O homem é o único animal que discursa, tal como é o único animal que sabe rir... Dizia-se isto no tempo em que não havia teleponto, telemóvel e televisão, quando discurso ainda tinha a ver com a dimensão "logos", isto é, com a razão, com a palavra posta em comunicação, onde a complexidade dos músculos que permitem a gargalhada até levava Bergson a concluir que não há nada de cómico fora do que é propriamente humano. É que o cómico nasce quando os homens reunidos em grupo voltam a sua atenção para um deles, calando a sua sensibilidade e exercendo só a sua inteligência.
Assim, tenho de recordar José Ortega y Gasset, para quem quando a paixão invade as multidões, é crime de lesa-pensamento o pensador falar. Porque para falar tem que mentir. E o homem que aparece antes de mais entregue ao exercício intelectual não tem o direito de mentir.
Não, não estou a pensar no Dalai Lama e nos actos de policiamento dos chineses sobre o território tibetano, sob a soberania de Pequim. Não vou continuar a dizer que a "perestroika", que nos dá lojas de trezentos, jogos olímpicos, comércio, diplomacia, casinos e fundações do oriente, pode ser interrompida pelos incómodos da "glasnot".
Os mil e duzentos metros quadrados do pavilhão bem ginasticado não são um salão do Portugal dos Pequeninos, onde se prometia a baixa dos impostos, a redução das prestações sociais, o aumento da carga fiscal. Abaixo os sindicalistas, os funcionários públicos, os professores, os magistrados, os farmacêuticos, os médicos, os notários, os enfermeiros. Estamos contra todos, mas não estaremos contra todos ao mesmo tempo, nem deixaremos de comprimir os chamados direitos adquiridos.
Prefiro convidar os portugueses a espreitar para o "hall" da minha casinha, que não foi desenhada quando eu apenas era desenhador na autarquia da serra da estrela. Esqueçam o espelho com moldura dourada, esqueçam que não vos apresentei os meus pais, os meus filhos e a minha namorada, como fez o outro. Nem sequer vos convido para se sentarem no sofá da sala. Apenas uma biquinha no café da esquina, que os meus assessores de comunicação hão-de pagar.
Não estou para aturar intelectuais que não aceitam reconhecer o Pinto Ribeiro como nomeador, os tais que recordam os actos de tirania dos mitificados príncipes perfeitos e que continuam a dizer que as luzes da iluminação especulativa não devem assentar na rotina do despotismo. O Charrua que se lixe. A tipa de Vieira do Minho que se esqueça, o Balbino que gaste o dinheirinho com o Zé Maria Martins. Um reformador como deve ser pode continuar a ter os muitos pés de barro dos muitos directores-regionais do Norte e do Sul, essses aparelhismos verbeteiros dos micro-autoritarismos sub-estatais, com direito a advogado e a avençado pago pelas verbas do orçamento de Estado contra os protestantes, huguenotes e quejandos.
Qualquer João Figueiredo sabe para que servem as meras rodas dentadas do anónimo mecanismo do Leviathan e do PRACE. O Estado é isto, meus senhores, a abstracção de um discurso de estadão, no tempo da "folle du logis" e da "teledemocracia". Os indivíduos, infelizmente, são meros elementos fungíveis de uma tabela estatística que suporta as regras das sondagens e dos estudos de opinião pública.
Aliás, quanto mais à esquerda se pensa o poder, mais ilusão têm os detentores do mesmo quanto à bondade dos meios que utilizam, dado que se deixam enlevar pela altitude dos fins que julgam prosseguir. Os tais instrumentos ditos inquisitoriais, com excessos ditos purgas, porque os chefes e engenheiros de almas, abrasados pelos fins dos superiores interesses do país, se desleixam das correias de transmissão e das rodas dentadas do Estado-Aparelho.
Se os chefes têm, com eles, a doutrina, nenhuma parcela da força do estadão lhes pode fugir, e todos os opositores que não queiram comer à mesa do orçamento passam à categoria de filhos das trevas. E este é o país do rigor, da competência, de mais qualidade, de mais qualificações, de modernização, onde, infelizmente, até nos acusam de irmos depressa demais. Quando o país estava atrasado demais, parado demais, sem compreender a urgência da mudança. O mundo está a mudar e os país tem de mudar com o mundo.
Nós, chefes, somos a força da modernização, o futuro que precisamos de construir e não somos dos que vão para onde sopra o vento, atrás de qualquer protesto. Nem sequer somos dos que alimentam a descrença e fomentam o pessimismo, como dizia Marcello Caetano, antes de ser metido na Chaimite. Somos o partido progressista de Portugal. Temos connosco o Jorge Coelho, que bem sabe fazer oposição à oposição, sem se comprometer com apoios à Maria de Lurdes. Temos o princeps Almeida Santos, que sempre apoiou a Ota por causa das pontes que podem ser dinamitadas por terroristas e que ainda é capaz de juntar cem mil pessoas na rua.
Nós somos o novo estado, o rigor, a modernidade, a Europa, o mundo, a competência, o aborto, a luta contra os berloques na língua, o Lemos de Castelo Branco, o Teixeira dos Santos, o Mariano Gago, o Santos Silva, mesmo que já não sejamos o Campos Cunha, a SEDES, o Freitas do Amaral. E até podemos vir a ser o Vital Moreira, o José Miguel Júdice e o Pedro Mexia. Somos como sempre fomos, o Costa Cabral, o Fontes Pereira de Melo, o Afonso Costa, o António de Oliveira, o Cavaco Silva, mesmo sem uma ideia de Portugal e sem uma ideia de Europa. Mesmo sem qualquer ideia de ideias.
Por mim, voltando a Ortega, apenas repito: reivindico inteiramente o direito de me manifestar tal como sou. Ingresso na política, mas sem abandonar um átomo da minha substância... Reclamo o pleno direito de se fazer uma política poética, filosófica, cordial e alegre. Outra coisa seria coarctar-me injustamente.