outra coisa, disse que isso tinha a ver com o respeito dos direitos dos outros, saiu da legalidade e tentou passar para a moralidade. 

Lembrei-me de defender a honra mediterrânica e de manter-me neokantiano, em nome de ibéricos como Ortega y Gasset, António Sérgio ou Cabral de Moncada. Sublinhei na memória os juristas da Roma clássica. Os juristas do imperador Justiniano. Os fundadores de Bolonha. De S. Tomás de Aquino, de Acúrsio, de Bártolo, dos glosadores e dos comentadores. E do nosso João das Regras. Cheguei mesmo a João Pinto Ribeiro e Francisco Velasco Gouveia. Mas parei em Manuel Fernandes Tomás que é o meu exemplo de magistrado, da tal honra misturada com a inteligência que prestigiou o partido dos becas. Pensei em Espinosa, no seu filho Rousseau, de cuja mistura nos veio o iluminismo de Kant, que assumo em razão prática, e, como "homme du midi", fiquei orgulhoso deste mar interior pleno de luz, onde sempre houve gente que dialogou, entre pagãos e cristãos, papistas e maçons. Apenas concluo que a poesia é mais verdadeira do que certa interpretação da história. Já houve um ministro, que ainda o é, que, quando era ministro das polícias, disse que elas não eram a sua polícia. Que não haja em Portugal autoridades que possam dizer que este não é o seu povo, o seu direito, a sua civilização! Uma geração que queira a utopia do sem lugar pode acabar sem tempo e resignar-se ao situacionismo de um estado em minúscula que é aquele a que chegámos e não o Estado-Razão que devia pretender derrubar a Razão de Estado! 



O que disse a quarta figura do Estado, a que chegámos, sem deixar de ser verdade, é pouca uva para tanta parra. É evidente que o supremo magistrado sabe que isso do imperativo categórico pode ter a ver com o exemplo. E, da televisiva  conduta dele, não se conseguiu extrair a máxima universal de que estávamos à espera. Por isso, fiquei aliviado com o fim da perlenga e passei para outro canal, onde perorava outra alta figura da magistratura, mas da tal outra. Fiquei, pelo menos, a saber que a ilustre senhora, juntamente com o marido e a filha, durante toda a vida, nem sequer viram cinco minutos de futebol, devido ao defeito do daltonismo, pelo que não sabem distinguir o azul do verde e o vermelho do preto e branco que dá xadrez. Apenas me foi dado confirmar que lá se foi mais uma oportunidade perdida para as magistraturas se aproximarem do povo.

Sonhei. Sonhei que o contrato social (Staatsvertrag) devia transformar-se na razão pura prática, como universal legisladora (rein rechtlich gesetzgebende Vernunft), em ideia pura com fins regulativos. Mas, para tanto, a própria vontade geral (allgemeiner Wille) tem de tornar-se a própria vontade racional de cada um dos membros da comunidade, considerados como personalidades autónomas no acto de estas obedecerem ao imperativo categórico e de se tornarem, como tais, legisladoras duma legislação universal

Porque, exacerbando todo o processo jusracionalista, Kant transformou assim o direito natural numa coisa que é imanente ao homem, em algo que  é por ele querido e criado, deixando de ser um transcendente, enquanto alguma coisa exterior que era imposta ao homem.

Porque o mundo do dever‑ser, da razão‑prática, é o domínio da faculdade activa, do agir, o mundo dos fins e do valioso, dado que, pela ética, é possível ultrapassar o mundo dos fenómenos e aceder ao absoluto, à zona das ideias inteligíveis, das leis morais, marcadas pela racionalidade e pela universalidade.


No sulíssimo e mediterrânico Hernâni Cidade, notei que, ao contrário de Descartes, que tomava o espírito como uma passiva placa fotográfica, em que a realidade se projectava sem deformação, é este agora, como activo aparelho de projecção, que povoa a névoa exterior, que veste o nómeno com as formas subjectivas que resultam da sua mesma constituição dele, espírito. Assim, na supremacia do racional se organiza o novo, copernicano sistema entre o “eu” e o “não‑eu”. Não é o objecto que projecta a sua “ideia” no diafragma espírito; é a “ideia” criada pela “actividade do espírito”, que projecta o “objecto” que cremos existir fora de nós. “In principio erat verbum et verbum caro factum est”: "no princípio era o verbo(ou a ideia nele representada) e o verbo tornou‑se facto” (ou a realidade que julgamos objectiva)

Porque em Kant, a forma, o a priori, aquele absolutamente necessário e universal, é o imperativo categórico, o age de tal maneira que a máxima da tua vontade possa valer sempre, ao mesmo tempo, como princípio de legislação universal. O dever formal de realizar sempre o fim. Um imperativo categórico, também dito moralidade, dado que a lei moral é um facto da razão-pura, um a priori, uma regra que é preciso respeitar porque é precisa, algo que se impõe ao homem categoricamente, uma lei que tanto vincula o Estado como os indivíduos, consistindo na realização dos direitos naturais no direito positivo.

Mais: o imperativo categórico, a moralidade, distingue-se da legalidade (Gesetmässigkeit) ou do imperativo hipotético, dizendo respeito às acções que são levadas a cabo por força de uma pressão exterior, de uma pena ou de um prazer.

Porque, os deveres que decorrem da legislação ética não podem ser senão deveres externos, porque esta legislação não exige a Ideia deste dever, que é interior. A legislação ética integra o móbil interno da acção (a Ideia do dever) na lei.

A política está assim submetida ao imperativo categórico da moral e toda a ordem política legítima só pode ter como fundamento os direitos inalienáveis dos homens, os chamados direitos naturais. Deste modo, o Estado de Direito e o governo republicano, aqueles que são marcados pelos princípios da separação de poderes e do sistema representativo, devem conduzir os homens para a moralidade universal, para a constituição de uma república universal ou de uma sociedade das nações.

Nestes termos, porque os homens são sujeitos morais e a moral é universal, eles são todos iguais em dignidade. Logo, o Estado de Direito, que consiste na submissão do direito à moral, tem vocação para tornar-se universal.

Aliás, o direito tem a ver com o domínio da legalidade, da concordância de um acto externo com a lei, sem se ter em conta o móbil, enquanto uma lei ética exige moralidade, isto é, o cumprimento do acto por dever.

Pelo contrário, neste domínio da razão‑prática ou do dever‑ser, o a posteriori, o elemento material, aquela percepção cuja validade se reduz ao campo da experiência, é constituído pelos conteúdos concretos e históricos das diversas interpretações do bem e do mal.

Desta maneira, todo o direito passa a ser uma pura forma que se expressa pela lei do dever e pelo princípio da liberdade: actua de tal maneira que a máxima da tua conduta possa servir de lei universal para todo o ser racional.

Compreende-se, assim, que Kant, em 1797, nos Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito, defina o direito como a totalidade das condições pelas quais o arbítrio de cada um pode concordar com o arbítrio de todos os outros, segundo uma lei universal da liberdade. De uma liberdade considerada como aquele único e originário direito que compete a todos os homens só por força da sua humanidade, dado que o homem é livre se não precisar de obedecer a ninguém, mas apenas às leis. Pelo que, se a minha acção, ou, em geral, o meu estado pode coexistir com uma lei geral, então, qualquer um que me impeça de realizar algo cometerá uma injustiça.

A obra em causa, constitui a primeira parte da Metafísica dos Costumes, com uma segunda parte referente aos Princípios Metafísicos da Doutrina da Virtude, onde se procuram as leis a priori pelas quais se determina a chamada vontade metafísica do direito, isto é, o sistema de leis jurídicas dimanadas da razão. 

Essas leis a priori constituem aquilo que Kant designa por direito racional (Vernunftrecht), sendo resultantes da actividade formalizada da razão.

A tal procura da imanência que substituiria transcendência impositiva do anterior direito natural, onde procurava extrair-se da natureza, enquanto algo que era anterior e exterior ao homem, uma ordem da conduta humana.

Neste sentido, chega mesmo a proclamar que a coacção equivale à liberdade: se certo uso da liberdade se converte num obstáculo à liberdade segundo leis universais (isto é, se é injustiça), a coacção que se opõe, enquanto impedimento de um obstáculo à liberdade, coincide com a liberdade segundo leis universais, ou seja, que é justa, pelo que direito e capacidade de constrangimento significam o mesmo

Por outras palavras, como assinala Cabral de Moncada, o direito deixou de se impor do exterior do homem, passando a impor-se-lhe do interior. Deixou de estar ancorado num ser transcendente ou numa natureza repleta de momentos empíricos, para ser considerado numa simples lei da razão

Uma razão que não é um conhecimento teorético já feito, nem tão pouco de normas de moral ou de estética já susceptíveis de aplicação imediata, mas simplesmente uma força capaz de se elevar até esse conhecimento e normas. Mostrou que ela era somente um complexo, não de respostas, mas de perguntas e de pontos de vista, com os quais avançamos para os dados empíricos.


Para que o pragmatismo dos indexadores consigam captar o que digo, deixo, como marcadores, as palavras Noronha do Nascimento e Maria José Morgado.

11.9.08

Um quarto de hora antes da Grande Depressão, o regime ainda estava vivo



A mais institucional das nossas ministerialidades, atendendo, sobretudo, ao brilho das fardas a que costuma passar revista para as televisões, acaba de levar na cabeçona uma reprimenda do institucional-mor do Palácio de S. Bento, pouco antes do queirosiano seleccionador permitir que os "vikings", numa dessas operações de razia, nos fizessem morrer à vista de costa. Entretanto, Pedroso irritou profundamente os situacionistas, fazendo com que António Borges e José Lello emparelhassem e assim não comentassem as más notícias vindas da recessão europeia e, sobretudo, da espanhola, que agora tem que digerir a outra face da moeda Zapatero. Por outras palavras, o regime entrou na lucidez do avestruz, metendo a cabeça nas areias deste deserto de ideias e, como Monsieur de La Palisse, um quarto de hora antes daquilo que ontem avisou George Soros na RTP, emite comunicados e contra-comunicados, entre os dois palácios da coabitação. Por mim, tento ser coerente como homem livre e homem revoltado, prestes a cumprir minha missão.

No intervalo do jogo dinamarquês de Alvalade, ainda tive tempo para assistir à lição do mais presidencial de todos os nossos analistas e a quem atribuo o justo título de príncipe dos politólogos, pela primazia fundacional e pela superior qualidade do bisturi. Apenas digo que aprendi. Reitero: nenhum comandante da barca em plena crise, sabe como orientar o leme e faltam políticos com a intuição do risco, como Francisco Sá Carneiro. Dominam os bonzos e os seus subprodutos, sejam endireitas ou canhotos, nesta ditadura da incompetência, para utilizarmos terminologia dos últimos tempos da I República, o tal regime que caiu um quarto de hora antes da Grande Depressão.

10.9.08

Pedroso contra um PS tímido, reverente e preconceituoso


Acabo de ouvir extractos da entrevista de Paulo Pedroso que a TSF vai emitir esta tarde. Apenas saliento que ela equivale à entrevista de Menezes a Mário Crespo, marcando o regresso da luta política e anunciando a hipótese de uma nova dialéctica dentro de um PS, farto de certos moralismos que Pedroso qualifica como "conservadorismo". Por outras palavras, verifica-se que regressa um dos principais líderes de um PS de esquerda, disposto a pescar nas águas dos antigos votantes PS que têm mostrado preferências nas sondagens pelo PCP e pelo BE. A maneira pouco preconceituosa como falou na eventualidade do Bloco Central revela como, às vezes, faz bem certa travessia do deserto. Esperemos que seja, agora, dada voz a outros socialistas, como, por exemplo, António José Seguro, libertando o partido das cangas dos fidalgotes e dos muitos mandarins da rede de micro-autoritarismos sub-estatais.

Não estranhem, habituais leitores, que nada tenha dito sobre os recentes meandros judiciais que envolveram Pedroso. Sobre a matéria, já disse tudo, e bem antes, aquando da prisão de Paulo Pedroso e dos testemunhos pessoais e silenciosos que lhe manifestei, como era meu dever, sofrendo das incompreensões dos que preferiram transformá-lo em bode expiatório. Como nunca votarei nas suas ideias, tenho toda a legitimidade para o reconhecer como um elemento imprescindível à dinâmica política de um regime que ficou empobrecido com os episódios que o marginalizaram, levando a que o cinzentismo bonzo, dito tímido e reverente, tivesse enredado um partido fundamental para a liberdade portuguesa.

Quando o debate sobre o socialismo democrático empolga grande parte da esquerda europeia, seria estúpido que, por cá, a esquerda preferisse o ritmo salazarento daquilo que qualifico como viradeira. Já nos chega uma direita marcada pela feudalização das personalizações do poder e a quase total ausência de um centro excêntrico, bem radical, mesmo quando assume aquilo que alguns qualificam como coragem de esquerda para se assumir como direita. 

Todas as viradeiras têm os seus intendentes, os seus pines e os seus manicas


Mais um dia, mais uma insuportável dor, sempre que tenho que aturar o quotidiano deste governo dos espertos, onde, em defesa dos altos hierarcas, nomeados por favor político ou por cunha do chefe, da facção, da seita e, sobretudo, da congregação, o que o príncipe diz é o que tem valor de lei ("quod princeps dixit legis habet vigorem"), e onde o príncipe está isento da própria lei que faz para os outros ("princeps a legibus solutus"). Mas onde há outros que são de primeira, os da sociedade de corte e os apoiantes da nossa lista vencedora, e outros que são de segunda, os derrotados, os que estão sujeitos à tolerância zero de um Livro V das Ordenações, onde continua a ser crime pôr os pés no chão. 

Porque as viradeiras têm sempre os seus intendentes que acumulam o cargo com a administração das alfândegas. Que às segundas, quartas e sextas são polícias do pensamento. E às terças, quintas e sábados, ilustres tecnocratas. Para, no domingo, agradecerem ao senhor, na ressaca da orgia da vépera. Todas as viradeiras têm os seus pines e os seus manicas, onde eu-pine, pombalista, e de esquerda, posso arrassar o povo da trafaria, porque, sendo da seita, não posso ser contra o povo, e onde eu-manica, todo marianista, recordado dos tempos da bentina semineira da ungitura e da tonsura, posso mandar o mafarrico do marquês para o desterro, porque o novo chefe me mandou refazer o pino e manicar noutro louvaminheirismo e sempre vai sendo tudo no outro e neste regiminho. 

Mais um dia de insuportável dor, especialmente quando ontem contava as verdades da persiganga a um ilustre hierarca deste regime, dado ao sincero pluralismo, autêntico defensor do Estado de Direito, e realmente pouco solidário com as espertezas da administração colonial otomana, mesmo quando assume a dimensão de vizir. Porque ele me dizia que tais realidades que lhe descrevia só poderiam fazer parte da ficção. Quando lhe mostrei as provas, preto no branco, facto sobre facto, comparando-as com a prática salazarenta, ele apenas confirmou: agora, de facto, é bem pior. Ao menos, a lei de antigamente dava cobertura à hipocrisia...

9.9.08

Zedus, kadafismos e chavismos à lusitana


Neste regresso ao ritmo capitaleiro do domicílio e da rotina da profissão, onde tento manter a minha função, mas sem perder o sentido da própria missão, fui chamado, de manhã, pelo Luís Osório, ao Rádio Clube Português, para um debate sobre os principais sinais da situação política, com o António da Costa Pinto. O tema foi a chamada direita e o pretexto a eterna crise do CDS, dito PP, um alvará de partido que se confunde com o líder, Paulo Portas, tal como antes se confundiu com Manuel Monteiro, com Diogo Freitas do Amaral restaurado, com Adriano Moreira, com Francisco Lucas Pires e com Diogo Freitas do Amaral, rigorosamente ao centro. Um partido para que todos vaticinam o fim na próxima esquina, mas que vai sempre renascendo das cinzas, até porque já subiu ao governo duas vezes para ajudar, primeiro o PS e, depois, o PSD, a alcançarem a maioria absoluta pós-eleitoral, porque a AD foi outra coisa.

Apenas noto que a direita lusitana está algemada por duas ou três personalizações de poder, dotadas de activas feudalizações e sociedades de corte. Se cinco por cento pessoalíssimos são a justa reserva de caça de Paulo Portas, cerca de dez por cento animam Pedro Santana Lopes, o que quase inviabliza qualquer racionalização desse espaço. Aliás, ontem, na SIC Notícias, o regresso de Luís Filipe Menezes à ribalta, propondo a substituição de Manuela Ferreira Leite para o começo do próximo ano, revela até que ponto se vive, à direita, em regime de senhores da guerra que, de forma oportunista, fabricam programas de discurso eficaz. Menezes, retomando a proposta de Jardim, lançou as bases de um novo partido populista e regionalista, menos catolaico do que o discurso madeirense, dado que admite a liberalização dos costumes, para não ser encravado pelas causas fracturantes.

Resta saber se o justo jogo de Portas não será o de se assumir como charneira, podendo, eventualmente, em termos pós-eleitorais, ser necessário tanto ao PSD como ao próprio PS, dado que a factura que ele representa poderá ser bem menos custosa do que um regresso ao Bloco Central. Por outras palavras, a direita portuguesa começa a aproximar-se do estado de fragmentação da anterior direita francesa e a aproximar-se do que é hoje a esquerda galicista, principalmente do PS, fundado por Mitterrand. Isto, evidentemente, se se mantiverem as linhas de força do actual sistema político, coisa que sucederá caso não sejamos vítimas de mais uma crise importada.

Sócrates não é Zapatero nem Obama, dado que o paralelograma de forças que enreda o nosso situacionismo prefere estas águas chocas das sempiternas viradeiras, com séculos de inquisição, algumas décadas de autoritarismo e falta de autonomia da sociedade civil. E quando as forças vivas da economia, do poder banco-burocrático e do congreganismo podem ter uma esquerda moderna, a defender o estado a que chegámos, tudo como dantes, com o quartel general em Abrantes. Se eu fosse um desses ditos empresários, beneficiários da pós-revolução, do capitalismo selvagem e da subsidiocracia, preferiria nomear como meu feitor um alto dirigente socialista, em vez de um qualquer direitista liberal. Aos fins de semana, ele sempre poderia ir a um comício de esquerda bradar contra o capitalismo e o risco do individualismo, para nos restantes dias, do dia a dia, cumprir as ordens do patrão, mesmo lixando os trabalhadores e o povão, com desculpas de globalização e integração europeia...

Essas coisas da regeneração são para os encantados, herdeiros dos vintistas e dos setembristas, dado que os fidalgos ditos regeneradores são todos descendentes do Rodrigo da Fonseca, com a respectiva mesa do orçamento, para comprar os opositores, e, sobretudo, para a propaganda dos amanhãs que cantam, à maneira de Fontes Pereira de Melo, entre a inauguração de fontanários, o "macadame" e as sucessivas formas do "traway", mesmo que agora sejam carros eléctricos ou computadores magalhães... Julgo que muitas forças vivas bem gostariam de haver por cá um Zédu qualquer, misto de kadafismo e chavismo, com elogiosas referências de Mário Soares. Infelizmente não se descobriu petróleo no Beato...

8.9.08

Os futuros "dossiers" desta política (in "Jornal de Negócios")


Na passada sexta-feira, comunicava o seguinte ao “Jornal de Negócios”: julgo que o principal dossier vai ser o do eleitoralismo na disputa do centrão com o PS ameaçado pelo desvio de simpatias de um certo eleitorado de esquerda para PCP e o BE e a saber que pode perder o centro catolaico para um PSD pouco dado a causas fracturantes.

O PSD assumindo um super cavaquismo sem Cavaco e procurando cortar com o anterior populismo, vai procurar captar confiança popular para a nova líder, que vai assumir uma nova versão tecnocrática, mista de europeísmo e de prestígio financeiro. Dai que a chamada gestão do silêncio de MFL tenha sido deliberada, a fim de não cortar com as forças vivas da economia que continuam a apostar num Bloco Central, capaz de aliar o politicamente correcto da esquerda menos, dita moderna, com a chamada direita dos interesses. Porque o situacionismo gosta de por na gaveta tanto o socialismo como o liberalismo...

Cavaco só terá intervenção se forem exigidas medidas excepcionais de soberania perante exageros eleitoralistas que falseiem as regras da leal concorrência partidária. Como alta autoridade do sector pode de um momento para o outro emitir uma aula de análise da conjuntura e punir a governança se esta cometer o pecado de usar a táctica do enquanto o pau vai e vem folgam as costas.


Resta saber se o ambiente internacional não vai introduzir novos factores de instabilidade de curto prazo, dado que, na verdade, a maioria dos factores de poder já não são nacionais e temos uma governança sem governo, em regime de quase pilotagem automática. E aqui só a bruxa e algum lume da profecia pode corrigir este excesso de racionalidade pouco axiológica, sem quase nenhuma ética da convicção.

7.9.08

Manuela, o fim do silêncio (in Diário de Notícias)


Manuela Ferreira Leite, se procurou vacinar-nos contra o populismo das anteriores lideranças do PSD, talvez tenha exagerado, quando não se assumiu como a necessária voz tribunícia de um centrão sociológico que não consegue expressar-se através do PCP, do Bloco e de Paulo Portas. Porque a qualidade da democracia exige a palavra da oposição, para que aqueles que não se sentem representados pela governança não caiam no pecado do indiferentismo e se abstenham da cidadania.

De qualquer maneira, para quem conhece a idiossincrasia de Manuela Ferreira Leite, há que sublinhar a dureza das respectivas palavras sobre a incompletude da democracia. Com efeito, a antiga activista da crise estudantil dos anos sessenta parece ter compreendido que o modelo de partido-sistema que se confunde com o Estado-Aparelho, dando sinais de querer também ela libertar-se da tentação do rotativismo do Bloco Central e da mão invisível de D. Tina (“there is no alternative”), a tal entidade que tem levado ao crescimento assustador da indiferença e do consequente desespero da compra do poder.

Neste ponto, julgo que o discurso de Manuela Ferreira Leite cumpre a sugestão de Cavaco Silva quanto à necessidade de não-resignação. Resta saber se o PSD está disponível para ser a voz tribunícia de todos os que são vítimas desta nova forma de autoritarismo docemente difuso, assente numa longa rede de micro-autoritarismos subestatais, onde, em muitos segmentos, não falta o colaboracionismo de alguns militantes do PSD, ainda à espera da manutenção da tradicional aliança da esquerda moderna com a direita dos interesses.

Porque, tal como nos últimos anos da década de setenta do século passado, o PS parece ter sido assaltado pelo colaboracionismo de mentalidades pouco dadas ao pluralismo e à autonomia da sociedade civil, admitindo certas formas serôdias de neogonçalvismo refinado, onde, nalguns casos são mobilizados fascistas folclóricos e estalinistas não arrependidos.

Os suíços fabricam os relógios, mas os africanos inventaram o tempo...



Angola, por estes dias, confirmou que deixou de ser nome de guerra, procurando um certificado de free and fair elections, onde pouco interessa um resultado que antes de o ser já o era.

Há a força dominante de um partido-sistema que já foi partido-único e que tende a ser uma espécie de partido revolucionário institucionalizado, ou um bloco central, de cujos dissidentes sairá a futura oposição eficaz, dado que a minoria institucional da UNITA, apenas representa uma espécie de oposição espiritual.

Vale mais salientarmos que a construção do político em África não pode ser mera aquisição de um modelo de pronto-a-vestir, adquirido, no hipermercado politológico das chamadas transições para a democracia, ou na "free shop" de uma qualquer mordomia subsidiada.

Até nem haverá democracia em África se ela não for uma democracia efectivamente africana, enraizada no chão moral de uma história sofrida. Logo, quem continuar a traduzir em calão modelos organizacionais que não se adequam ao corpo e à alma dos africanos está, na verdade, a trair todos os que lutam por este valor universal.

Porque a liberdade, enquanto libertação, implica espremer gota a gota o escravo que cada homem conserva, escondido, dentro de si. Porque apenas conseguimos passar de súbditos a cidadãos, quando nos autodeterminamos como homens livres.

Porque, se desapareceram os sinais exteriores da anterior repressão, permanecem os subsistemas de medo e é dominante o oficialismo bonzo do permanecente comunismo burocrático. Desde aquele que foi herdado do aparelho colonial, ao que foi hiperbolizado pelo afro-estalinismo e que tem, como contrapartida, uma agressividade negocista e corrupta dos que, rasgando os anteriores princípios, se fica pela técnica do enrichez, vous! e pelo capitalismo selvagem da sociedade de casino.

(in Diário Económico)

5.9.08

Corrupção, obamas e europas. Conclusão do depoimento de "rentrée"

21 — Tem-se falado muito de corrupção. Mas, na opinião de muitos, pouco ou nada mudou. Há quem diga que esta apatia interessa a quem pode mudar a lei — o poder político —, os mesmos que não estão interessados em combater o fenómeno. Concorda com esta ideia?

 

O problema da corrupção em Portugal é mais um problema moral do que um problema de leis, magistrados e polícias. Com efeito, não é por acaso que os países menos corruptos do mundo são precisamente os mais liberais e os mais capitalistas, porque o controlo é comunitário, dado que o corrupto é socialmente sancionado, enquanto que, por cá, esta ideia de Estado-Ladrão dá aquela esfarrapada desculpa do Zé do telhado, porque ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão... Enquanto não fizermos uma revolução cultural, a corrupção é directamente proporcional à própria evasão fiscal, também ela não socialmente condenável, dado que o Estado, mesmo em democracia, continua a ser um “lui”, um “eles”, os “soberanos”, de quem tentamos sacar algo. Só quando o Estado formos nós é que mudaremos o ritmo.

 

22— Portugal é um país de corruptos, como muitos dizem?

 

Os partidos que a permitem a corrupção passaram a ser controlados pelos favoritos da chamada sociedade de corte, os tais que, com as suas castas, tiveram a ilusão de conquistar o poder e que usam Estado a que chegámos como presúria, para distribuírem os troféus da conquista pelos supostos vencedores, para que os vencidos tenham a ilusão de espera pela alternância dessa quase pilhagem e mantenham este situacionismo predador do “comer à mesa do orçamento”. O pior é que dão o nome de democracia e de Estado de Direito a este sucedâneo de feudalismo, mas já sem nobreza nem clero.

 

 

23 — Em que é que a corrupção mina o sistema democrático?

 

Os partidos correm o risco de passagem à categoria de meros bandos, onde o principal valor tem a ver com o investimento individual na militância, esperando-se um retorno imediato, nomeadamente pelo curto-circuito da cunha e de todas as medidas de efeito equivalente à falta de imparcialidade na administração da coisa pública.

 

24 — Acha que as pessoas, em Portugal, têm medo de denunciar os actos de corrupção? Porquê?

 

Voltando ao paralelismo com a evasão fiscal, direi que só quando atingirmos uma efectiva democracia fiscal é que poderemos gerir a coisa pública de forma comunitária, retomando o velho lema de “o que é comum não é de nenhum”, mas desde que o entendamos o comum como coisa da nossa propriedade e posse, onde os governantes apenas são gestores temporários e não donos. Quase me apetecia voltar a repetir a proposta de Passos Manuel que queria o regresso a certas formas de sufrágio censitário. Por mim, restringiria os direitos de cidadania aos cumpridores dos deveres fiscais...

 

25 — Como analisa as relações entre Belém e S. Bento? Há um esfriamento natural entre Cavaco e Sócrates?

 

Os dois são a mesma coisa ideologicamente: disseram-se da esquerda moderna, invocaram Bernstein e têm programas de governamentalismo keynesiano, assim coincidindo com o que poderíamos qualificar como salazarismo democrático. Até porque herdaram do antigo regime esta mania de acordos neofeudais com as forças vivas, bancoburocráticas, naquilo que poderíamos qualificar como a direita dos interesses. É essa barganha a que damos o nome de social-democracia que é exactamente a mesma coisa do que socialismo democrático, onde o europeísmo é o novo D. Sebastião, mas onde as disparidades sociais e a injustiça são crescentes. Nenhum deles é capaz de um “new deal” de menos Estado e mais sociedade e ainda por cima são as duas cabeças das duas principais multinacionais partidárias da eurocracia...

 

26 — Estamos a caminhar a passos largos para as eleições norte-americanas. Uma vitória do partido democrata nas presidenciais de 2008 nos EUA pode significar um novo relacionamento entre Washington e a Europa?

 

Para mim, a república norte-americana é uma das mais belas construções políticas da nossa matriz civilizacional e ai das ideias liberais que perfilhamos se não assumirmos as raízes comuns para podermos construir o futuro em parceria. Julgo que poderermos avançar muito se o futuro presidente da república imperial compreender que o gnosticismo bushista, quando confundiu os interesses universais com os interesses norte-americanos, foi uma oportunidade perdida para o universalismo da esperança pós-soviética.

 

27 — Qual dos dois candidatos, Obama e McCain, servem melhor os interesses dos EUA e o relacionamento deste País com o Ocidente?

 

Não sou cidadão norte-americano e, quando muito, tenho solidariedade para com as preferências das comunidades portuguesas e luso-descendentes. E julgo que tradicionalmente estas alinham com os democratas...

 

28 — Como olha, hoje, para a União Europeia a 27?

 

Uma das mais belas construções políticas da humanidade, permitindo o sonho de uma Europa que vá da ilha do Corvo a Vladivostoque, assim se consigam superar os presentes dramas de renegociação do acordo comercial com a Rússia, dado que o de 1995 acabou em 2005. Daí estes bailados interventivos, entre o Kosovo e a Ossétia, quando não assumimos que a Rússia de Soljenitsine está a construir uma democracia e uma sociedade aberta e pluralista, mesmo que os entorses da personalização do poder e da bandocracia ainda estraguem o sonho. A alargamento a Leste, se não for entendido como um sucedâneo da guerra fria, pode levar a um investimento de paz e justiça que dá à nossa geração uma superioridade moral face às anteriores, as que transformaram guerras civis europeias em guerras mundiais. Ajudar o partido russo do humanismo laico e do humanismo cristão a vencer os atavismos antidemocráticos e antipluralistas é o verdadeiro fim daquela construção europeia que pretenda eliminar os imperialismos internos que transformaram esta bela ideia civilizacional em muitos segmentos de prisões de povos...

 

 

29 — Aprovado o Tratado de Lisboa, na sua opinião, vamos ter uma Europa a duas velocidades?

 

A ideia de caixa de velocidades representa o pior ds gnosticismos progressistas, aquele que diz termos todos os povos que percorrer uma via única, em direcção a certa estação terminal do fim da história, percorrendo as mesmas estações, mas com uns a irem mais avançados e outros em estações subdesenvolvidas ou em vias de desenvolvimento. Por mim, preferia não ir nesse comboio de descarrilamentos e ter não várias velocidades, mas várias formas de saudades de futuro.

 

 

30 — A ratificação teve um acidente de percurso com a Irlanda a dizer «não» ao Tratado de Lisboa. Este voto dos irlandeses representa o quê?

 

Para mim, representa a coragem dos irlandeses que conseguiram garantir da União Europeia o respeito pelas autonomias nacionais. Infelizmente, não têm força para transformar a Europa numa democracia de muitas democracias, contra a tentação do super-estado eurocrata.