Sándor Márai, do tratado da amizade. Por Teresa Vieira
Aprende-se que há um amor a todos os títulos fecundo quando os homens são capazes de criar e de manter a vivência de uma amizade como salto qualitativo na forma de viver.
O romance As Velas Ardem Até ao Fim tem sido merecidamente aclamado, mas um autor como Sándor Márai nunca por excesso será nomeado, tal a força da sua imensa inteligência no poderosíssimo discurso escrito.
Entramos num ecossistema de leitura diferente de cada vez que revisitamos estas velas que ardem qualitativamente catalisadoras de transformações profundas e que sempre aconselharei a reler neste romance.
A magia de um diálogo deslumbrante neste livro acode ao mistério do tudo e do nada há quarenta e um anos vivido lado a lado com o que se não pode resolver, ou, por se tratar de ideias falsas, ou, por tão perto e de tão perto, que já não acresce reconhecer o que afinal de nós nunca saiu e tanto no outro se procurou.
E procurou-se no jeito dos porquês e dos comos, ambos miseravelmente idênticos, ambos fórmula sem testemunha que deponha benevolente.
Afinal, da leitura deste livro fabuloso, também resulta que a tudo se sobrevive e, talvez que muitos silêncios sejam mais humanos do que as palavras alguma vez o foram, na ânsia de qualificar a vida.
Existem muitos crimes que os códigos não reconhecem pois que pouco sabem de conteúdos. Também existem misérias e grandiosidades, vaidades e preconceitos que ardem como as velas, muitas, ainda assim, expectantes que se não apaguem de morte esquecida.
E reli e irei reler e apelo à (re)leitura deste romance de Sándor Márai As Velas Ardem Até ao Fim. Todas as noites têm luz quando se sugere um livro como este, pleno de palavras meticulosamente talhadas na alma das pedras.
A realidade é um pormenor na luz flutuante do salão que abriga o diálogo entre dois homens, amigos inseparáveis. Amigos migratórios. Amigos que reconhecem os defeitos e as consequências dos mesmos. Amigos que se não amam apenas pelas virtudes e pelas fidelidades. Amigos até que ambos amparam a bala que afinal não era inteiramente sincera.
Também existe uma? mulher neste livro, tal como a amizade que quando surge é um destino.
Também é no seio de uma comum permissão secreta que não se deseja libertar as verdades que em comunhão com uma paixão tiveram ambição de soldado.
E houve guerra. E solidão. E castelos e conventos e cortinas e uma nudez humana que responde com toda a sua vida.
Também existem muitos significados de caça que só muito mais tarde se entendem. Em verdade, as caças têm muito de despedidas, têm muito do foste tu que me chamaste?
Com tudo o que de brilhante nos ocorre quando lemos este livro, o caos da criação onde se desenvolve a dignidade humana, é ainda mais cintilante, quando o sentimos como uma obrigação nobre, tão nobre que faz parte do ofício do entendimento, como andar a cavalo, ou participar num concerto de Chopin.
Oculta e exposta está a sensualidade deste livro. Surge-nos como consequência natural das circunstâncias que levam as mãos ao tremor, tão antigo na paixão, quanto jovem e permanente ao posto de vigia: licor líquido cor de púrpura a quem no acto de leitura o não descuida.
Permitam-me que cite Sándor
“Era o momento em que a noite se separa do dia, o mundo de baixo do mundo de cima. E talvez haja outras coisas que também se separam nesses momentos (…) já não é noite, mas ainda não é dia.”
E nem sempre se argumenta com palavras da razão. Digo.
M. Teresa Ribeiro B. Vieira
31.03.10
Sec.XXI